31.1.11

"gambito"


Disseram-me pelo telefone que eu deveria procurar um sujeito chamado Campos. Quando cheguei à livraria, vi que era ainda cedo demais, meu estômago fazia sons estranhos, então fui dar uma cagada. No banheiro percebi que estava com umas olheiras enormes, meu intestino não ia nada bem, mas eu fingi que ia tudo bem. Saí do banheiro, entrei na livraria e me dirigi a uma guriazinha muito magra com mau hálito e gânglios no pescoço, em pé atrás de um balcão, sustentando um sorriso postiço:

- Preciso falar com o Campos – eu disse a ela.

- Você veio para a dinâmica de grupo?

- Acho que sim.

- Suba até o auditório e espere.

Subi até o auditório e lá encontrei alguns rostos querendo parecer calmos. Dois ou três homens com cabelos em forma de cuia e ternos justos de veludo, fumando cigarro. No mais eram umas dez mulheres, todas arrumadas como se tivessem apenas aquelas roupas, todas parecendo mulheres duras e fatais capazes de tudo. Aquilo era parte do processo seletivo, na certa, mas como era cedo demais para demonstrar dureza e capacidade, dei meia-volta e permaneci no andar de baixo, como um homem ridículo com disfunção renal, folheando um livro com as obras completas de Van Gogh, divididas por período. O período posterior à internação no manicômio de Saint-Rémy era o melhor - disparado. Depois que ele saiu de lá e foi para Auvers, suas pinturas abandonaram a até então vigorante inquietude ecumênica e se tornaram sobrenaturais, mal-assombradas, feitas por um homem de gênio que perdeu a cabeça. Umas gravuras japonesas também me chamaram a atenção quando, de repente, vi que as pessoas começaram a entrar no auditório, atrás de um rapaz careca aparentemente efeminado.

Fui o último a entrar, acreditando que aquilo poderia causar algum impacto positivo para minha insegurança. O impacto foi que comecei a suar no buço, e a camisa começava a marcar debaixo das axilas.

Campos era um homem lá pelos seus trinta anos, ou talvez fosse mais jovem, mas, pela careca, parecia mais velho. Ele era o psicólogo que analisaria os candidatos à vaga de vendedor.

Ao lado de Campos havia um outro homem, bem mais simiesco, escuro mas não negro. Ele se apresentou como González, mas teve que repetir o nome três vezes até todos entenderem. Isso serviu para descontrair o ambiente que, como um todo, escorria a suor e expectativa, e todos sorriram, alguns deram risadinhas por baixo das mãos. González nos olhava como quem tem uma posição superior à sua e não se importará em dificultar a sua vida, se você ficar cheio de nove horas.

- Bom, pessoal – disse Campos –, vamos fazer hoje aqui mais uma etapa de seleção para o departamento de vendas da Livraria Cultura. Meus parabéns aos que passaram pela primeira fase, de conhecimentos gerais sobre a cultura universal...

“Cultura universal”, e toda aquela velha conversa mole.

- Agora, cada um de vocês deve ir até a frente do palco para se apresentar, contar um pouco da vida de vocês. Você – e apontou para uma menina completamente estrábica, e seus olhos vesgos tinham um charme sutil.

Era magra e angulosa. Você podia pensar nela em centímetros quadrados. Se era atraente? Não especialmente. Usava óculos com aros transparentes e parecia ter uma perna mais curta que a outra. Sem jeito, disse seu nome, que eu esqueci assim que ouvi, disse também que trabalhava num brechó e estudava filosofia medieval. Isso é mais fácil de lembrar, por motivos óbvios.

Campos resolveu fazer um truque traiçoeiro e perguntou à menina que obra de arte a definiria. Ela gaguejou um pouco, mas, quando falou, não estava trêmula: “Campo de corvos com trigo”.

- Você quer dizer “Campo de trigo com corvos”?

Alguns riram, eu procurava seus olhos, desperdiçados pelo chão. Ela ficou vermelha e, cabisbaixa, voltou ao seu lugar. González pediu licença para ir ao banheiro.

Desnecessário discorrer sobre todo esse processo. Dos treze ou catorze candidatos, dez eram cineastas, todos com uma vasta ou pelo menos promissora bagagem, me lembro que um disse que seu filme favorito era – francamente – Kill Bill. Havia também uma outra menina que só lia ficção científica inglesa dos anos 30, e citou “A Revolução dos Bichos”, ficção não-científica dos anos 40, como obra que definia sua personalidade, pelo que alguém no fundo do auditório simulou o guincho de um porco. Alguns riram. González voltou do banheiro. Lenço na mão, suando. Pobre González.

Havia também um marxista foucaultiano que defendia a idéia de que a contradição leva à ruína – sujeito amistoso – e um antigo membro, não se sabe de que tipo de anatomia, do finado movimento punk (?) brasileiro, “dessa turma aí dos Replicantes”, disse o próprio, hoje um senhor barrigudo e bonacheirão, metido num suéter de lã vermelho, três filhos pequenos, dívidas imensas. Nesse momento senti culpa. Eu não tinha filhos. Eu nunca tinha ouvido falar do finado movimento punk brasileiro. Nada em mim, ou na minha mais remota memória, cheirava a suéter de lã. Eu não merecia a vaga dele.

De minha parte mesmo, me saí terrivelmente na apresentação. Olhando os encontros das vigas de sustentação vermelhas, disse basicamente que eu era um expatriado, sem rumo, que tinha acabado de chegar à cidade natal, sem saber muito por quê. E, pondo tudo a perder, citei quase aos prantos que a obra que me definia era “O sol também se levanta”.

- De quem? – disse Campos me apontando com o lápis, como se soubesse, mas tivesse esquecido propositalmente.

- De quem o quê? – eu disse, pensando em grades e calcinhas no varal.

- O livro.

- Ernest Hemingway – mas sob pressão eu pronunciava sempre mal o Ernest, para dentro.

- Herbert quem?

- Ernest, Ernesto Hemingway, o escritor americano.

Campos sorriu com um sorriso de boca aberta, o sorriso normalmente feito por uma pessoa que reflete se você é mesmo ou não um idiota. Procurei Hemingway nos olhos das pessoas sentadas nas poltronas, não achei nem mesmo Kafka. Era tudo liso, ornamentado, pronto para explodir de tanta contenção.

- Pode sentar... Como é mesmo o seu nome?

- Leonardo Marona.

- Leonardo Marone, por gentileza...

- Marona.

- Sim, oquei, ao seu lugar...

Campos sorria quando me conduziu. González tinha ido outra vez lá fora, com um cigarro na mão, murmurando algo em outra língua. Estava numa pior, o coitadinho.

Era lógico que meu desempenho na apresentação tinha contado pontos negativos na minha avaliação como candidato, mas eu ainda me mantinha razoavelmente humano. Depois que todos se apresentaram, ficamos esperando o González voltar. Alguém levantou a mão.

- Sim? – disse Campos, de braços cruzados, com as sobrancelhas.

- Qual é a função do Gonçalves?

- González...

- Sim, qual é?

- Ele é fiscalizador.

- Ele é fiscalizador da fiscalização, é isso?

Todos riram. González entrou. Um silêncio afiado de fuligem no ar. Campos dividiu as pessoas em dois grupos e simulou situações de venda. No meu grupo havia um sujeito metido a malandro que já trabalhava como caixa-registrador na livraria e estava fazendo o processo seletivo apenas para mudar de área. Ele logo antipatizou comigo, quando lhe perguntei se ele não deveria estar participando de outro processo de seleção, e não deste. Simularam um problema e todo o grupo era a favor de esconder do cliente a causa do problema. Eu defendia que era melhor jogar às claras para evitar mais problemas. Uma gordinha de cabelo roxo com um cacho branco na franja e um brinco no nariz disse que eu era “mais chato do que o cliente”. Fui voto vencido, e não senti em momento algum que aquilo pudesse ser bom para as minhas possibilidades.

Mesmo assim respirei fundo. Sempre tive tendência a me controlar nos momentos críticos. E ali estava eu, formado na faculdade, um bom filho, sem graves problemas com drogas, mesmo assim alguém de difícil convivência, com certo talento teórico, tentando mostrar normalidade, diante de um precipício. E não me interessava o trabalho no fim das contas, eu queria apenas poder estar legitimamente naquela cidade, e o trabalho era a forma mais hipócrita e, portanto, a mais natural de se alcançar isto.

Saímos da dinâmica de grupo, nos demos beijos nas bochechas e limpamos as mesmas com as costas das mãos. Seguimos direto aos cigarros e aos pontos de ônibus, diante da cor encardida de qualquer ponto em Porto Alegre. Vomitei um pouco num canto, suei frio, senti falta da minha mãe, pobrezinha, indígena, o intestino comido por dentro.

Reparei outra vez naquelas perninhas de gambito. É como se diz em Pernambuco: pernas de gambito. Ainda por cima, com os pés para dentro. Magra e desamparada, duas características irresistíveis nas mulheres, que me encantam. Muitos pêlos nos braços, negros, grossos, dando a entender um cheiro entranhado extremamente frágil, e sexual.

- Oi, sabe que ônibus eu pego pro Bonfim?

- Eu vou pra lá.

- Você errou o quadro do Van Gogh.

- Pois é, acontece.

- O que foi?

- Fiquei nervosa.

- Acontece, realmente.

Entramos no ônibus, fomos em pé, ele passou lotado.

- Escuta, você dança? É que eu ainda não conheço ninguém. Não saio nunca.

- Não danço. Como vê, sou manca.

E eu poderia apenas dizer o quanto ser manco era antigo para mim. Os olhos alucinados de Van Gogh em Saint-Rémy resplandeciam sobre os olhos da menina de quem eu nem mesmo sabia o nome e, afinal, no fundo não se sabe o nome de ninguém. Eu tinha vontade de dizer coisas bonitas sobre alguns momentos breves do cérebro enfim refeito. Dizer que algumas vezes realmente sabemos o que nos pode encantar, reconhecemos isso, e damos o braço a torcer por isso, e repetimos as mesmas antigas doses exageradas, e desejamos amantes com certa coerência, e nisso reconhecemos os estrangeiros do mundo, por isso queremos os amputados, os mancos e os com a cabeça a prêmio: eles são os mais nobres, com as cordas em volta do pescoço e o grito amputado.

- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?

- Não falei nada sobre filosofia celta.

- Você tem quantos graus?

- Nove e meio de miopia.

- Isso não é muito?

- É quase tudo.



- No fundo, sempre é.

Ela disse também que cantava numa banda de rock. De que tipo? Alternativo. Enfim, de vez em quando ela pintava o cabelo de verde, ou de roxo, e saía derrubando latas de lixo por aí. Uma bela alma, duas almas sem emprego, nem felizes nem tristes, apenas assustados. Com os pés para dentro, as pernas tortas, todos os graus possíveis, pedindo carona para o dia seguinte.

- Você acha possível que a gente consiga o emprego? – eu perguntei a ela, enquanto ela descia do ônibus.

- Você acha que Van Gogh conseguiria? – ela disse, e me mandou um beijinho com a mão.

28.1.11

"A True Account Of Talking To The Sun At Fire Island" (Frank O'Hara)

Frank O'Hara (1926 - 1966)





The Sun woke me this morning loud
and clear, saying "Hey! I've been
trying to wake you up for fifteen
minutes. Don't be so rude, you are
only the second poet I've ever chosen
to speak to personally
so why
aren't you more attentive? If I could
burn you through the window I would
to wake you up. I can't hang around
here all day."
"Sorry, Sun, I stayed
up late last night talking to Hal."

"When I woke up Mayakovsky he was
a lot more prompt" the Sun said
petulantly. "Most people are up
already waiting to see if I'm going
to put in an appearance."
I tried
to apologize "I missed you yesterday."
"That's better" he said. "I didn't
know you'd come out." "You may be wondering why I've come so close?"
"Yes" I said beginning to feel hot
and wondering if maybe he wasn't
burning me
anyway.
"Frankly I wanted to tell you
I like your poetry. I see a lot
on my rounds and you're okay. You
may
not be the greatest thing on earth, but
you're different. Now, I've heard some
say you're crazy, they being excessively
calm themselves to my mind, and other
crazy poets think that you're a boring
reactionary. Not me.
Just keep on
like I do and pay no attention. You'll
find that some people always will
complain about the atmosphere,
either too hot
or too cold too bright or too dark, days
too short or too long.
If you don't appear
at all one day they think you're lazy
or dead. Just keep right on, I like it.

And don't worry about your lineage
poetic or natural. The Sun shines on
the jungle, you know, on the tundra
the sea, the ghetto. Wherever you
were
I knew it and saw you moving. I was
waiting
for you to get to work.

And now that you
are making your own days, so to
speak,
even if no one reads you but me
you won't be depressed. Not
everyone can look up, even at me. It
hurts their eyes."
"Oh Sun, I'm so grateful to you!"

"Thanks and remember I'm watching.
It's
easier for me to speak to you out
here. I don't have to slide down
between buildings to get your ear.
I know you love Manhattan, but
you ought to look up more often.
And
always embrace things, people earth
sky stars, as I do, freely and with
the appropriate sense of space. That
is your inclination, known in the
heavens
and you should follow it to hell, if
necessary, which I doubt.
Maybe we'll
speak again in Africa, of which I too
am specially fond. Go back to sleep
now
Frank, and I may leave a tiny poem
in that brain of yours as my farewell."

"Sun, don't go!" I was awake
at last. "No, go I must, they're calling
me."
"Who are they?"
Rising he said "Some
day you'll know. They're calling to you
too." Darkly he rose, and then I slept.




*** tradução Rodrigo Garcia Lopes ***



"Relato Verdadeiro De Uma Conversa Com O Sol Em Fire Island"

O Sol me acordou esta manhã em alto
E bom som, “Ei! Há quinze minutos
estou tentando te acordar.
Não seja grosso, você é só o segundo poeta
Que escolhi pra falar tão pessoalmente
então
por que você não é mais atencioso? Se eu pudesse
te queimar pela janela eu te faria
levantar. Não posso ficar na área
o dia todo”. “Desculpa, sol, fiquei
acordado até tarde falando com Hal”.

“Quando acordei o Maiakóvski ele foi
bem mais pontual”, disse o Sol
com petulância. “A maioria das pessoas
já acorda querendo ver se vou dar o ar da minha graça
Tentei
me desculpar “Senti sua falta, ontem”.
“Ah, está melhorando”, o Sol falou. “Achei
que você não viria aqui fora.” “Você deve estar pensando porque cheguei juntinho assim”?
“É”, eu disse, já começando a ficar todo quente
pensando se ele não estaria
metendo fogo em mim
no fim das contas.
“Sendo franco, cara, queria dizer que
gosto da sua poesia. Vejo um monte
de coisas por aí e você até que não é mal. Pode não ser
a coisa mais importante sobre a terra, mas
você é diferente. Agora, já ouvi as pessoas dizerem
que você é maluco, eles sendo excessivamente
tranquilos pro meu gosto, e outros poetas loucos te acham
um chato reaça. Eu não.
Continue mandando ver
Faça como eu não dê bola. Você vai perceber
que as pessoas sempre reclamam
do clima, sempre está quente ou frio
demais, escuro ou claro demais, dias
curtos ou longos demais.
Se você fica sem aparecer um dia
já acham que você é preguiçoso ou morreu.
Continue nesse pique, eu curto.

E não se preocupe com sua linhagem
poética ou natural. O sol brilha sobre
a selva, tá ligado?, sobre a tundra,
O mar, o gueto. Onde quer que você estivesse
Eu já sabia e via você se movendo. Estava te esperando
Pra começar a trabalhar.

E agora que você
está tirando os dias pra si, digamos,
mesmo que ninguém te leia a não ser eu,
não precisa ficar deprimido. Nem todo mundo
é capaz de olhar pra cima, nem mesmo pra mim. Machuca
Os olhos deles”.
“Ai ai, Sol estou tão agradecido!”

“Não há de quê e lembre-se que estou de olho.
Pra mim
é mais fácil conversar daqui de
fora. Não sou obrigado a deslizar entre os prédios
até seu ouvido
Sei do seu amor por Manhattan, mas
você devia olhar pra mim mais vezes.
E sempre
abrace as coisas, pessoas a terra céu
estrelas, como eu, livremente e com
um conveniente senso de espaço. Essa é sua
inclinação, conhecida no céu
e que você seguiria até o inferno, se preciso,
o que eu duvido.
Talvez nos falemos
na África, que eu também gosto
especialmente. Agora volte e durma,
Frank, e que eu possa deixar de despedida
um poeminha nessa sua cabeça”.

“Sol, não vai não!”, eu acordei
enfim. “Não, preciso ir, eles estão
me chamando”.
“Eles quem?”
O Sol se ergueu e disse “Um
dia desses você vai saber. Estão te chamando
Também”. Sombrio, o sol se levantou, e adormeci.



* Um detalhe mórbido: este poema foi achado entre os papéis de O'Hara, pelo poeta e amigo Kenneth Koch, pouco depois da sua morte - adivinhem! - causada por um atropelamento de bugre na praia de... Fire Island. O sol bem que avisou.


24.1.11

"da amizade"

a mão do amigo, nós só nos damos conta dela
quando ela não está lá.
não contam as partidas desavisadas,
pouco importam os corações esbravejados sob efeito de aditivos,
apenas vemos a mão quando não há mão,
e pode haver mão entre a china e a patagônia,
mas às vezes não há mão no aperto entre mãos,
porque estar apertado é não estar entre: é estar dentro, estando fora.
e muitas vezes, quando não há mão, estamos apertados,
e os olhos não escondem, derramam-se junto à poeira tardia,
e do amigo não lembrarás de nada,
enquanto ele estiver, ele não está, e quando estiveres
sem os dois braços, inclinando-te com a língua entre os dejetos,
aí sim, lembrarás dele, que ali não está, mas cujos dedos
nodosos serão a primeira e odiosa lembrança
de que desaprendeste a plantar.

21.1.11

"O Nosso" (Guenádi Aigui)

devo
chegar com meus lábios
aos seus olhos iluminados

e então hei de me surpreender com as veias pulsando de
leve,
suboculares,
e hei de compreender: é por causa de sua transparência
e de seu incorpóreo
que são assim claros e doentes
esses olhos ligeiramente trêmulos

e eu hei de amá-la com minhas mãos e meus lábios,
com o silêncio, o sono e as ruas dos meus versos
com a mentira - para o Estado
com a verdade - para a vida.



*tradução Boris Schnaiderman

20.1.11

"pensamento positivo"

sinto que estou perdendo a voz,
que coisa estranha, isso me dá
pavor absoluto, mas não reluto,
gosto dos destinos cumpridos e,
em breve, serei o velho locutor
de rádio, que pede um uísque
segurando a traquéia, e senta,
e mexe com as garotas e veste
um belo colarinho duro e sente
que lhe faltam os culhões, essa
palavra que poucos dizem fundo,
isso que talvez seja a única coisa
que não se possa falar, por mais
que andemos com o cu na mão,
mas impossível falar disso, nós
vamos falar da voz rouca como
a sina do último selvagem puro,
mas o mais importante é poder
cantar como o Louis Armstrong

19.1.11

"Just Walking Around" (John Ashbery)



What name do I have for you?
Certainly there is not name for you
In the sense that the stars have names
That somehow fit them. Just walking around,

An object of curiosity to some,
But you are too preoccupied
By the secret smudge in the back of your soul
To say much and wander around,

Smiling to yourself and others.
It gets to be kind of lonely
But at the same time off-putting.
Counterproductive, as you realize once again

That the longest way is the most efficient way,
The one that looped among islands, and
You always seemed to be traveling in a circle.
And now that the end is near

The segments of the trip swing open like an orange.
There is light in there and mystery and food.
Come see it.
Come not for me but it.
But if I am still there, grant that we may see each other.


*** trad. leonardo marona ***



"Só andando por aí"

Que nome eu tenho para você?
Certamente não há nome para você
Do mesmo modo que estrelas têm nomes
Que de algum modo servem. Só andando por aí,

Objeto de curiosidade para alguns,
Mas você é muito preocupada
Com a mancha secreta de sujeita atrás de sua alma
Para dizer tanto e vagar por aí,

Sorrindo pra si mesma e outros.
Chega a ser meio solitário
Mas ao mesmo tempo perturbador.
Contraprodutivo, ao você se dar conta outra vez

De que o caminho mais longo é o mais eficiente,
O que faz acrobacia sobre as ilhas, e
Você sempre me pareceu viajar em círculos.
E agora que o fim é próximo

As partes da viagem arreganham-se feito uma laranja.
Por ali existe luz e mistério e comida.
Venha e veja.
Venha não por mim mas por isso.
Mas se eu ainda estiver, permita que vejamos um ao outro.

18.1.11

"´Relógio de Ponto" (Alberto da Cunha Melo)

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

11.1.11

"kiddo"


para Camila



você é a Carolina de Lou Reed,
dando a volta ao mundo, sendo
a personificação do meu tempo
gasto e que jamais terei de volta,
mas você volta, você vai e volta,
eu estou sempre ansioso, te digo,
feito filho à tua espera – quando
você diz: "eu voltarei", estou aqui
roendo unhas, estalando os dedos,
porque só existe você para mim,
com essa força de fato vulcânica
e que alimenta os poros da vida.

os barbitúricos do teu regresso
serão nossos pirulitos do medo,
e as ruas se abrirão em crateras
e passaremos limpos e mágicos,
porque você é a roqueira suicida
de David Bowie, e sendo as duas
garotas de Lou e Bowie, eu sei,
estaremos sempre nus – e livres.

9.1.11

"o casamento"

gostaria de saber de vocês, homens e mulheres da minha vida,
como poderia se casar um poeta.
seria com ostentação que ele faria
a celebração silenciosa da dúvida?
creio que a pobreza e as poucas posses
impedem certas manifestações de medo.
filhos? não acredito que isso possa resolver algo.
viemos das chamas antigas, e borbulhamos demais para aceitar os mares calmos.
preste atenção ao poeta no canto da enorme sala,
falando aos quatro céus, embebedando-se com uísque.
é do desespero deste homem que se fazem as grandes festas.

7.1.11

"paul valery"

ó eu me desmembrarei em partes,
particulas minúsculas de lavagem
nas calçadas do coração da carne
que fica mais acima, em contato
direto e fixo com o que se perde
de vista ao se olhar, mais abaixo
as partes escolhem proponentes
no fio de um poste, no olho puro
do sujeito deformado pela tarde,
e serão muitas partes, uma tarde,
o medo de escrever o fragmento
perdido na concepção dos outros
fragmentos vitoriosos na fria luta
fragmental da existência incerta,
mas seremos o todo em seu lugar
sem rosto, despedaçados iremos,
não mais pela mentira da fraqueza
escamoteada na busca metafísica,
só em pedaços, e na superfície lisa,
deslizaremos sobre a pele fictícia,
decairemos sobre eras esquecidas,
e não haverá mais mãos ou tiro forte
para nos tirar desse deslize, faremos
o recuo interior, a manobra magma
nas asas do grave pássaro mecânico,
desbotaremos em milhares de cores
pálidas que ficarão na pele calçada
pelas botas do tempo, destruiremos
com nossa força débil, esmaecidos
diante do milagre, a mentira do que
unificado racha - pobres de vocês,
atarracados em bigodes prussianos,
pobres ministérios dos infanticídios,
porque não reconhecem a lisonja
de estar na superfície das coisas,
as mesmas às quais só podemos
dar nomes provisórios, e sabemos:
não somos poetas, mas fazemos.

1.1.11

"julia"

havia um tempo em que dizias: ficarei sozinho,
e agora é chegada a hora de dizer: que farei
sozinho? pois nisso ainda não tinhas pensado.

a antiga energia com cabelos sujos ao vento
coagulou num grito mudo feito quadro vienense.
as mãos suam, tremem à menor proximidade
do que nossa antiga inclemência veio nos cobrar.
já não há mais susto ou esperanças macabras
agora que sentas frio diante da vela umedecida.
e já não há mais raio vivo, pasta de segredos,
o sangue borbulha fresco pela boca incestuosa.

e você, mocidade à qual olho com vergonha,
com distância segura, e que, no entanto, fica,
permanece ao lado, você é a menina que come
chocolate e engole metafísica, você é a única
chance – e que peso tudo isso! – de um idiota
sem chance, apenas porque não sabe: a dor
antecipada de um covarde diante do pulo falso.
e não saber é grande, e é tudo que podemos.