25.9.13

"adágio"


no dia em que eu não estiver mais aqui,
um sol novo se abrirá nos corações pulsantes,
as aves estarão no chão se debatendo, pequenas e grandes,
por um pedaço histórico de pão adormecido.
reconhecer-me-ei, ó antigo, nas pequenas aves
que, sem comer, alegram-se, e poderei assim
dar o pulo fremente na direção do fantasma,
para entrar na ciranda primária do esquecimento.

no dia em que eu não estiver mais aqui,
haverá um sorriso modesto de um jovem sensível,
porque um velho muito velho, de suspensórios,
passará inclinado pelo vento com a bengala para cima,
como se assim falasse algo secreto
no dialeto incompreensível dos velhos e de deus.

no dia em que eu não estiver mais aqui,
não haverá mais cigarros duvidosos fumados nas janelas,
por um dia apenas, os que me amam
sentirão enfim minha presença que dali escapa,
deixando ao menos um abajur sem lâmpada num canto,
e no escape haverá o instante em que tudo que é presença
afirma a adorável encarnação do mistério da terra em nós.
por um instante, nesse dia, por não mais que um instante,
saberão os que sofrem algo a mais
sobre sofrer e perseguir o sofrimento, algo além
dos conselho sobrepostos por lágrimas,
algo além do corpo segundos antes da convulsão.
saberão que a convulsão traz consigo, segundos antes,
a claridade do que em tudo está contido,
e a escuridão ganhará um feixe de luz azul,
diferente dos filmes de ficção científica, meu pai,
aqui registro: amo-te, pai, e tudo o que fazemos neste mundo
tem esse vago propósito de dar conta do que em nós é menos,
menos mundo e mais do que está diante dos nossos olhos,
talvez infelizmente – quem sabe não sabe, sabe apenas que

no dia em que eu não estiver mais aqui,
não serão necessários olhos, nem mesmo os teus, amor,
azuis como nunca o foram em verdade para meus olhos
de cílios longos como é longa a dolorosa incompreensão
da qual agora posso fazer meu riso, e tua mão secará
contra a minha ainda uma última vez, e compartilharemos
o raro frio entre os que se amam sem dar respostas
a perguntas mudas, para tocarmos no que se espalha
ao ponto em que se comunica; um peixe chorará,
um polvo rebentará seus tentáculos, os amigos
farão um freio súbito para que se respire,
uma vez apenas e para nunca mais, a terra preciosa
de que não compreendemos os pontos,
e produzimos vírgulas como grampos em nossa cruz.

22.9.13

“lohengrin – overture”



por entre os fios se abre uma estrada
que só aos cegos é permitido olhar.
aos que enxergam, as mãos atadas
recriam nos fios a paz obrigatória
de quem pingou amor pela estrada
e agora, seco de paz, morto de amor,
recolhe com os pés o vale do tempo.
um suspiro contínuo é só o que cabe
ao potro sem capim do esquecimento.

19.9.13

"sírio coração"


Levo a Síria em meu peito. Mas não sei o que é a Síria. Não sei onde é a Síria. Não sei onde o meu peito. Mas nele eu levo a Síria, com pequenos e grandes homens da Síria. Há bombas nucleares, dizem, na Síria que levo em meu peito. Há bombas nucleares e seres malignos negociando por sua paz. Há mortos na Síria, mas não posso conhecê-los. Não têm rosto os mortos da Síria que levo em meu peito. Síria de meu peito, não pronunciada potência enigmática, estás calada agora, teus efeitos nucleares aceleram meu coração que, dizem, também levo em meu peito. Mas onde, em que espaço, entre que mil outras bombas tão maiores? A Síria pode causar preocupação de poder à Rússia ou aos Estados Unidos, mas não há megapotência avassaladora que propague a paz na Síria de meu peito. O negócio do mundo é a paz, ela é tudo pelo que se fala e pelo que se promove a guerra. Está sempre noutro lugar, onde quem sabe chegaremos, enquanto fabricamos pontes nucleares, pela seguridade da paz. Todos lutarão, com seus pares e seus enganos e seus interesses, pela Síria que está lá fora – onde não sei; o que é, tampouco. Mas ah, pobre Síria morena e desvairada, descabelado ornamento de esporas em ferrugem, ninguém se procura enquanto te levo comigo a não sei mais onde, e meu peito se abre para o anonimato das imensas sensações, encobertas pelas bombas químicas que senhores frágeis, de ternos e com bigodes ralos ou poucos cabelos, negociam pelo bem do futuro, enquanto explodes em mil cores para dentro da imposição de teu parto constante em mim.

16.9.13

"ainda assim chamaremos"


é preciso causar ainda alguma beleza,
nem que seja o lenço caído no soalho,
ou uma valsa vienense de outrora,
tanto faz se não sabemos seu nome,
ou mesmo se com sede recebemos
o que mais tarde iremos cuspir fora.
é preciso ainda assim alguma beleza,
uma palavra que acalente o coração,
uma revelação diminuta de esperança,
fora das teorias humanas, ó humanos!
fora dos intestinos delgados do inferno,
numa jaula de pétalas, uma luz amarela,
algo no fim de algo que está no seu fim,
porque é acima de tudo agora preciso
causar alguma beleza nem que esteja
no triz que tremeluz pálpebras de aço,
na gota perene que se afoga no umbigo,
um vento no rosto, ainda que marcado
pela areia que escorreu pelo caminho
de outros que passaram e, sem saber,
deixaram restos do que nunca se soube
mas ainda assim chamaremos nossa fé.

15.9.13

“de qualquer outra forma não seria”


sou o músico que não conhece o seu instrumento,
mas ama-o, e quanto mais o ama, menos o conhece,
e só daí tira força para aumentar ainda mais
esse desconhecimento vital, que também se chama morte,
quando o silêncio se alimenta de rachaduras
e tu que és o músico te sentas mais uma vez
diante de teu instrumento, com as mãos trêmulas
e nenhum domínio de tua língua, nada que possa encobrir
o catálogo de teus erros, a gota da tua seiva
secou no amparo da tua sorte, tudo se afasta agora
e reconheces o milagre, o duro milagre da falta
que te move para dentro, quando te assustas
e queres então sair e não há para onde sair
já que nunca entrastes, sempre observando à distância
o que te cobra o cerne, tão lindo quanto mais distante,
tão puro quanto mais profundo é teu desamparo,
mas de qualquer outra forma não seria amor.

10.9.13

"sebastian"

 
agora que ouço a ininterrupta
afirmação de deus em notas
acolhidas pelo vazio celeste,
agora eu penso não faço isso
que faço aqui por mais nada
além do cósmico acompanhar
estacas de plumas nos dedos.

agora és pálida estátua prenhe
e minha diminuída literatura,
dedos autômatos por respiro,
sem condição de durar pausas
e sem a bondade do silêncio
que pretende morrer na veia,
mas enche a boca do mundo.

6.9.13

“fala-se do ponto final”


a morte é a única benevolência.
aqui está o que odeias livremente
e transformas num lavabo sujo,
como se faz no boteco que detestas,
como se faz na roupa ruim, cheiro
do ruim comprado, força de ser ruim,
apenas miscigenado, queixo caído

e a tristeza é maior, conforme grito
do que liberado exige, conforme servo,
só vemos isso ao sermos felizes nisso,
ou infelizes com coisas demais perucas.

a felicidade indica a nossa falha, nuca,
em ser o que “é para a história”, é simples
e nada mais além de sangue, além disso,
meia ideia de mistério, meia ideia de ódio.

e triste sangue em biombo aqui vamos:
é triste a passagem cínica, é triste
a passagem verdadeira que é cínica,
a planta mais passagem que é o homem.

agora curto porque é sutil,
depois longo porque estamos
e bem mais triste é a prática
e as coisas que são ridículas,
as coisas de famílias poéticas.

tudo isso é muito lindo e é mais
lindo do que se pode fazer porque
não há respiro no pagamento
da cúria mitológica, a mimada,
e ainda aqui há o nobre Goriot.


5.9.13

"chopin"



às vezes sinto que sou um polonês,
um polonês entre o espada e a ditadura,
um polonês que se esqueceu da música,
um polonês ainda assim, baixo e robusto,
que sofre fora do mundo como bom polonês,
viajante paralisado nas alturas oceânicas,

às vezes sinto que sou um polonês
cujos pais viraram sabão e o sabão
tornou acético o que era sujeira tão nossa
e as costas entortam no escambo do ouro
e as facas dão forma a superfícies macias.

às vezes sinto que sou um polonês,
uma corda puxada por duas forças imensas,
pequenino diante do curso dos enganos,
gigantesco no que explode para dentro
a nota segura da última barcarola.

3.9.13

"as datas"


Escrever história significa
dar fisionomia às datas

(Walter Benjamin)


é preciso no entanto dar nome às datas
essas feras esquecidas que só nos visitam aos pedaços
o amor pelas datas e a vontade imensa de lembrá-las
nada são as datas são futuros provisórios
que se alteram conforme precisamos delas
onde do outro lado está uma invenção
porque é simplesmente impossível agora lembrar
e no entanto é preciso dar nome às datas
o dia em que perdi a libido a noite em que me suicidei
o capacete alemão reluzindo à entrada do esconderijo
as marcas essas nunca perderá tempo olhando para elas
e nem mesmo os anjos as encontrarão no teu corpo
e só poder falar da rosa e nunca ter visto a rosa
e comer a rosa e esfregá-la embaixo dos braços
talvez até despetalar a rosa ou usá-la como pedra
por afinidade de parentesco endoidecê-la para enfim
te deixares consumir pelo que fora do drama não é rosa
e é tudo que é só teu e de mais ninguém e nunca vês
porque procuras a rosa com que criarás teu final instável
e aparentemente seguro porque criando a rosa sorris
mas sabes todos sabemos quanto há fora da rosa
que nunca poderás tocar e jamais deixarás de pensar nisso
ainda que com tua rosa inventada na mão corroída
e a chuva cairá sobre ti um dia uma chuva fortíssima
e tu dirás a ti mesmo outra vez uma outra data
como o dia em que a chuva pobre essência incompreensível
que apesar de solícita é inepta e por todos os lados ouves
abstêmio confuso magro com o queixo tremendo impossível
limpando-se de si mesmo escorrendo devagar
o que não sabe se é algo ou tudo o que nunca soube ou teve
e se for tudo haverá de ser ao menos enlouquecido
porque dessa forma já não dura muito a rosa criada
não é preciso mais um holocausto para definir a espécie
que venham as datas e debaixo das datas a rosa
e dentro da rosa o não dito em seu corpo imperturbável
não tens agora inteligência para o verbo concluso
e a poesia gosta de coisas caras como as datas
que marcadas definem a fisionomia da morte. 

2.9.13

"jussara beatriz"


vulto que se cala à medida que avança,
passageira preciosa do primeiro embarque.
agora que falar é matar o que não foi dito,
um jato de esperança umedece a face morta.
mas o futuro não passa de um arrojado arco
que evolui sobre a seca de um lago escuro.
me atrai o medo que, sem ti, cego improvisei.
atormentado que fui por minha própria sede
acabei afogado num oceano de invernos.
hoje procuro tua lembrança em espelhos,
porque sempre há algo que sobra em nós
nos cacos de um passado nunca morto e

que nem mesmo se pode chamar passado.