31.12.08

"whitman"

permita-nos mergulhar de cabeça
na fonte e nos arbustos densos
de uma nova delicadeza revoltada
– nós também precisamos passar.

fomos por muito tempo presas
assustadas, engolindo os erros
acumulados pela fé decapitada.
e por muito tempo ficamos fora
dessa tal “Grande Equalização”.

por favor, deixe-nos passar agora.
falo por nós e não só por mim,
pois, como eu, são, foram muitos.

não nos deixe, delicadeza, voltar
à casa, infestados e desprovidos
desse líquido seminal que, cegos,
chamamos de amor entre os seres.

você, velho libidinoso, que vê
bondade em tudo – mas a visão
será somente do poeta – você
nos abriu os corpos paralisados
diante de um precipício lento.

nós somos os das entranhas malogradas,
aglomerados em redomas achatados por
grandes perdas – enormes corporações.

muitos falaram, inclusive você, por nós,
não duvidamos de suas boas intenções.
mas nunca um de nós falou por nós e já
não podemos mais esperar, abre a porta
portanto sem demorar mais e nos arranque
de todo esse equivocado, antigo sacrifício.

você tocou o primeiro clarinete de fogo,
deixe-nos sair do fogo, recuperar a casa.

26.12.08

“noturno dissonante”

a mesa ainda posta,
velhos hinos distantes,
formigas trabalhadeiras...

a antologia de Manuel Bandeira,
a réplica barata de um vaso chinês.

e na cortiça, fotos irreais:
namoradas desconhecidas em 3 por 4.
alguém familiar vestindo boina
e polainas amarelas – alguém materno
de calcinha e sutiã, sorrindo presságios
ao lado a morte com mau-hálito, antevista.

fotos mortas vivas fotos
de quem ainda não nasceu.

principalmente uma cortiça, o silêncio de deus,
gatos no cio, silêncio de nós, molas rangendo,
a sombra implacável de Manuel Bandeira,
a mesa ainda posta, a mesa vazia, o peito...
formigas trabalhadeiras - nenhum vento -
e essa constante sensação de desaparecimento.

23.12.08

"A Leave-Taking" (A. C. Swinburne)

Let us go hence, my songs; she will not hear.
Let us go hence together without fear;
Keep silence now, for singing-time is over,
And over all old things and all things dear.
She loves not you nor me as all we love her.
Yea, though we sang as angels in her ear,
She would not hear.

Let us rise up and part; she will not know.
Let us go seaward as the great winds go,
Full of blown sand and foam; what help is here?
There is no help, for all these things are so,
And all the world is bitter as a tear.
And how these things are, though ye strove to show,
She would not know.

Let us go home and hence; she will not weep.
We gave love many dreams and days to keep,
Flowers without scent, and fruits that would not grow,
Saying 'If thou wilt, thrust in thy sickle and reap.'
All is reaped now; no grass is left to mow;
And we that sowed, though all we fell on sleep,
She would not weep.

Let us go hence and rest; she will not love.
She shall not hear us if we sing hereof,
Nor see love's ways, how sore they are and steep.
Come hence, let be, lie still; it is enough.
Love is a barren sea, bitter and deep;
And though she saw all heaven in flower above,
She would not love.

Let us give up, go down; she will not care.
Though all the stars made gold of all the air,
And the sea moving saw before it move
One moon-flower making all the foam-flowers fair;
Though all those waves went over us, and drove
Deep down the stifling lips and drowning hair,
She would not care.

Let us go hence, go hence; she will not see.
Sing all once more together; surely she,
She too, remembering days and words that were,
Will turn a little toward us, sighing; but we,
We are hence, we are gone, as though we had not been there.
Nay, and though all men seeing had pity on me,
She would not see.



***X***



"Uma Despedida" (tradução Leo Marona)

Deixe-nos então, música minha; ela não escuta.
Deixe-nos ir então, sem medo e juntos;
Faça agora silêncio, o tempo de cantar acabou,
É o fim de todas as coisas queridas e caducas.
Não te ama nem a mim e nós a amamos os dois.
Embora feito anjos cantemos a canção mais pura,
Ela já não escuta.

Deixe-nos levantar e partir; ela não sabe mais.
Deixe-nos mar adentro como o vento faz,
Cheios de areia e espuma; de que ajuda seria?
Não há ajuda, tudo é sempre dessa forma,
E o mundo todo é azedo como a lágrima.
E como tudo é, embora difícil seja demonstrar,
Ela não sabe mais.

Deixe-nos então ir para casa; ela já não chora.
Demos ao amor sonhos e dias de nossas horas,
Flores sem aroma, e frutas que não mais cresceriam,
Dizendo “Se quiseres, confia na tua foice e colhe”.
Tudo agora foi colhido; não há mais pasto virgem;
E nós que semeamos, caídos de sono muito embora,
Ela já não chora

Deixe-nos então e descanse; ela não ama nada.
Não nos ouvirá se cantarmos da sacada,
Nem as trilhas do amor, tão íngremes e doídas.
Vem então, deixa estar, deita aqui; já basta.
O amor é mar estéril, amargo e infinito;
E mesmo vendo o paraíso nas flores da mata,
Ela não ama nada.

Deixe-nos desistir, afundar; ela já não liga.
Mesmo que as estrelas façam ouro dessa brisa,
E antes de se mover o mar tenha enxergado
Uma lua em flor tornando as flores de espuma lindas;
Mesmo as ondas que nos atropelaram, e arrastaram
Pro fundo os cabelos afogados e lábios oprimidos,
Ela já não liga.

Deixe-nos então, deixe-nos; ela não enxerga.
Cantemos outra vez juntos, é certo que ela,
Ela também, lembrando dias e palavras que foram,
Chegará então até nós num suspiro, bem perto,
Mas nós vamos longe, já partimos, mesmo de onde não fomos.
E mesmo que todos os homens de mim se apiedem,
Ela não mais enxerga.
"Não existe roubo; tudo é pago".

(Napoleão Bonaparte)

18.12.08

"Napoleone di Buonaparte"

foram-se as baionetas imaginárias,
baixaram a meio pau as bandeiras,
deitaram a correr o velho infame.
os heróis acabam sempre nas ilhas,
os verdadeiros impérios do oriente
foram roídos pela decadência, e tu
estás gordo, a riscar velhos mapas.
muitos se dizem você no hospício,
o mundo ainda é o das debilidades
e mendigos provocam ira nas ruas.
precisávamos talvez da tua loucura
para encarar de frente o apodrecido
e remover as manchas da nossa fé.

que constantinoplas foram precisas
para alcançar o centro de si mesmo?
Novo Prometeu, agora bem sentado
atado em uma rocha onde um corvo
lhe rói as entranhas, e ali o homem,
as entranhas da democracia furiosa.
a imaginação faz perder as batalhas,
você disse, e amou, e foi pra guerra.
você tornou incrível nossa verdade,
depois trancafiou o Marquês de Sade,
e quanto não ficou trancafiado em ti,
homem interditado, líder soberano?
o que vem do fogo para o fogo torna

"Antes do Sono"

Talvez fosse preciso um longo bocejar. Admitir a aceitação mais violenta: a que diz respeito a nossa própria carne. Um tigre de papel, perdido nos lençóis da carne. Estamos sobre um pedaço enorme de coisa que não sabemos de onde veio e na verdade é um pedaço mínimo de uma outra coisa sem referência nenhuma que gira sem direção por um espaço que por sua vez não se sabe se é infinito, finito ou realmente espaço. É impossível não pensar que estamos todos perdidos, andando por aí, criando rotas dentro de algo – chamemos de algo o que não tem nome – maior e que não tem rota alguma. Mas não tenho essa pretensão. Pretensões grandiosas são as mais mesquinhas. Perguntem a Lee Oswald ou a Oswald de Andrade. Na verdade, queria falar sobre o momento imediato como no futuro do pretérito, o tempo da desesperança poética. E hoje não precisaríamos mais do tiro que explode o sangue na parede. Não haveria mais pernas gangrenadas de pico ou dólares falsificados inflamando vaginas. Estaríamos todos sob uma espécie de couraça – a mesma que no mundo real têm os muito pobres – que nos não permitiria deixar de rir da vida de forma alguma, e nos faria ver, reconhecer o moinho, e cair, levantar, ganhar rugas, mas sempre de prontidão para se levantar outra vez, cair mais uma, ter trituradas as pernas, mais uma vez bater o pó nas calças maltratadas, vestir o chapéu comido pela traça, erguer outra vez o punho leve, quebrado de fome e sede e sono, subir outra vez o inevitável peso sobre os ombros, seguir adiante, ser a natureza das coisas em movimento num espaço onde não há lugar para mais razão, porque sabemos que é preciso retornar e não há motivo para choro, então seria possível – com esse espírito agreste de onde brota uma certa volúpia humanística – viver querendo o bem esperando ingenuamente por deus que, se existe, está tão perdido ou mais do que nós, que o criamos porque sentíamos medo, porque admitimos a natureza do medo como natureza diabólica e precisávamos ter passado sem ela, mas no meu texto no futuro do pretérito de repente estaríamos todos muito leves, sentindo a flutuação dentro da qual estamos inseridos, ouvindo algo como Stormy Weather na voz de Billie Holiday, e se ela diz “vá, mesmo assim vá, sem braços, sem pernas, sem olhos, o coração em fratura exposta, sorria de alguma forma e vá!”, então acreditamos e que venha o tempo das chuvas de outros tempos, que nos deixemos encharcar por esse espírito tão antigo e renovado, por essa encarnação alienígena que paira diante de nós, nós que nos desconhecemos a nós mesmos porque precisamos conhecer o universo, mas no meu texto enxergaríamos todos em tom violáceo e teríamos belíssimos corpos e andaríamos ao léu pelas marés arriadas e chamaríamos uns aos outros nas ruas para passear e conversar e nos apaixonaríamos uns pelos outros porque seríamos tão diferentes, mas pela primeira vez cada homem, cada mulher quereriam ter sido exatamente o que vieram a ser, apenas homem, apenas mulher, e não teríamos mais ditadores de causas moribundas, nada disso existiria, mas é claro, por isso não haveria porque sentir depressão e esse é o modo mais rápido para se ficar deprimido, o não haver motivo para, então finalmente veríamos se bem ou mal diferem tanto na essência, se fomos gerados realmente por extraterrestres e o próprio tempo é uma criação de outras órbitas, assim como a água que circula por nosso corpo é o próprio corpo estranho de que falam as mais perversas ficções. E saberemos enfim se alimentamos pequenas máquinas que alimentam outras maiores e essas alimentam outras enormes e as últimas, por sua vez, alimentam máquinas incomensuráveis que no fim fazem parte de uma estrutura ainda maior de exploração da energia de um lugar feito de gases etéreos por outra concentração maior de energia que incha, incha, transborda e então lembraríamos das nossas pequenas tramóias do dia-a-dia, dos gordos que suam enforcados em suas gravatas ou algemados à cama por sórdidos seres híbridos, e pensaríamos: “que natureza é essa da qual fazemos parte?”, e não haveria resposta, é claro, pois somos a própria resposta, e o tempo se paralisaria por um instante ou dois, pensaríamos mais uma vez sem esforço no som que faz o vento forte sobre uma plantação de trigo, a visão dessa plantação de trigo nos encheria a mente com um poderoso amarelo, e estaríamos no fim desse mínimo instante ainda maravilhados, e de repente não haveria mais responsabilidades porque seríamos parte de um outro estranho, e mais uma vez mão-com-mão, braço-com-braço faria sentido porque não seria mais uma atitude revolucionária ceder o braço, dar a mão, e seríamos portanto seres simples e sem vaidades, o som do mar ao fundo enfim como um repouso para nossas almas carregadas de concreto. Um suspiro, e estaríamos além de nós.

10.12.08

"Depois" (Flávio Corrêa de Mello)

para Bibiana Campos

Que eu morra
de parada cardíaca,
com os dentes
fincados na sua carne,
entre seus braços,
assaltado por seus lábios.

Nossa saliva circula
por uma única veia
ela dirá
o nome e sexo
a cor do coração
o gozo melado.

E depois de morto,
irrigue, por favor,
o sangue.
Coma as vísceras
e o fígado, sinta-os
dilacerando na boca.

Despoja-me de todos bens
e com o couro da pele
faça uma mochila de viagem.
Dê os ossos a algum estranho
que passe na esquina
onde nos beijamos pela primeira vez.

Não pronuncie mais meu nome.
Guarde a marca dos dentes
como lembrança na pele.

(do livro "Poemas Suíços" - Ed. Ibis Libris, 2004)

9.12.08

"Algum dia você poderia?" (Maiakóvski)

Manchei o mapa quotidiano
jogando-lhe a tinta de um frasco
e mostrei oblíquas num prato
as maçãs do rosto do oceano.

Nas escamas de um peixe de estanho
li lábios novos chamando.

E você? Poderia
algum dia
por seu turno tocar um noturno
louco na flauta dos esgotos?

(1913, tradução de Haroldo de Campos)

5.12.08

"caos"

Estou à espera de qualquer coisa. Qualquer coisa que se move por perto e me apavora. Me entorta a espinha. Mas é um perto que não posso ver. Não existem milhas ou léguas que nos separam. Estamos em lugares distantes e ocupamos o mesmo espaço. Mas posso sentir seu bafo quente, sua passada larga e lenta, sinto seus dentes rangendo e algo me diz que isso não é nada bom. Digo apenas que posso sentir. Digo mais alto, algo ainda não me convence, então digo muito mais alto, e penso que perdi a razão. Posso sentir. Isso parece uma frase um tanto desesperada, de alguém insensível querendo se justificar. Sentir é algo assim tão amplo, tão vago que preciso andar pela casa a topar com móveis pontiagudos escarnecendo com as mãos para cima. Tenho um pensamento patético, no fundo de outro pensamento óbvio. O pensamento patético é: “O que estou esperando?” Ele está dentro do seguinte pensamento óbvio: “Por que demorei tanto para me dar conta de que precisava me perguntar isso?”. Fatalmente alguém há de ler isso. Se for um canalha, rirá. Um medo equivocado toma conta de mim. Bato as teclas automaticamente e elas parecem grudar-se à tela branca sem vontade, como o demônio deformado que nos persegue nos sonhos ruins. Ele nunca nos alcança, mas sempre quase nos pega, e nunca desiste de correr, assim como eu mesmo que, no sonho, vou me exaurindo, cada vez mais exausto, e começo a ver enormes castelos de areia e penso em Franz Kafka e Ferdinand Céline. Tenho medo, muito medo, estou exausto, por isso começo a fazer citações. A palavra exausto me lembra de que, no meio de todas essas elucubrações revoltantes, continuo à espera, sem respostas, nem mesmo ando, estou à deriva e minto sobre ilhas pré-diluvianas. Nenhum milagre ao redor. Tento desenhar uma andorinha no papel branco. E como seria mesmo uma andorinha? Alguma coisa deve estar muito errada. Não reconheço o que desenhei e apelo a um psicologismo cínico. Deve ser algo mais por dentro. Repentinamente sinto uma vergonha incomensurável e começo a gargalhar. Encho e esvazio copos empoeirados. Sei muito bem que as gargalhadas são muitas vezes as primeiras demonstrações de loucura segundo nossas avançadas metodologias humanistas. Devo me controlar. Os psicopatas dizem sempre a mesma coisa. Devo me controlar. E os olhos já escaparam às órbitas, o saco plástico impede a respiração. Acontece uma espécie de barulho surdo, contínuo, por dentro do ar. O barulho de algo que se aproxima. Algo se aproxima e essa é a única evidência.

O dinheiro está terminando, o país prestes a quebrar. Existem ainda alguns poucos de olhos esbugalhados, enormes papadas, verdes de ganância, por cima da carne seca. Mas são cada vez em menor número e seus dias também estão contados. Estaremos, todos, em breve nos digladiando nas ruas por comida? Não haverá mais o financiador e o financiado, ambos estarão juntos roendo os esgotos de uma belíssima cidade, uma espécie de Grécia babilônica, os restos de uma raça antiga, inusitada e sem explicação? Nada disso importa. Esta frase está fadada ao esquecimento e completo fracasso. Importa tão pouco que me esqueço a cada minuto do que se trata. As montanhas de areia se estendem diante de olhos ainda revoltados. Importa é “para frente amor, estamos vivos!”. Meu deus, recorro a ti, a que ponto cheguei? Toda satisfação é momentânea. Mas nisso é importante não pensar. Os horizontes cor de violeta repousam pavorosamente sobre a visão. E quando me dou conta estou ali, a saliva pastosa nos cantos da boca, os olhos vermelhos para fora das redomas, alguma coceira um pouco mais na direção do espírito sem controle, com o rosto colado às mil portas sem entrada, à espera de qualquer coisa que virá de súbito, arrastando as emoções a chicote, devastando as últimas ameaças do tempo.

30.11.08

"Lady Day"


nanicos pisaram as gardênias
nascidas da pedra e do suor
e mesmo o solo esmorecido
ajudava a situar a precoce
figura de mulher em que vibra
dor dos séculos, sinos da terra.

entre brancos e pretos, a filha
amante preciosa, pele de visom
sem saber que poucos homens
poderiam ouvir a verdade bruta
sem pasmarem com o derrame
de tanta violência, tanta ternura
como dizia aquele outro poeta
que morreu de acidente e afinal
você tantas vezes quase se foi
que agora me parece fácil falar
assim como de alguém a quem
se pode verdadeiramente amar
por estar morta e por isso dentro
de cada um que por tantas vezes
quase se foi e não sabe onde está.

mas eles fecharam as cortinas
os nanicos que cospem moedas.
mesmo assim ali há uma fresta,
uma luz cansada tremula ainda.

não foi mesmo possível, Billie
corrigir o coração dos homens
escapar ao terror a cada esfinge
mas essa luz cansada é a prova
de que onde houver amor e fome
haverá aquela música de marfim
essa brutal melancolia africana
para lembrar que vivemos muito
muito pouco, e não temos demais.

29.11.08

LEONARDO MARTINELLI (1971-2008)

Mais um poeta se matou. Por que essa frase parece tão cômica e eu não consigo rir? – a cara torta se engana diante do espelho. A morte do poeta é o próprio mito da contradição de viver. A busca do poeta, o verdadeiro poeta, que é só poeta e mais nada, portanto sendo nada, a busca do poeta é sempre a morte, o andar cambaleante de quem espera um cataclismo, a direção do poeta é sempre a resolução inevitável do que se funde fátuo, mas muitos poetas, como quase eu muitas vezes ou anteontem, não admitem que na busca da morte se encontre a vida bruta, sem regras, inacessível porque dispersa e cheia, sem arestas. E para isso serve o poeta: ensinar sobre a vida com a própria morte. Não falo aqui de apologias ou bustos erguidos em pedra. Falo da presença eterna dos vultos, dos signos insondáveis que regem vagas potências, falo aqui da necessidade violenta de se olhar fundo a morte nos olhos, assim frente a frente, oferecer a ela um pirulito, mas há que se voltar, isso muitos poetas se esquecem, porque algo de fora, de muito lá fora, lembrou que nem tudo está sob controle, e as paredes de repente incharam, e os amigos tomaram as mais longínquas embarcações, mas equivoca-te se pensas estar só, és da cor do precipício mas brilha em ti a máscara mais delicada, pudera alguém chegar bem perto, inclinar o julgamento para apaziguar o ânimo, devagar, junto ao ouvido, dizer: “calma, dorme um pouco, esquece isso”. Mas estás num círculo de coisas que giram e não lhe dizem mais nada, procuraste em falsos cânones a resolução do tempo errado, o tempo certo se apresenta e não sabes que decisão tomar, as portas se fecharam, não lembras de nenhuma prece, és todo caminho sem rédea, o desfecho se precipita à preguiça irrevogável de apenas e tão somente ser. É, sim, extremamente compreensível esse clichê antigo: a morte de mais um poeta. O que não se compreende muito bem – ah e com que força! – é a contradição representada pela sua perda, sem ao menos reconhecer sua presença. Porque o poeta será sempre essa contradição contínua, essa contramão da hipótese, vácuo a que se soma a palavra, que deserta sem se desculpar.

27.11.08

"um blue"

Então a música feita de fuligem se instalou provisoriamente por dentro das redomas do cérebro, e ele num piscar de olhos, muitos olhos em volta e por entre as moitas de calças arriadas, não estava mais ali, diante de máquinas feitas para não serem percebidas e sim eficientes na sua eficácia, mas ele não era de repente mais uma dessas máquinas e podia ouvir cordas, chocalhos grudados aos pés em choque violento com uma poesia analfabeta, a seqüência pulsante de que se precisa para suportar as esporas nas costas, o cavalo que suava pelas narinas, o povo de boca aberta, os pescoços vermelhos tilintando sob o sol, e ele não era mais máquina olhando para máquina apenas, havia na atmosfera algo que parecia espremer as existências para um canto sem oxigênio, havia o óleo quente e o cheiro de galinha frita, alguma risada desafinada e a lembrança de que somos todos feios em essência, de que, incompletos, arquejamos e esperamos ansiosamente pelo fim alheio, de que somos feitos de poeira cósmica e por isso devemos nos abraçar, unir os corpos feito elemento químico, e não era mais possível agora odiar a feiúra, negar a natureza como presente trabalhoso, sons muito agudos marcavam a chegada dos desajustados, a milenar cavalaria barroca, os traços de pele curtida rechaçada pelo sol com náusea, o gêiser de mil bocas abaixo da terra como que se mexendo, prestes a mudar de novo o quadro, e ali estamos todos em roda, não há mais porque falar em nada, somos a junção da existência e precisamos fazer seguir a ventoinha ceifadora, cacete falar em dicotomias mitológicas: bom-mau, bonito-feio, deus-diabo, estamos aqui e queremos tudo que não for diagnosticável, queremos a morte desprovida de sintoma, o toque de caixa exige que se preste atenção ao ritmo, as notas são pés negros que pulam do tiro que obriga a dançar – e de onde vocês acham que veio o reggae? – os pés sobre a brasa, a música primitiva dos homens sincréticos, dos negros fugitivos, a música dos contrabandistas de vinho barato, daqueles que recolhem tocos de cigarro do chão e, sempre elegantes, tiram o chapéu a quem passa, antes de lhe roubar a carteira, porque somos todos um pouco pedintes, rasgos ainda em sangue sensíveis ao artifício, por isso a música veloz, o murmúrio macambúzio por tragédias ancestrais, somos a música de após o maremoto, somos apóstolos vestidos com macacões sujos de graxa, mas isso por agora não é mais problema, chegue mais perto, não ligue para o cheiro forte, quanto à música, não se assuste, ela se torna mesmo mais rápida, assim, de um suingue como o coração ainda vivo, pegando fogo de repente no meio do ar, mas não perca o ponto, bata forte o pé no chão porque é música da terra, encha o peito de ar e sorria, pois pode ser a última vez – e será.

Então resta vestir o capuz, acomodar a corda em torno à garganta ressecada, as mãos impotentes não fazem mais acordes, estão trincadas uma na outra e delas agora escorre a seiva extinta, a música então desacelera, a paisagem fica por um instante esfacelada, todos fazem o sinal da cruz, mas deus sabe que chega a hora de cada um, e todos pensam: “mais um dia e não chegou minha vez” – a música pára somente quando não passa de um corpo dependurado.

25.11.08

"simples"

meu amor
é culpa das
noites banais
e das flores
encurvadas
por poderes
sobrenaturais:

alimentação
dura de paredes
inconstantes.

"esperando o metrô"

- O Tchekhov é o escritor que tem maior intimidade com a natureza.

- Que tipo de intimidade?

- Sexual.

“ladainha”

uma pessoa imbecil
que se comporta como uma pessoa imbecil
não passa de uma pessoa imbecil.

agora...

uma pessoa atenta
que se comporta como uma pessoa imbecil
para se infiltrar no mundo dos imbecis
pode ser o que bem quiser.

19.11.08

"o problema da comunicação"

verdade

- você diz sempre a verdade?
- de qualquer modo eu diria que sim.

gripe

- sempre que eu me gripo meu nariz fica um saco.
- engraçado, sempre que eu me gripo meu nariz continua um nariz.

frases

- há frases ridículas quando ditas aos vinte e poucos anos...
- esta, por exemplo?

"poema ridículo"

sou matéria pura
carne em chamas
inchaço de urina
sou matéria-prima
a boca na lama
o fruto proibido
da minha verdade.

não busco verdade
pois na busca dela
matamos a poesia.

um caminho para
onde não importa
a vida não passa
do caminho para
o nó sem aviso
que se perde quando
confiamos demais
na direção dos pés.

17.11.08

"uma trégua"

por favor não cuide
do seu amor, deixe-o
em paz, do contrário,
transformará em ódio
a pele de cor púrpura.
o que se cuida se mata,
pois abandone seu amor
sob chuva forte, pise,
e faça com que duvidem
de sua força, e queime
sua pele rara, arranque
seus olhos, então cego
ele não verá nada e só
depois ele não será mais
seu amor, ou de alguém:
ele será amor do mundo.

14.11.08

"longe do perdão"

é preciso dizer o que não se sabe.
é extremamente necessário sorrir,
equivocar a face longe do perdão.

a linha parece curta, mas o sangue é ralo.
melhor não pensar no que teria coalhado
e abraçar o refluxo, desinfetar a marcha,
como há milênios somos aos milhares viemos
exigir implorar em silêncio pela última antítese
que no fundo nos constrange e ao fim da conversa
já não sabemos se somos caetano, chico ou hitler.

e as letras minúsculas se proliferam sem aviso
e carregamos a marca dos milênios, irresolutos,
mas a resolução só está na cabeça de quem precisa
e a precisão está na mente de quem ignora o muito.

12.11.08

“whitman = pessoa + beckett”

Quero dizer e repetir e repetir e dizer mais uma vez. Que importam as convenções do tempo, a boca funda da esperança tardia? Quero partir os ossos antes que seja tarde, resgatar o brilho no fundo do que um dia se fez criança e hoje não lembra e se vira do avesso e morre, sente a pele descolar, os olhos repuxados pela goela do absurdo. Mas sinto qualquer coisa por dentro envergonhada do estertor, a caixa que pensa se compele, então uma sensação de algo súbito subindo pela garganta e que não pode sair porque são milênios de mentiras e precisamos das letras. Mas quero dizer e dizer e repetir. Repetir que não quero ter que dizer coisa nenhuma e repito. É necessário mais que uma forma, mais que um conteúdo, benzina, um precipício, é necessário acima de tudo o ímpeto desesperado de repetir e dizer mais uma vez e dizer de novo e mais alto, não gritar, lançar os olhos para fora das órbitas, espremer o mundo sobre a retina, repetir a tauromaquia da visão turva em vermelho, com o espeto no dorso, ainda assim derrubar os muros da arena, expulsar os vendilhões, ludibriar os sicofantas e, às crianças, sorvetes de marfim. Ah como eu queria poder dizer e repetir tantas e tantas vezes sem usar a substância do ar, não para me fazer entender apenas, mas para me entranhar da idéia de me entregar ao impulso sem ordem que move as coisas no espaço. Ah tão bom seria gritar cheio de veias “Daqui pra fora, políticos, literatos, comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs, tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida. O espírito que dá a vida neste momento sou EU!” Mas não me assusto se acordar sentindo um aperto no peito sem que se encontre uma boa explicação para isso. Às vezes ocorrem uns reacertos nos subterrâneos da nossa mente que não alcançamos, então é preciso soltar a linha, quebrar as portas à chave, é preciso esbravejar e fazer tudo com fome, nunca se esbaldar, do contrário, deixar a fome roer para então dar o bote, chegar à ponta do animal para resgatar o sentido do que fazemos ainda e não sabemos mais. Gritar mais alto e ser tudo que gera e alimenta e apodrece, ser ao mesmo tempo o padre e a catedral em chamas. Repetir e, quando o derrubarem, repetir outra vez. Negar-se qualquer causa em prol do sacrifício contínuo. Eis tudo o que deve ser feito diante da roda enorme. Errar ou não errar é apenas um detalhe. No jogo de corpos humanos vale bem mais o pulo.

10.11.08

"A boa vida segundo Hemingway"


Scott Fitzgerald veio me visitar. Ele estava hospedado no Ritz, como de costume. Sua filha pequena, Scotty, estava com ele. Enquanto conversávamos, ela disse que queria fazer xixi, mas, quando eu disse a Scott que o banheiro ficava no andar de baixo, ele disse à filha que o banheiro era muito longe e que ela fizesse ali mesmo, no corredor. O concierge observou o filete descendo escada abaixo e subiu para saber o que se passava. "Senhor", ele disse a Scott muito polidamente, "não seria mais confortável para a senhorita usar o banheiro?" Scott respondeu: "Volte para seu quarto miserável, concierge, ou então vou colocar sua cabeça na provada". Ele estava furioso. Voltou para meu quarto e rasgou o papel de parede, que era velho e começava a descascar. Implorei a ele que não fizesse aquilo, pois, como sempre, o pagamento de meu aluguel estava atrasado, mas ele estava nervoso demais para poder ouvir. O proprietário me fez pagar pela recolocação do papel no quarto todo. Mas Scott era meu amigo e, em nome da amizade, tolera-se muitas coisas.


***


Quando eu era jovem, nunca quis me casar, mas no momento em que desejei isso, nunca mais consegui ficar sem uma esposa. O mesmo se aplica a ter filhos. Nunca quis nenhum, mas depois que tive o primeiro, nunca mais quis ficar sem eles. No entanto, para ser um pai bem-sucedido, há uma regra absoluta: quando você tiver um filho, não olhe para ele durante os primeiros dois anos.


***


Conheci James Joyce em 1921 e convivi com ele até sua morte. Em Paris, ele estava sempre rodeado de amigos profissionais e sicofantas. Costumávamos ter debates que chegavam a ficar bastante acalorados e, mais cedo ou mais tarde, Joyce incluía na discussão algum insulto realmente ríspido; era um homem bom, porém desagradável, especialmente se alguém começasse a falar sobre o ato de escrever. Desagradável como o diabo, e, quando ele já tinha provocado um verdadeiro tumulto, repentinamente ia embora, esperando que eu lidasse com os sujeitos que vinham atrás, pedindo uma satisfação. Joyce era muito oruglhoso e muito rude - especialmente com imbecis. Ele realmente gostava de beber, e, naquelas noites em que eu o trazia de volta para casa após várias e prolongadas rodadas de bebidas, sua mulher, Nora, abria a porta e dizia: "Aí está, James Joyce, o autor, novamente bêbado com Ernest Hemingway". Ele tinha um medo mortal de relâmpagos.

7.11.08

“ofício”

Para falar a verdade, há qualquer coisa de fútil em somar palavras. O tipo inquieto, os olhos preguiçosos, e de nenhuma ocupação, alheio, pouca técnica e muito sentimento, intensidade, não podia ver uma chuva e achava que era comunhão com deus. Mas, bêbado, não havia deus. Era a própria afirmação da consciência do Senhor. Acima de tudo sentia-se amaldiçoado, um pouco como que se arrastando por uma trilha desastrosa. Perseguir o desastre, aí estava a grandeza. E, no caminho, descrever a paisagem. Os corpos caindo em torno, as cabeças soltas ainda gritando, os campos azuis, as paredes submersas, os cata-ventos em chamas e as harpas vermelhas. Daí o começo da morte, quando o corpo, mais complexo, não dava conta, e a vida tornava-se algo secreto. Doía o cenho manter os olhos injetados. A desculpa para o precipício era falta de força moral, talvez a perda da mãe muito cedo, o que atraía almas caridosas, logo massacradas por sua ferocidade juvenil. Pois que o corpo era continuação do raio, o sumo do prazer que deveria circular pela carne presente, constantemente em cada atitude o baque, o trocar o cerne, o ser antena parabólica, o ser deus e diabo, acender as velas e cuspir no chão. Perder a dicotomia: seu único pavor. E toda essa idéia patética consumia-lhe as veias. Não sabia ele que para ser o que teria sido era preciso receber os tomates, justificar a existência do homem através de demonstrações ridículas de toda espécie, ser o bêbado que se estapeia ou o palhaço que se molha, acima de tudo um microscópico ser, urgido na linha do tempo sem sentido, o ajudante de pedreiro quando as pedras são de Sísifo, o santo decaído porque não pode negar o pecado, o que se entranha sem fazer alarde e grita quando se apavora. Mas, para falar a verdade, há qualquer coisa de fútil em somar palavras.

6.11.08

"Pastoral" (Murilo Mendes)

Traze a sandália e o bordão para passearmos no campo
[sereno.

Somos contemporâneos de raças extintas,
Viemos de torres golpeadas e de hóstias profanadas.
Até que desçamos para os rios invisíveis
Convém dançar entre os humanos, comer o pão e o mel.
Os imortais nos aguardam nas esferas da música:
Muitos pássaros, muitas luas viajantes têm nostalgia de nós.
Esquadrilhas de mitos são enviadas para nos protegerem.
Hospedamos companheiros imprevistos,
O Máscara de Ferro, Nosferatu,
Ou então a Órfã do Castelo Negro.
As fontes esperam nosso sinal para murmurarem,
E os germes da peste se contêm ante a nossa benção.
Paz aos corpos insaciados de amor, aos membros genitais
[em delírio:

Suspendei de novo a gaiola dos anjos,
Voltem de novo os lírios do vale em lugar dos fuzis.

5.11.08

"fim"

nunca mais bonnie & clyde
a pele cinza, o dia doloroso,
não mais o passa-que-pego,
estamos sós, a lua pastosa.
imaginar o amor é poético,
amar é pôr a poesia em risco.

30.10.08

"O século XXI me dará razão" (Roberto Piva)

O século XXI me dará razão, por abandonar na linguagem & na ação a civilização cristã oriental & ocidental com sua tecnologia de extermínio & ferro velho, seus computadores de controle, sua moral, seus poetas babosos, seu câncer que-ninguém-descobre-a-causa, seus foguetes nucleares caralhudos, sua explosão demográfica, seus legumes envenenados, seu sindicato policial do crime, seus ministros gangsters, seus gangsters ministros, seus partidos de esquerda-fascistas, suas mulheres navios-escola, suas fardas vitoriosas, seus cassetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida, sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara da cultura, seus pró-Cuba, seus anti-Cuba, seus capachos do PC, seus bidês da direita, seus cérebros de água-choca, suas mumunhas sempiternas, suas xícaras de chá, seus manuais de estéticas, sua aldeia global, seu rebanho-que-saca, suas gaiolas, seu jardinzinhos com vidro fumê, seus sonhos paralíticos de televisão, suas cocotas, seus rios cheios de sardinha, suas preces, suas panquecas recheadas com desgosto, suas últimas esperanças, suas tripas, seu luar de agosto, seus chatos, suas cidades embalsamadas, sua tristeza, seus cretinos sorridentes, sua lepra, sua jaula, sua estrictina, seus mares de lama, seus mananciais de desespero.

"note upon the love letters of Beethoven:"

think: if Ludwig were alive today
tooling along in his red sports
car
roof down
he'd pick up all these mad
hard cases on the boulevards
we'd get music like we
never heard before
and he'd still never
ever find his
Beloved.

***

"nota sobre as cartas de amor de Beethoven:"

pense: se Ludwig fosse vivo hoje
passeando com seu carro esporte
vermelho
com o teto arriado
ele apanharia todos esses loucos
casos difíceis nos bulevares
nós teríamos música como
nunca foi ouvida antes
e ele ainda assim nunca
jamais acharia sua
Adorada.

(poema de Charles Bukowski / tradução Leo Marona)

24.10.08

"roçam-se os pés"

acho que todo mundo
um pouco no fundo
sem saber como
quer o amor
como o fruto
de outro sigilo
secreto defunto
mal-estar no outro
sem saber que quer
mesmo e sem dúvida
um canto de vírgula
que sirva de túnica
às tardes esquecidas
que curam e ardem
nas noites sem lua
nuas como aquela
silhueta sem foco
que falta na cama
ao lado do cheiro
do beijo de olhos
do fim de semana:
herança de traças.
agora é tarde e frio
os cílios se dobram
e existe certo vazio
que só preenchemos
com calor hesitante
e os pés enlaçados
carregam o instante
gelado contra gelado
é igual a dois lados
para sempre sólidos
inquebrantáveis que
quando penetram poros
marcam nossa distância
com hematomas lilases
como flores de inverno
na estampa do lençol.

mas bem lá no fundo
quando a luz falece
todos nós esperamos
alguém que nos ame
como se não soubesse.

"orangotangos"

herdeiros da poesia enlatada e da urina impura,
colheremos o excremento de mentes inseguras.

engoliremos o escárnio de anos em banho-maria.

as tradições tribalistas dos hinos de guerra e paz,
nós as criamos todas, e estávamos desacordados.

não tente entender as convicções que ressonavam,
carinhosas como abutres sobre a carne entorpecida.

herdeiros da poesia sem olhos, tatearemos por trás.
navegaremos incertos, horizonte de mil naufrágios.
e de nossos olhos, ao menos, pobres, os abutres
herdarão um resto magro – de uma arte ancestral.

"shakespeare"

se nós escrevêssemos
tudo o que sentíssemos
estaríamos sempre sós
e para sempre ocupados
porém não tão infelizes.

23.10.08

"Intervalo"

Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa.
Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação externa e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil. Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.
Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é vê-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos!
A mínima acção é-me dolorosa como uma heroicidade. O mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.
O ideal era não ter mais acção do que a acção falsa de um repuxo – subir para cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma e fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente.
(do Livro do Desassossego, escrito por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa)

17.10.08

"BR-3"

Algum escritor uma vez disse que as boas famílias são iguais, mas cada família ruim tem sua particularidade fundamental, que permanece. Não me lembro quem disse isso, era um início de romance, talvez um russo. Os russos podem não saber mais, mas sabem melhor.

Mas isso não importa, não vou procurar saber. Pobres das famílias ricas de afeto, que são iguais entre si. Prefiro as famílias turvas, cada uma com um abismo próprio e infinito, porque não-diagnosticado. Elas são a negação da natureza - e esse é o papel fundamental do ser humano: sabendo de antemão que sairá derrotado, negar com todas as forças aquilo que o limita, que oprime sua contradição, que fornece tudo e não explica nada. As famílias ruins duram mais. Elas mantêm o mundo girando, torto mas próprio, perfurando conveniências.

Exige-se uma especialidade para que se atinja a normalidade - e ainda não se sabe que tipo de cérebro pode se satisfazer com esse tipo de metodologia. Mas não me especializarei, de minha conta, porque isso não apenas não convém: isso não importa. Isso é o que importa: que isso não importa. O mundo não é especializado - digo veja o que somos capazes de fazer um com outro apenas por não estarmos preparados - e tudo o mais resultará em estupenda frustração.

Especializando-me deixarei de conhecer muitas coisas em detrimento de poucas, mas, no entanto, sem me especializar não conhecerei nada. Isso me parece mais coerente diante do tamanho da catástrofe, mais próximo do que não podemos mas chamamos de "verdade original". Aquela inapelável, a chance dúbia de duas patas e uma cabeça que nega a verdade porque ela não é satisfatória, foi programada para não ser.

Não conhecer nada: nosso drama habitual. Sigo nessa direção vendado e com as pernas amputadas, me arrastando com os lábios trêmulos e o coração gelado. Do que estou atrás? Não saberia dizer e isso, ao passo que me mata, me liberta. Mas de que me serviriam as pernas se eu fosse especializado em viver? O que são as perguntas quando se esperam as respostas certas? Especializado eu teria que permanecer parado, com a seta sempre em riste e o corpo tranqüilo, até a falência inevitável. A gente não morre porque cansa, a gente morre porque não se desespera mais.

Não seria preciso andar de qualquer forma. Acontece que o abismo vem sempre em nossa direção. Eles se movem, isso é simples. O caso é que os especialistas não sabem disso, pois atingiram a normalidade. A normalidade é como forçar o mundo para dentro de uma caixa de espinhos dourados.

Mas, por sermos extremamente limitados, andamos em frente. Não sabemos que frente, mas nos ofendemos se nos questionam. Andamos pelas vielas sem que nos dêem por vistos, em busca da SENSAÇÃO. Essa fugidia, em caixa alta. Andamos e não dormimos direito. Nossos quartos são escuros, pequenos cadafalsos. E nem mesmo sabemos descrever a sensação de estar, pois uma vez estando, estamos insatisfeitos e não pensamos em mais nada, aceitamos tudo. Descrever é mentir, o verbo amputa o sentido.

Parece que o mercado financeiro quebrou, os bancos estão em greve, os investidores fantasmas em pânico, alguns aposentados não conseguem seu dinheiro e passam fome ou morrem de doenças leves. Aqui nada disso importa. Estou seco no meu canto, e nada me falta além da noção de galho pisado. A noção, eis a única condição prestativa para a morte. O resto não importa.

Queria dizer algo mais, mas o cansaço me incomoda, como um tiro no cerne. Brigar e amar são a mesma coisa: não há dignidade. A verdade nua incomoda mais do que uma crônica para explicá-la por si própria: o tal sonho dentro do sonho de Edgar Allan Poe. Não há sujeito depois do verbo. Essa massa disforme, eis a grande dissonância. O teto preto da verdade estupenda, em prol da verdade de cuecas.

Mas por que perseguimos e fugimos de pessoas queridas pelas ruas que não acabam e nem queremos conhecer? A explicação disso, ao meu sentir, iria em direção ao extermínio. Não haveria o que dizer. Se ao menos pudéssemos nos ver nus, alheios ao destino incompleto. Mas não admitimos, seguimos senhores da razão, usamos verdades como gravatas apertadas. Mas as verdades são inconvenientes, e não sabemos onde achar a verdade voto de minerva.

A língua de fora, os ossos quebrando por dentro, "nada disso é verdade", a fome legitima a doença. Agora como dormir com ela, proliferá-la sem que seja câncer, o método desconhecido que prova a existência de deus? Senhor, abençoai os que não sabem rezar e babam nas horas equivocadas. Os que se vestem com milagres e deságuam nos colos alheios. Abençoai os entrevados com sangue nos olhos. Os inaptos para o vôo, que comem terra suja. Eles pagam pela vida plena, pelos desejos vagos de quem se diz feliz. É preciso o equilíbrio, e alguém deve sofrer. Mas estamos aqui e não conhecemos outra glória, somos tapete de sonhos.

E daí já não importa mais a família, a extração do membro, o reduto do espírito são. Mentimos inevitavelmente porque a verdade é intragável. A cada minuto mentimos: isso é estar vivo. Quando dizemos a verdade estamos dizendo simplesmente: "meu tempo é curto, não sei o que fazer". Mas não pedimos ajuda, somos seres humanos.

O cheiro da distância é o suficiente para planejar pecados. O pecado é o que, em nós, culpa deus – inexistente ou cômico. As traições tornam-se pequenas, o peito arde, "nada importa", diz o mundo por nós paralisado. Poesia é para quem pára o tempo. Coragem é para quem tem pouco. Para com o resto, há que ser leve, reparar na dobra entre as partes – e cada parte é um mistério.

E ficaremos apenas com o que importa: estrada onde corpos caem à revelia, e onde estivermos estaremos os dois, quem sabe um, e morreremos da mesma solidão que renova o mundo, de mãos dadas.

2.10.08

"noite chuvosa"

a noite chuvosa traz o presságio
do amigo amputado sobre a cama,
das gavetas vazias, terrível sonda.
a noite chuvosa prevê o engasgo,
a falta de apuro na sutura do peito,
o grito selvagem, o vento no rosto
e não saber – não saber que faz andar.
a noite chuvosa traz de volta a maca
com corpos vazios – todos eu mesmo.
eu que, abstêmio, espero o milagre
e envergonho porque no fundo sei:
não há milagre mas a noite chuvosa
está mais por dentro – lá fora o sol.

26.9.08

"victor hugo"

o último dia de um condenado,
não o célebre francês, o barba,
ou as gargantas do suicídio.
alguém que acorda em pintura
e se frustra com a cor do mundo,
mas acredita nele, mente nele.
o da vida fátua, rente à retina,
desejo ante uma revolução inapta.
não o inaudito, antes de tudo
o cálido, o poeta sem remorso,
a violência sem resposta, o muro,
amigo de quem se cuida, algo assim
como eu - um pouco de cada um,
irreconhecível todo em branco,
diante de garrafas e flores pisadas.
me falta o ar, as pernas já bambas.
talvez você esteja aqui, talvez nós.

23.9.08

"a vocês"

Gostaria de dar algumas palavras aos estupradores de crianças e até mesmo fetos ainda em formação, às bandeiras erguidas pelo próximo traidor, ao que me faz chorar em certas tardes gaiolas e eu não sei o nome dessa sensação que faz chorar, mas não é choro de quem perde, é choro de quem nunca teve, e não sei de nada e espero tudo, o homem cotidiano descrito por Camus, que se levanta e não quer fazer o mal por medo de ser punido por seres magnânimos e matemáticos.

E a eles eu gostaria de entregar algumas palavras. Aos que abrem estradas sobre corpos humanos, aos metafísicos da consolação, a todos os grandes poetas que espancavam com amoladores de faca, na escuridão dos sentidos, crianças indefesas, que de alguma forma crescerão para colher os louros do patife laureado. Aos que enrolam dinheiro com esparadrapos na cintura e estão prestes a explodir. Aos que farejam como porcos e se alimentam de entranhas.

Dedicaria, se tivesse a grandeza necessária, com firma autenticada em cartório e assinada por deus, algumas palavras aos ilustres freqüentadores de bordéis, senhores poderosos e bonecos na cama, tão iguais a vocês e a mim, mas menos iguais a vocês, prefiro pensar, vocês que viram a cabeça, vocês que cortam a corda, vocês que aplaudem o pôr do sol e, bêbados, matam. Vocês que dedicam poemas e, ensandecidos, levam as mãos à cabeça. Vocês que presenteiam mendigos com cachaça nas datas festivas e os atropelam pelo resto do ano.

Aos contrabandistas de emoções, delfins elaborados em barro sintético, dou portanto algumas palavras a vocês, atrozes espelhos de si, sorridentes dentro da sombra, hienas com o dedo em riste, assassinos em série, candidatos à Prefeitura.

O mundo é de vocês mas, não se enganem, ainda estamos aqui, do outro lado, do lado fantasioso, do lado ingênuo, do lado utópico, do lado ultrapassado, do lado alienado, chamem do que quiserem. Daqui vemos muito bem e também sabemos esperar. Não há cá muita sombra, mas a vista é privilegiada e ainda temos pernas. Nossa cabeça está um pouco avariada, somos produto de uma noite tenebrosa, mas talvez isso nos mantenha absurdos e, portanto, de acordo com a vida.

É por isso que dou, entrego, cuspo estas palavras no colo dos formadores de opinião grisalhos e pedófilos, dos ventríloquos de auditório simpáticos e inofensivos, por isso letais, aos pantagruélicos donos de negócios promissores, que geram milhões e são incapazes de escolher uma esposa decente. Aos adolescentes que apodrecem nos edifícios comerciais como enormes consultórios dentários, ao que sorri e apunhala pelo gosto doce do sangue pastoso, ao fratricida de mil olhos e com a palavra certa.

Por causa de vocês nos restou muito pouco, e disso fizemos um mundo. Vocês líricos byronescos de visão turva e passo manco. Vocês integralistas enjaulados na cadência envelhecida. Vocês caçadores de recompensa em forma de mais um pouco de tempo. Vocês que, munidos de façanhas milenares, garantem a própria lápide e nos mastigam os anos.

Aos demolidores de séculos, atacadistas sentimentais, devoradores da esperança, destino estas palavras, que terminarão em breve e serão pó como tudo:

A terra é árida, o terreno não muito fértil, usado pelo avesso, mas nas veias ainda corre o algodão. Vocês nos ensinaram a quebrar os pés quando precisávamos de abrigo, nos mostraram o desgraçado jogo da oferta. Vocês nos fizeram saber sem esperar por mais nada. Estamos aqui nus, sim, a pele desmanchada. São feias as marcas no corpo, obra compulsiva de uma espécie milagrosa. Mas aprendemos a atirar com a língua, somos bardos e nosso desafio são os dentes roxos. Nosso escudo é o coração, outros já disseram. Estaremos esperando por vocês, prontos.

"toni"

hoje de manhã
um sujeito na rua
insistiu que eu era
o Toni Platão.
Não fosse pelo Toni
e isso até que não
soaria assim tão mal.

20.9.08

“mais estranho que o paraíso”

andar pelas ruas se tornou algo banal.
me pergunto: será o fim da poesia?
tanto faz o que é ou não é ou se é.
o que é ou não é de qualquer forma será
e então já foi – não importa mais, é resto.

sou alheio aos homens e deles me alimento.
tudo não passa de tempos verbais,
pequenos erros bem-intencionados,
o não-dito, um embarque imediato
para Budapeste.

escrever portanto um apenas para o cérebro,
para a massa disforme que formula enganos.
apenas para limpar o antro, polir a máscara,
criar um novo tédio dos passos se somando.
dizer "te amo" como quem acena de um trem.

19.9.08

"Helena Ignez"

chovia, sim, chovia hoje,
e ninguem mais sabia
onde chovia, se era dentro
ou se era fora do corpo.
fora certamente chovia,
dentro era um presságio,
e talvez porque eu usasse
meu fantástico sobretudo
talvez isso fosse chover.
era uma padaria, era sim,
era uma padaria, e lá eu vi
a eterna musa do cinema
brasileiro, quando havia
cinema brasileiro, cinema
de vários lugares, e ela era
musa do cinema brasileiro:
Helena Ignez – e eu a vi
com meu sobretudo e ela
talvez achasse legal pois
olhou para mim sorrindo
um sorriso longe de musa
e ela estava velha, a musa
parecia fruta seca, poética,
e como no caso das grandes
aparições eu não fiz nada
mas pensei que gastamos
muito pouco nosso corpo
preocupados em durar algo
e ao morrer não sabemos
porque demorou tanto.

14.9.08

"Mr. Henry Charles Bukowski Jr."


“a poem is a city”

a poem is a city filled with streets and sewers
filled with saints, heroes, beggars, madmen,
filled wit banality and booze,
filled with rain and thunder and periods of
drought, a poem is a city at war,
a poem is a city asking a clock why,
a poem is a city burning,
a poem is a city under guns
its barbershops filled with cynical drunks,
a poem is a city where God rides naked
through the streets like Lady Godiva,
where dogs bark at night, and chase away
the flag; a poem is a city of poets,
most of them quite similar
and envious and bitter...
a poem is a city now,
50 miles from nowhere,
9:09 in the morning,
the taste of liquor and cigarettes,
no police, no lovers, walking the streets,
this poem, this city, closing doors,
barricaded, almost empty,
mournful without tears, aging without pity,
the hardrock mountains,
the ocean like a lavender flame,
a moon destitute of greatness,
a small music from broken windows...

a poem is a city, a poem is a nation,
a poem is the world...

and now I stick this under glass
for the mad editor’s scrutiny,
and night is elsewhere
and faint gray ladies stand in line,
dog follows dog to estuary,
the trumpets bring on gallows
as small men rant at things
they cannot do.

***

“um poema é uma cidade”

um poema é uma cidade cheia de ruas e esgotos
cheia de santos, heróis, pedintes, loucos,
cheia de banalidade e bebedeira,
cheia de chuva e trovão e períodos de seca,
um poema é uma cidade em guerra,
um poema é uma cidade perguntando ao relógio por que,
um poema é uma cidade em chamas,
um poema é uma cidade rendida por armas
suas barbearias cheias de bêbados cínicos,
um poema é uma cidade onde Deus anda pelado
pelas ruas como Lady Godiva,
onde cães latem à noite e perseguem a bandeira;
um poema é uma cidade de poetas,
quase todos um tanto semelhantes
e invejosos e amargos...
um poema é uma cidade agora,
50 milhas de lugar nenhum,
9:09 da manhã,
o gosto de bebida e de cigarros,
sem polícia, sem amantes, andar pelas ruas,
este poema, esta cidade, as portas fechadas,
barricadas, quase vazia,
desolada sem lágrimas, envelhecendo sem pena,
as montanhas feitas de pedra,
o oceano como chama de lavanda,
uma lua destituída de grandeza,
a pequena música que vem das janelas quebradas...

um poema é uma cidade, um poema é uma nação,
um poema é o mundo...

e agora eu enfio isso debaixo do copo
para o exame detalhado do editor maluco,
e a noite está noutro lugar
e débeis damas cinzentas estão na fila,
cão segue cão até o estuário,
as trombetas trazem a forca
enquanto homens pequenos se gabam de coisas
que não podem fazer.

tradução Leonardo Marona

9.9.08

"EL DESDICHADO" (Gérard de Nerval)



Je suis le Ténébreux, - le Veuf, - l'Inconsolé,
Le Prince d'Aquitaine à la Tour abolie:
Ma seule Etoile est morte, et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.

Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m'as consolé,
Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie,
La fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé,
Et la treille ou le Pampre à la Rose s'allie.

Suis-je Amour ou Phébus?... Lusignan ou Biron?
Mon front est rouge encor du baiser de la Reine;
J'ai rêvé dans la Grotte où nage la Syrène...

Et j'ai deux fois vainqueur traversé l'Achéron:
Modulant tour à tour sur la lyre d'Orphée
Les soupirs de la sainte et les cris de Fée.

***

Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,
O Senhor de Aquitânia à Torre da abulia:
Meu único Astro é morto, e o meu alaúde iriado
Irradia o Sol negro da Melancolia.

Na noite Sepulcral, Tu que me hás consolado,
O Posílipo e o mar Itálico me envia,
A flor que tanto amava o meu ser desolado,
E a treliça onde a Vinha à Roseira se alia.

Sou Biron, Lusignan?... Febo ou Amor? Na fronte
Ainda o beijo da Rainha rubro me incendeia;
Eu sonhei na Caverna onde nada a Sereia...

E duas vezes cruzei vencedor o Aqueronte:
Modulando na cítara a Orfeu consagrada
Os suspiros da Santa e os arquejos da Fada.


tradução Alexei Bueno

8.9.08

Fausto Wolff (1940 - 2008)



Então morreu o lobo. Morreu de ofício do tempo e sem reclamar. O deserto se fechou, o lobo não vive afugentado no eterno branco. Não é possível mantê-lo de pé sem o líquido da vida, que apenas os duros bebem aos borbotões, com rosto duro cheio de ternura, e os selvagens se lambuzam. Morreu então o lobo que, sempre ereto, uivava palavras em alemão. O lobo que escutava uma tristeza ulterior no vento de areal. O lobo que comia carne crua e esperava a lua para nascer a cada dia. Um dia ele não mais nasceu. O mundo do lobo é um mundo sem bondade nem crueldade, totalmente aberto e perigoso, um mundo sublime possível justamente por ser um mundo sem rédeas. Um mudo natural por si. A dureza do lobo vinha de saber que um mundo assim é cruel para os padrões humanos e que, portanto, a natureza era mesmo cruel na visão humana, e isso fazia com que nós humanos não soubéssemos realmente o que fazer ou desejar, pois a maldade era a nossa própria cabeça, e a única saída era tornar-se inumano para, assim, renegar a falta de humanismo da massa original, que não vem exatamente de nós, mas do que nos gerou e não sabemos. O lobo chorou muito com o tempo adverso. Em silêncio, soletrou absurdos líricos, usou pedras de travesseiro cético. Costelas à mostra, chorava devagarinho. A dor lancinante – boca de abutre no intestino – dificultava os ganidos românticos. O lobo chorou para a lua porque no fundo desejava chorar por tudo que é e não é o mundo com uivo completo de magnitude caudalosa, como um agradecimento amaldiçoado ao germe da faísca. Difícil saber agora o que fazer sem a presença arrítmica do lobo, como imaginá-lo acinzentado ao vento, dar carinho aos seus restos pútridos. Seu charme magnético de andar. Sua relação direta com o cosmos. Seu mais completo desinteresse sobre questões de ego ou repartição. Ah, e sua violência mitológica! As garras de fora no momento do pulo. As costas eretas no toque do verbo. O lobo agora, vieram buscá-lo. Trouxeram finalmente a foice, pegaram-no diante do último salto. Pela força única que sua ética denota, o lobo, é provável, virá outra vez, e outras, porque ele é costela da natureza selvagem, poesia de gatilho e meio-fio à luz de prata. Deus queira que esteja por paragem ainda mais árida, ainda à espreita, andando por quem não tem pernas, vivendo por quem não tem vida. Mas deus não existe, eis a dura beleza. E o lobo sabe que é matéria inata, ancestral crucificado da beleza primitiva.

5.9.08

"samurai"

eu sou o samurai.
um homem sozinho
com ganas de sangue.
o herói sem atitude,
potência indiferente,
espécime de vidro.
de verso em verso
a lâmina: o suicídio.

vilão sem identidade,
pária social, rasgado,
refrão sem codinome,
eu sou o samurai.
o passo além do corpo
o osso que interrompe
o medo: o fiel servo.

ao me ver não mova
a face sutil – espere.
lá do alto das colinas
vejo o vale em chamas
a espera de um milagre.
conto sete respirações
e vou morrer no fogo.
eu sou o samurai.

2.9.08

"desconstrução do amor"

o amor é uma arma
usada por covardes
com medo da vida.

o amor é uma ferida
que mantém a busca
pela espera frenética
que porá em risco
as nossas estruturas
e, sem dúvida, um dia
nos matará, pela falta.

ridículo falar do amor
como a cura do indigno,
como a ponte do suicida,
como a razão do sociopata,
como a fome do inválido,
como a bengala do cego.
mas o amor é tudo isso.

um erro por dia e planos,
o amor se basta na vontade,
porque, tal como o sonho,
o amor só vale noutro plano.
o presente do amor são juras
hipotéticas, metalingüísticas.

essência do amor é a solidão,
fonte dos poemas e das mentiras.
jamais haveria o amor solene
se não houvesse um abandonado.
o amor poético se dissolve fácil
no chá silencioso dos hipócritas.

ao falarmos “amor, amor, amor”
não precisamos falar “que fome”,
“como está frio aqui”, “eu tenho
o que eu preciso e me sinto vazio”,
“eu não sei o que preciso e sofro”.

mas em vez disso temos sempre
o amor cúmplice, o amor covarde,
o amor por tendência, construtivo,
positivista: o amor com ventosas.

o amor é mesmo a planta química
devorada por bocas anestesiadas.
ou talvez o amor seja outra coisa,
palavra fora daquilo que se pensa.

ninho de enigmas carmesim,
o amor ergueu acampamento:
ele também se esgotou de si.

portanto não se preocupe
se ao olhar fundo nos olhos
houver apenas um e um: dois.

com amor demais matamos,
degolamos desejos, sorrimos
pensando no que vai nos salvar.

quem sabe tendo o amor fugido
nos juntaremos outra vez por medo
e do medo, talvez, a igualdade
possa nos manter em silêncio,
mas ao menos de mãos dadas.

31.8.08

"Ao volante do Chevrolet"

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...


(Álvaro de Campos / Fernando Pessoa)

29.8.08

"uma cena como outra qualquer"

É só dobrar a Marquês de Olinda com os pelos do braço eriçados porque você está ouvindo Nick Drake cantando what would happen in the morning whem the world it get so crowded that you can’t look out the window in the morning e isso te emociona de uma forma patética então o peito infla, os pés parecem muitos, mas basta dobrar e olhar para debaixo do viaduto que você não verá nada de novo, tudo como uma cena qualquer de cada dia num lugar onde estão todos à espreita, prontos para correr ou te enfiar uma faca pelas costas, e basta olhar, não com muita atenção, para o viaduto em frente à saudosa Rua Marquês de Olinda, provavelmente em homenagem a um saudoso vigarista, e você não verá nada de novo, tudo como uma cena qualquer, roupas gastas balançando ao vento sobre pedaços de coisas ainda misteriosas e cerca de oito meninas de rua, já acima dos seus quinze anos e com corpos fortes como os daquele tipo de cão de corrida, você verá cerca de oito dessas meninas sem a moral ainda muito bem definida cheirando cola de sapateiro e rindo enquanto outras duas se dão socos aleatoriamente, como numa rinha de galo – algumas já sem forças, mas ainda bondosas, tentam apartar a briga e têm igualmente os cabelos repuxados e as cabeças arremessadas ao chão, e de repente outra mulher, puro osso, mais velha, se aproxima e segura uma das meninas-lutadoras pelo braço e não há mais tempo para ver a cena, é preciso seguir em frente quase como um fluxo mecânico, e na seqüência há um policial entediado ouvindo lorotas de um velho vendedor de flores que à noite, discretamente, trafica cocaína a gordas donas de casa, há duas noviças pedindo a fiado um cigarro num boteco e talvez se ouça uma troca de tiros, uma secretária que recebe flores do patrão sodomita, existem homens invisíveis lavando vidros sobre os prédios que se envergonhariam das tramóias que escondem, se pudessem, mas não podemos então seguimos, e estamos atrasados para um compromisso de vida ou morte, ao lado um senhor que teria sido um belíssimo Duque de Winchester raspa freneticamente com uma tampa de garrafa a tampa do esgoto municipal, com uma gana de torcer os dedos e pingar a testa ele raspa olhando fixamente para a inutilidade do seu esforço, ele não tem nenhuma sinfonia para ouvir, amigos com quem debater futilidades da vida comum, ele perdeu os filhos e os netos, ele raspa porque não agüenta mais, e isso não é nada de novo, uma cena como outra qualquer e dois garotos espertos entrando na loja de conveniências para roubar balas de fruta, e eles sabem que podem ser pegos, mas a vida é um velho oeste ilimitado, então resta seguir e tentar absorver o mínimo, uma freira conversando com um bêbado, as flores da tarde ainda não nascidas, mas alguns já velhos demais esperando impávidos por um milagre e eu me sinto velho e uso a mesma calça há oito anos, uma excelente calça, eu penso, e isso me enche de confiança, então se começa a estalar os dedos porque talvez seja aquela música muito bonita que John Lennon fez para o filho life is what happens to you while you’re busy making other plans e aquilo me parece mais uma vez extremamente enigmático, mas não há tempo para mais nada, resta apenas entrar no edifício, desmarcar o compromisso o qual já se perdeu, sentar e escrever sobre algo que já não é mais meu – e é de quem quiser.

26.8.08

"somos o mito"

somos todos sísifos sifilíticos
sem ter o que comer
atravancamos em bifurcações
sem ter o que comer
indo ao fim do dia sem critério
repetindo o processo da pedra
sem ter o que comer
criamos amor, criamos guerra
sem ter o que comer
gente de ouro, gente de merda
sem ter o que comer
com a brancura de anjo falso seguimos
o peito quer explodir, as costas vergam
sem ter o que comer
seguimos pálidos para o abatedouro.

"adão e eva remix"

uma garotinha se aproxima
vagarosamente de um menino
e entrega ao menino uma bola.

o menino olha para a garotinha
muito desconfiado e pergunta:

“então qual é a armadilha?”

15.8.08

"Minha Mãe" (Vinicius de Moraes)

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.

* poema retirado do livro "O Caminho para a Distância", primeiro do poetinha, publicado em 1933, quando ele tinha 19 anos.

12.8.08

"beethoven"

a palavra “peripatético”, a belíssima
palavra “peripatético” era muito
usada para defini-lo.

seu rugido alto, os braços sacudindo
enquanto andava à procura
da nota perdida no bosque, ao lidar
com as provações do mundo,
e as suas eram provações enormes.

hoje resolvi escrever para você, Beethoven,
o salteador de monarcas, o impulso pagão,
a prova mais concreta de que deus existe,
avarento inconcebível, crateras no rosto,
atarracado de andar inclinado para frente,
como quem espera por um raio ou surto,
os cabelos crespos, a pele flamenga, suja.

quem só sentiu-se bem dentro da própria gruta
e estabeleceu a síndrome do dilema contínuo
entre céu e inferno: seu gênio sendo inferno puro,
o céu pouso suave em meio ao sangue derramado.

hoje resolvi escrever sobre você com fome.
porque também eu me sentia traído por algo
sem forma muito definida, anterior à forma.
sem nenhuma culpa sentia-me enjaulado,
a mesma síndrome: mais um surdo crônico.

na minha ilusão de mundo possível
talvez com fome eu pudesse sentir
um pouco da fome que você sentiu
e quem sabe ouvir o ruído mágico
para então continuar até o cancro.

11.8.08

"homem-cotoco"


Ali está ele, sobrando em calças velhas, espalhado pelas calçadas da cidade em que não há mais tempo, catando latas e pequenos bibelôs ou pedaços de coisas quebradas.

O homem de poucos membros principalmente sorri. Só existe desespero nos que são vaidosos a ponto de sentirem que têm muito a perder. O homem-cotoco magistralmente sorri, pois dificilmente perderá mais alguma coisa, e nem a vida é mais alguma coisa. O homem-cotoco sorri porque não está na disputa imbecil pelo tempo. Ele está dissolvido no cimento entre carros e restos de macarrão que as pombas renegaram.

O homem-cotoco sorri, eis a cena deplorável. O homem-cotoco, apesar de tudo, é mais feliz do que você e eu. Ele não tem pelo que existir e, portanto, tem direito a uma felicidade sublime, posto que não é uma felicidade material. A felicidade do homem-cotoco desnuda o homem de fé. Nada poderia ser mais cristão que a felicidade do homem-cotoco. Um homem que passou por uma provação e por isso pode sorrir como quem tem direito a isso, por ter passado por aquilo. O homem-cotoco está ao lado de Cristo, Joana D’Arc, Madre Teresa, Charles Manson.

Além do mais o homem-cotoco não sabe que não tem do que rir, e esse é o melhor motivo pelo qual um ri. É como algo que se espera muito. Enquanto se espera pela coisa, sente-se tremedeiras, dorme-se mal, anseia-se horrivelmente pela coisa, conta-se os dias e o estômago se retorce. Misteriosamente, pouco antes de a coisa acontecer, a alma se embota e o sangue foge à face, então somos tomados por um completo desinteresse pela possibilidade iminente da coisa.
Mas com o homem-cotoco não há possibilidade iminente. Ele é uma possibilidade resolvida para sempre. Pelo fato de a felicidade dos homens saudáveis ser no fundo um embuste, uma fábula que não se completa nada bem, pois que o homem saudável só é feliz enquanto espera, o homem-cotoco, por não fazer nada além de esperar, sente-se genuinamente livre do pavor da proximidade de qualquer concretização. É portanto feliz e mora num eterno interstício.

Enquanto isso, olhamos para o homem-cotoco, o feliz e satisfeito homem de poucos membros, e negamos a ele uma moeda ou ao menos os dentes. E dizemos que é porque não temos moeda, mas temos. E temos dentes também, apenas não mostramos e os deixamos apodrecer numa cena lamentável. Moedas, as temos muitas, não gostamos delas inclusive. Aliás, muitas vezes não sabemos o que fazer com elas. Elas provavelmente acabarão um dia no câmbio negro.

Não damos nossas moedas inúteis ao homem-cotoco porque precisamos esconder a nossa hipocrisia. Porque se déssemos seria como ser cúmplice de um sistema opressor de classes falido e corrupto que não repassa devidamente o dinheiro capitalizado pelos altos impostos etc e tal.

Mas no fundo queremos que o homem-cotoco desapareça com seu sorriso genuíno. Queremos que ele morra porque é mais feliz do que nós e não tem nada. Queremos que ele suma porque ele é a prova mais clara da nossa frustração. Ele deve, sim, desaparecer porque olhamos para ele e vemos nós mesmos desesperados e com pressa para sermos açoitados numa espécie de repartição sem fim. Devemos tirá-lo do mapa, o homem-cotoco, pois ele é a verdade inconcebível, que mora nua no fundo de um poço.

O homem-cotoco permanece entre a pastelaria chinesa e o amolador de facas. Ele sacode as moedas dentro do copo de plástico. Acima de tudo ele sorri. Seu sorriso é quase um desaforo e, por isso, ou damos dinheiro ou ignoramos, das duas uma, dois jeitos de chamar a morte. Porque foi descoberto que a morte vem da falta de atenção e da ganância. E o homem-cotoco é um ultraje, uma prova de que somos desatentos, se passamos reto. E uma prova de que somos gananciosos, se jogamos moedas.

Mas uma senhora surge num belíssimo carro, abre a janela e sorri para o homem-cotoco. Isso é uma revelação quase mítica e um clarão, uma aura absurdamente clara parece envolver a cena. O homem-cotoco se aproxima com as palmas das mãos sobre o asfalto quente, a senhora lhe coloca um cigarro na boca, acende o cigarro. Eles riem, sorriem, eles estão com as bochechas vermelhas. Conversam sobre algum assunto e o homem-cotoco parece estar dando à senhora algum conselho, pois permanece sorrindo, mas ela não. Seus traços estão suaves, mas compelidos. Algumas pessoas tropeçam nas calçadas diante da cena. Outras passam aos cochichos, indignadas.

A senhora abre a porta do carro, as pernas de seda, o salto de bico preto bem-polido. Ela se agacha e beija o homem-cotoco na testa, depois nos olhos, então na boca. O homem-cotoco segura as nádegas da senhora com suas mãos enormes como pés. A senhora volta para o carro, bate a porta, buzina duas vezes e vai embora. Eles acenam um ao outro. O chinês da pastelaria sai de trás do balcão com o pano de prato na testa. A senhora rica dos cabelos vermelhos extravagantes não havia jogado moedas nem ignorado o homem-cotoco. A senhora era a vida ínfima, o que sobra ao eterno recomeço. A vida pura, que passa pelas brechas e encontra o sórdido sem asas, correndo de volta para a caverna. É quando deus se contradiz e nos sentimos mortos. E estamos por um triz, mas temos pernas

3.8.08

“vinte e seis”

um dia, inevitavelmente, aconteceria.
o antigo poeta das linhas apócrifas
sobre fantasmas internos e naufrágios,
o infante terrível, o descabelado, o vil
sem regras daria lugar ao homem grave,
à besta milenar – homem sem pernas,
meio doce meio amargo meio homem,
a boca sem fim inclinada para baixo,
as leituras eslavas, a sutura do ódio
que prolifera para dentro em pústulas
e adquire a petulância de um mar parado.

16.7.08

"vamos com ela?"


Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.À ponta do lápis o traço.Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.Na ponta dos pés o salto.Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.É para o meu pobre nome que vou.E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.


Clarice Lispector

13.7.08

"strindberg"

súmula abstrata
de jeito licoroso.
no céu da boca
inicia o percurso.

que do inferno foi ao fundo
nos trazer o grave presságio.
amante cético, químico selvagem,
rocha nórdica de lascas romanas.

adentro o labirinto em lusco-fusco,
indiferente ao afeto e à loucura.
minha mão treme, ela não decide,
e se inclina sobre teu fogo-fátuo.

resta agarrar a outra mão em ciranda,
estalar os dedos, seguir a valsa patética.
essa linha tão fina, de divisão insólita -
um deus cego, vendado entre montanhas.

9.7.08

"inferno sueco"


(...) a terra é uma colônia penitenciária onde temos que expiar crimes cometidos em existência anterior, e a nossa consciência conserva deles essa memória vaga que nos impele a uma melhoria. Visto isso, todos somos criminosos, e tem razão o pessimista que está sempre a dizer mal do seu próximo.



(Inferno, de August Strindberg)

28.6.08

"Vitângela"

“Pobre Boris Vian, considerado extremamente contemporâneo”. Foi o que ela disse e eu não sabia ainda quem era Vian, mas anotei num papel. Eu era um romântico à carteirinha. Primeiro a negação, depois a precipitação, o sonho com a morte e, por fim, o refúgio, o esquecimento ponderado da existência, o largar-a-deus, o morrer-aos-poucos infalível.

Andávamos e colhíamos cacau numa planície. “Isso não é cacau, isso é comida de hospício”, ela dizia, abrindo um casco cheio de cabelos ao meio e enfiando o sumo branco na boca. Escorria pelo queixo. A provocação exata para um desconhecido, em meio a uma tensão sexual inevitável, é deixar algo escorrer pelo queixo. Assim inventamos a paixão – e não era lua cheia. Pobre Boris Vian.

Existe um prazer mórbido na boa vontade. A gente dá o que não tem e recebe o que não pode receber. A verdade é que meu negócio principal eram frases de efeito, “Respostinha”, era como ela me chamava.

Andávamos de mãos dadas, entrelaçando os dedos. Engraçado que, andando assim, ela parecia mais nova, e eu via manchas na minha pele um dia curtida de enganos bons.

Eu tinha na época uma fala empolada e, obviamente, ambições poéticas, o que já era ridículo por si só, fora o cacau no Aterro do Flamengo em pleno meio-dia, lendo tal personagem ultra-humano de Tchekhov – ela uma atriz em progresso – o que não era só um absurdo geográfico, mas entre nós ainda havia uma toalha de mesa estampada e, com esforço, colibris se desmanchando em preces orientais, manchas de vinho, poemas sobre ópio.

Ela era o meu messias. Faltava a barba e a tendência a túnica. Tomava remédios potentes e aparecia com as gengivas em sangue às quatro horas da madrugada. Isso era literário.

“Você vive uma vida literária”, dizia meu pai, um jornalista. Eu pensava: “E se eu dissesse a ele: você vive uma vida jornalística, o que seria?” De fato não era nada. Ele não entenderia e mudaria de assunto, ou esperaria um minuto, para dizer: “Tem coisas que você não precisa de um psicólogo para saber que são ruins”.

Eu era um escritor e não estamos falando aqui de qualidade literária, mas que diabo de vida meu pai queria que eu tivesse, não fosse uma vida literária, eu sendo um escritor, semente do meu fruto podre e único?

Era a vida que eu tinha e muitas vezes ela se desvencilhava de mim de modo que eu ficava solto numa rinha de galo, com os olhos vendados. Quando acontecia dela se desvencilhar eu começava a complicar as coisas, intelectualizar tudo para não ter que lidar com nenhuma novidade.

A perversão era um crime. Me lembro que por anos meu pai, figura importante para um filho sem mãe, dizia: “A culpa é uma coisa fundamental”. E ele falava calmamente, ele era extremamente sólido e consistente, profundamente arraigado, mas sabia rir de si próprio. Um sujeito emotivo que, de alguma forma, teve a delicadeza abusada e preferiu apenas me deixar passar, vendo à distância. E eu também não tentei muito, apenas disse muitas vezes “te amo”. Mas dizemos isso apenas quando não temos o que dizer.

Mas por que falei do meu pai? É preciso ter um fio. Diz a escola e, afinal, precisamos das regras para quem sabe publicar. Rasgar a pele falsa é muito mais difícil. Tento fazer isso e sinto fome. Lembro que o nome dela era mistura do nome do pai com o nome da mãe. Vitângela.

Cacau, pois então. Quem conhece o cacau sabe do que estou falando. Só há uma pessoa que conhece o cacau – é aquela que o esmaga. Hoje ela se chama Vitângela. Dorme pouco, engloba tudo, tem o pé grande – Boris Vian, uma fraude – e, mesmo que eu queira, não cabe numa página, mas é tarde, e meu nome é mais difícil.

26.6.08

"tempo"

Aproveitar o tempo! Mas o que é o tempo, que eu o aproveite? Aproveitar o tempo! Nenhum dia sem linhas... O trabalho honesto e superior... O trabalho à Virgílio ou à Milton... Mas é tão difícil ser honesto ou superior! É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio! [...] Aproveitar o tempo! Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro. Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto. Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste. Aproveitar o tempo! Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos. Aproveitei-os ou não? Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
Álvaro de Campos / Fernando Pessoa (1928)

25.6.08

"ainda é cedo para continuar"

Dos pequenos erros, cometidos por vontades que parecem alheias. É disso que se faz o homem. Da porta entreaberta que permaneceu longe do pulo. De cada frase equivocada e sem saber onde acabar. São erros às vezes cometidos por sabedoria. Toda a sabedoria é estúpida, dado que não se sabe o fundamental: por que continuar? Ou, como diria o ajudante de guarda-livros, “por que exprimir?”

Deixei de me perguntar isso todo dia, deixo a barba crescer livre e raspo mensalmente. Os tiros na têmpora já não me incomodam, mas a falta de assunto é o cão. Sei que me levanto e, por algum motivo ainda desconhecido, volto a me deitar para levantar outra vez e, de fato, ninguém nunca nos explicou os motivos dessa prosopopéia.

“As coisas simplesmente acontecem” é o mais longe que chegamos até hoje. Volta e meia aparecem uns homens de bigode, sisudos, com cara de poucos amigos, sentados em montes e derrubando barracas de feira. Os novos profetas, os cidadãos póstumos. Pois estes senhores de mão no queixo e piteira inauguraram a era da autopromoção, falando em si próprios como se fossem uma novela. “A seguir (daqui a séculos) cenas do próximo capítulo”. E mesmo assim eles foram ferrenhos, produziram, deram nome a praças e lascas de pedra, deixaram belos textos sobre verdades brutais, morreram de sífilis ou de miolo mole – e as coisas simplesmente continuaram acontecendo.

O trajeto do espinho à murada de gelo. É assim que sentimos a vida constantemente – isso vale para os que ainda conseguem sentir alguma coisa de próprio, por mais descontrolado e impulsivo que seja. Vagamos pelo mundo e de vez em quando nos damos as mãos. Nosso erro é jurar amor de mãos dadas. Todos os dias amamos e atropelamos existências, matamos impunemente, e alguns ainda fazem a sesta e o sinal da cruz. Somos biografias sem fatos. O gatilho do afeto é tão rápido quanto o veneno das horas. Bernardo Soares tinha razão.

24.6.08

"se ele falou, a gente escuta"

Talvez, senhores, pensem que enlouqueci. Permitam-me fazer uma ressalva. Concordo: o homem é um animal predominantemente construtivo, destinado ao esforço consciente em direção a um objetivo e dedicado à arte da engenharia, quer dizer, á eterna e incessante construção de uma estrada – não importa para onde ela vá. E que o ponto principal não é para onde ela vai, mas que vá a algum lugar, e que uma criança comportada, mesmo que deteste a profissão de engenheiro, não deve se render àquela desastrosa indolência que, como se sabe, é a mãe de todos os vícios. O homem ama a construção e a abertura de estradas, isso é indisputável. Mas como explicar que ele seja tão apaixonadamente propenso à destruição e ao caos? Digam-me! Sobre esse assunto tenho algo a dizer, ainda que breve. Não será seu apego apaixonado à destruição e ao caos uma consequência do seu medo instintivo de alcançar o objetivo e completar a obra em construção? [...] Mas o homem é uma criatura volúvel e de reputação duvidosa e, talvez, como um enxadrista, esteja mais interessado em perseguir um objetivo do que no objetivo em si. E, quem sabe (ninguém pode ter certeza), talvez o único propósito do homem neste mundo consista no processo contínuo de perseguir um objetivo ou, em outras palavras, de viver, e não propriamente no objetivo, que, é claro, tem de ser algo como duas vezes dois são quatro, ou seja, uma fórmula, algo que, afinal, não é a vida, mas o princípio da morte.
Dostoievsky (1864)

"Baudelaire"

após visita à China – um porto,
Baudelaire estica o corpo morto
e finalmente verifica a paz falsa

que tanto pintou em seus poemas
sobre a burguesia, que criticava,
pelas fraudes de amor e progresso.

não mas o antídoto contra a causa,
não mais o afeto pela circunstância.
seu corpo jaz e nós nem nascemos!

mas suas narinas ainda se mexem.
o gato das arábias, um dia loiro,
agora os lábios cortados, e o ópio

tomou-lhe os sonhos, o levou até lá.
ele já não volta, o poeta, a poesia,
essas coisas não existem, são fotos

desbotadas, um certo jeito de andar
nos mais afetados, os ditos sensíveis.
nos panos sujos: cheiro de almíscar.

23.6.08

"as palavras"

Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria o poder de encantá-las. Mas lúcido e frio apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.

Carlos Drummond de Andrade, 1942.

21.6.08

"Hemingway Japonês - e Gay"




Uma coisa precisa ser dita ao se falar de Yukio Mishima (1925 – 1970): ele escreve como pensa. Apesar de quase óbvia, essa combinação é muito rara, tendo em vista que o ser humano não é óbvio.

Mishima incomoda a cabeça de qualquer um que, por não saber nada do que realmente acontece, acredita saber o suficiente, concorda ou discorda com a cabeça, e segue a vida.

Suas indagações acerca da pobreza da existência humana, as máscaras de um teatro grotesco, erguidas diante da perversão social, derrubam o leitor feito enxurrada, e foi sorte eu ter me levantado outra vez depois de terminar suas Confissões de uma Máscara (Companhia das Letras, 1949, 199 págs.).

Ele simplesmente cava, cava, cava sem parar. E quando o sangue é despejado diretamente sobre os ossos, então ele quebra os ossos, e é só então que ele sente seu verdadeiro prazer.

Yukio Mishima usa palavras como quem usa argila. Sua relação com a moral e com o bem e o mal é tão intrincada, que é simplesmente impossível saber exatamente até onde ele é capaz de descascar a cebola. Às vezes suas indagações atingem um ponto tal, que espera-se, olhando para os lados, que caia uma enorme pedra na nossa cabeça, como um castigo místico executado por um ente secreto, que nos esconde o fundamental das coisas.

Mishima vai ao fundamental das coisas. Um dia um amigo disse para eu ler Murakami, segundo ele, o Hemingway japonês. Ignorei meu amigo na hora, não lembro o que estava lendo ou mesmo se queria ler. Agora me deparo meio sem querer com esse livro de Mishima, usado também por alunos de psicanálise nas universidades.

Como Hemingway, Mishima aborda questões de um universalismo doloroso, obriga o leitor a dar conta do fardo de viver a vida sabendo antecipadamente que sobre a Terra nada é certo ou controlado, a não ser o nosso rumo inapelável à falência do corpo, e que tentar corrigir o que jamais poderá ser correto é cinismo e flagelação ecumênica. Mishima ensina o que é ser humano sem se basear em qualidades, mas sim nas sensações vitais, as que normalmente deixamos em segundo plano.

Para terminar, ambos não souberam reverter o cheque-mate que inventaram: Mishima e Hemingway. Suicidaram-se de forma bizarra.

Hemingway deu um tiro na boca com uma espingarda, que precisou disparar com o dedão do pé, pouco após ter ganhado o Prêmio Nobel. Mishima desde criança queria morrer de forma heróica, trucidado vivo de alguma forma. O fato de não ter sido convocado para a Segunda Guerra devido à saúde muito frágil foi motivo de profundo desgosto. Suicidou-se segundo a tradição samurai (seppuku), rasgando a barriga com uma espada e depois sendo decapitado.

Mais exibicionista que Hemingway, deu cabo à própria vida na frente de uma multidão, a quem antes fez discurso patriótico pela restituição da monarquia, solenemente ignorado. Acredita-se que Mishima tenha preparado seu suicídio por um ano.

Um pouco do inacreditável Yukio Mishima:

“O ideal universal de beleza das esculturas gregas também se aproxima da semelhança entre homens e mulheres. Não haverá aí um sentido oculto de amor? Será que nos recônditos desse amor não se anima o desejo inalcançável da exata semelhança entre os amantes? Não seria essa a ambição que move as pessoas e as conduz à trágica alienação de desejar que o impossível se torne possível a partir do extremo oposto? Em outras palavras, sendo o amor entre duas pessoas incapaz de se tornar semelhança mútua, não existiria um processo mental mediante o qual elas buscam enfatizar sua dessemelhança, valendo-se disso como uma forma de flerte? Infelizmente, ainda que alcançada, a semelhança mútua não passará de ilusão momentânea. E isso porque, mesmo que a menina se torne audaciosa e o menino, reservado, em algum momento eles se cruzarão a caminho do extremo oposto, ultrapassando o ponto almejado em direção à outra margem – ao além desprovido de parâmetros.”

(Confissões de uma máscara, pág. 69)