31.1.15

"balada para gilbert ginsburg"


é preciso que chores baixinho agora
porque papai está com pés inchados
no chão de um mar de adivinhações
e mamãe cativa costurou seus olhos.

agora enxergas o que se extermina
quando a noite quebra seus ossos
e estás mais uma vez diante deste
lugar onde papai e mamãe foram
e onde foste concebido com amor.

gilbert ginsburg, meu bom amigo,
não se duvida das boas intenções
em precaver-se da dor deste parto.

é preciso deslizar ainda um pouco
mais por esta agudíssima voragem
em que nada se mexe, mas tu cais.

canto a ti porque reténs o nome
do que desperta em plena queda
e se queima com o ácido do sono
forçado, sabemos, pela diminuta
cápsula onde guardas teu segredo.

baixinho, querido, estamos juntos,
no quase silêncio que vai tão longe.
abracadabra agora, e já vais dormir.

15.1.15

“não há forma fácil”



vaza o coração russo nas estranhezas ocidentes,
aqui são dentes cossacos na corrupção do veneno.
queremos morrer de um acerto à boca da beirada
da estricnina que nos torna deuses sem intestino.
grosso como é grossa a voz que fala o contrário:
queremos morrer de vodca, pois é a única
                                                          morte
                                      possível para uma alma eslava
                                  em permanente
                                                                    desterro.
existe uma maneira única de despejar
o conteúdo de uma garrafa, uma liga líquida que
permanece um segundo a mais
no copo,
um choro
              inexplicável.
você me rouba porque as palavra sem espaço
são as que trancam a garganta e escorrem
em poesia esse nome terrível para dizer não sabemos
o que é a rússia o que é o queixo prognata
o que é o filho o que é olhar acima,
mas somos idílicos os filhos do abandono
e precisamos criar nossos pais tal fossem
quatro versos recém combinados, mas a vida
não combina versos e por que a poesia
faria o mesmo se não estamos no escritório?
nunca estamos no escritório de cuecas.
uma métrica de quatro não faz um verão siberiano,
nem andorinhas mujiques. há que aprender a adaptar,
                                   conspurcar com classe
[máximas de pássaros alemães de kafka ou a vida entre dois
cômodos]. não há fórmula de dois que comporte a legião que
                                                nos divisa por aqui.
a rússia, meu caro, é aqui.
mas eu nunca olharei acima como se fosse
o plausível verso, o leste nevado
de todas as chacinas as quais denominamos
“dê-me o cinzeiro”.
porque esse poema durará
o quanto duram os cigarros na ponta da escopeta.
portanto não me venha você agora
com esses nomes e palavras difíceis.
sou aqui essa pontuação dura
na neve sem boneco infantil.
e talvez você goste disso,
talvez não, mas há o sorriso
de quem bate punheta na porta da nossa cama,
e é mais bonito do que brincadeiras a quatro mãos.
a música que preciso ouvir não                existe.
existia até poucos segundos atrás, mas não mais.
mas tudo bem, convivo bem com os gorgolejos
de qualquer device que suporta mais do que pode.
o que dizer da esplendorosa perfeição da geometria?
dois e dois são quatro e três são demais – um ângulo reto
é suficiente para uma
vida                                                      de obtusidades.
quem nasce grushenka não há de ser ekaterina, mas tudo bem.
assim como a pequena rússia sabe suas dimensões, cada um
sabe o perímetro do patronímico que lhe cabe.
e o coração tem que bater ao ar livre,
não há imensidão
possível para um drama familiar.
and p.j. harvey i love your beautiful silence
which indicates i’m not paul simon
grusha, grushka ou elizavieta; importa o mel
e a santidade do erro de produzir o mel.
esqueci dos meus cigarros, o que era combinado.
sua eloquência me deixa sempre em apuros,
ainda mais quando se trata de um poema eterno,
que escreveremos ao longo dos próximos
quarenta anos, mas você quer terminar
o poema, os anos, você quer terminar
o suicida amoroso que corre as estepes
e é sem epilepsia e calmo que morre
o russo que tem ainda um coração ocidente – o que
não tem fim, nem nunca terá – o que já foi dito e sempre será.
é preciso, a-cim-a de tudo, ter mapas, como
                  religião, paganismo insistente de um só,
como escudo, para a profilaxia dos lugares-comuns
que estão aqui e lá, em todo lugar: a rússia é aqui,
eu disse, meu caro,
seu acesso é aqui, mas há muita gente
e a multidão me confunde.
                    não há forma fácil de dizer isso, mas
                                                         a karenina sou eu.
e eu sou lady chatterley.

13.1.15

“entrincheirado”



lançadas as armas à lama,
impedido de sua patente,
tropa em fuga linha reta,
pedaços numa trincheira
aguardam o fuzilamento.

deus abandonou o drama
às manobras de combate,
lançado corpo em chamas
num lamaçal de segredos,
matilha os dentes de fora.

forçar a rosa dos ventos
no peito do combatente,
cruzar as sete mil léguas
da morte entrincheirada,
cair com a língua na lama.

pergunta-se do soldado
que espera a nova guerra,
deixado fora dos planos,
no bolso falsas medalhas,
na lama sono sem sonho.

não há mais armas à vista,
nenhum anúncio de trégua,
não se vive nas trincheiras,
as armas lançadas à lama
e toda esperança do mundo.