27.10.05

"Querida Terra por quem costurei meu coração"


Acordei hoje muito cedo, tinha ido dormir muito tarde ontem. Imediatamente me veio à cabeça: nada mais idiota do que um preguiçoso que não dorme. Depois lembrei que era quarta-feira, então eu tinha companhia, fora o sapo de cerâmica e o elfo flautista de cera sem um braço na estante de cabeceira. Uma mulher dormia ao meu lado, profundamente.

Foram na verdade duas imagens que, isoladas, não tinham nada uma com a outra. Mas em seqüência, somadas à ilusão de que eu estava de fato acompanhado, o que era algo perfeitamente discutível, tendo em vista que tenho visto coisas estranhas de repente desaparecidas antes do primeiro sorriso, como sempre foi assim, quando que no sono cada um segue seu próprio caminho, somadas também ao meu espírito senil numa carcaça juvenil, que não suporta uma briga, a menos que precise entrar numa, eram duas imagens que representavam a morte de alguma coisa importante que, quem sabe um dia, quando as coisas ganharem um nome melhor do que coisas, ressuscitaria, provavelmente no meu leito de morte, segundo meu intestino delgado, daqui a duas horas, dentro do sonho, quando acordei e continuei sonhando até o fim deste relato, anotado à mão num papel de receita médica, ou terá sido num papel de pão?

A primeira imagem os pêlos negros internos das narinas de Lizete, ou Lusinete, quando o sol já tapeava as cortinas e ela dormia como um filhote de fim de mundo, virada para mim, encolhida numa cedilha plana.

A segunda imagem um feto de curió – certamente era um pombo, mas prefiro imaginar um curió – aquele do peito marrom e do bico judeu, que no mercado negro vale um carro zero, ainda lambido de sangue, devorado por uma colônia inteira de formigas vermelhas, aquelas que ardem quando você pensa, como a política nacional, na terra batida vermelha que poderia ser Brasília ou o inferno, mas era uma das subidas e descidas do Aterro do Flamengo.

Em comum tinham apenas a mim, o fato de eu nunca ter reparado antes em narinas por dentro ou curiós por debaixo dos peitos, sem a pele, com os olhos azuis esmagados na terra. Terra? Uma carta me veio à cabeça. Uma carta para Terra. “Querida Terra, sinto saudades...”. Em narinas não pensava até então porque me parecia invasivo, como abrir a bolsa de um desconhecido no metrô ou roubar o cigarro de um cego antes que ele o acenda pelo filtro. No curió por causa do cu, palavra que raramente uso desacompanhada de sentido. E o que morreu na seqüência do meu quarto até o chão de terra batida do Aterro do Flamengo? Segui andando pelo meio de pedras pontiagudas, acenando aos pescadores.

No que pisei na areia, silêncio, escuro. Essas nuvens revoltadas que me restam de dúvidas sob um céu nublado sem firmamento. Minha testa estalada, gotas de suor frisadas sobre os cílios, a parte do corpo que prefiro ao lamento. Entre algumas pedras vi algas dançarem ao sabor da maré. Algas pêlos grossos negros. Arrepios. Algas, os pêlos nas narinas de Lizete, ou talvez Lusinete, ou talvez vontade. O feto do curió mantinha a boca aberta. “Queria engolir alguma coisa, devia estar faminto”, pensei quebrando um graveto no meio. Segui andando. Silêncio, escuro. O sol escaldante, a boca banguela raivosa do mar após a ressaca do dia anterior, quando minha alma trovejou pela primeira vez, engolindo meus dedos, minhas pernas, cintura, boca, olhos. Já não sei mais nada. Estou tonto, inundado. Uma gaiola vazia. Vejo um homem passar andando com o uniforme azul da vigilância sanitária e quase caio porque meus olhos deixam de ver por um segundo ou dois e as pernas andam sem ordem. Uma mulher me espera na cama. Não, elas nunca esperam, mesmo que estejam lá ainda. Os pêlos dentro das narinas de Lizete ou Lusinete, o feto do curió, Terra, as algas marinhas dançando no escuro silencioso do sol escaldante que bebe o mar revolto, aquele som infernal, porque eterno, do mar nas minhas canelas. E o que morreu na seqüência do meu quarto até o chão de terra batida do Aterro do Flamengo? Essa pergunta me martelando a cabeça. Fui embora aflito, olhando para os lados como um fugitivo.

Voltando pelo mesmo caminho pelo qual tinha vindo, encontrei no lugar do feto do curió um pequeno coração minguado, mas pulsante. E meu peito costurado. Quando entendi tudo.

Tive um dia um passarinho engaiolado, que era uma forma de olhar para mim mesmo durante as tardes que passava sentado debaixo do basculante da cozinha, em frente à gaiola. Uma fêmea, dormia o dia todo. Chamei de Terra, porque ela era tão triste e a Terra me parecia também tão triste e éramos todos, sem saber. Na verdade, dado o alto preço de um curió, creio hoje que fosse um canário. Mesmo assim gostava de Terra, que não piava nunca e tinha os olhos azuis da cor do mar que, no entanto, era cor de barro. Um dia um homem com uniforme azul veio e me levou Terra, agora me lembro bem, sentado num banquinho do parque. Ele tinha os pêlos muito negros nos braços, o que, lembro agora, à época me chamou muita atenção. No dia seguinte deixei uma carta na gaiola vazia de Terra. “Querida Terra, sinto saudades”. E então costurei meu peito. E hoje achei meu coração.

23.10.05

"NEGÓCIO DA ROÇA" (Rubem Braga)


- Comprei um cavalo por 700 cruzeiros e vendi por 900. Não ganhei nem perdi.

- Mas como? Se você comprou por 700 e vendeu por 900, como é que você não ganhou nem perdeu?

- Não ganhei nem perdi.

- Você não disse que comprou por 700?

- Comprei.

- E não vendeu por 900?

- Vendi.

- Então você ganhou 200.

- Não ganhei nem perdi.

- Mas como?

- Comprei o cavalo por 700 contos e não paguei. Vendi por 900 e não me pagaram. Não ganhei nem perdi.

18.10.05

"pai e filho conversando sobre a morte"

Quando você morrer eu morro.
Não.
Sim, uma parte de mim.
Não, nunca seremos tão íntimos quanto quando isso acontecer.
Íntimos? Você num caixão... Íntimos?
Sim, pense bem: de perto todo mundo é mais ou menos,
de longe todo mundo é legal, morto todo mundo é do cacete.
E de muito perto todo mundo é insuportável.
...
Por que você não lavou a louça?
Porque ainda estou comendo.
Você poderia comer o dia inteiro.
E você morreria por isso?
Um dia, talvez, provavelmente.
...
Você falando, parece que quer que eu morra.
Você não. Mas eu já quis que duas pessoas morressem.
Quem?
Um sujeito que me roubou e outro que era pelego de uma greve que eu fiz.
Mas você queria que eles morressem?
Queria. Mas não podia matar nenhum deles. Então tive que esperar. Outro dia me ligaram:
um de câncer no estômago, outro morto pela empregada doméstica, a facadas.
...
Mais gente de bem mata ou mais gente de mal mata?
Não existe gente assim.
Como não?
Todo mundo é meio mau. Alguns conseguem ser bons, sempre que têm um motivo. São os que chamamos de canalhas. Outros são ativistas, ou seja, malucos que lutam pela humanidade.
Você é a favor das armas, então...
Não exatamente. Tem um motivo pra você ser contra as armas: os crimes babacas. Sem armas, os crimes babacas diminuem. Esse seria um motivo. O único motivo na verdade.
...
Mas você é contra...
Do mesmo jeito que sou contra os babacas. Não acho a morte um absurdo.
Eu acho. Morreria se você morresse.
Mentira. Isso é desculpa pra não ter que viver.
Morreria. Uma parte simbólica pelo menos.
Você ficaria triste durante um tempo, sua vida mudaria, provavelmente pra melhor.
Eu morreria.
Então você morreria. E seríamos mais dois. Eu penso como os índios em relação à morte.
Como eles pensam?
A morte é tão importante quanto a vida. Talvez mais importante, porque é um elo eterno.
Eu também acho isso. Por isso que, se você morresse, eu me mataria.
Porque você acha a morte mais importante do que a vida.
...
Eu te amo. É tudo.
Eu também. E isso não é tudo.

E o guri foi lavar a louça, disfarçando com o mindinho a lágrima da morte, que ria no canto da pia.

16.10.05

"Jura?"

O termo talvez seja recente. Veja uma mulher bonita e descompromissada, a não ser com a própria neurose, e diga a ela, se você achar o suficiente, a julgar pelas medidas, suas linhas, que nessas horas são as medidas do mundo: “você é a coisa mais linda”:

Resposta: “Jura?”

Você pode esperar um tapa, você pode esperar bolivianos voando dos telhados, você pode esperar gordinhos imaginários, cornos resignados, que pensam serem fortes o suficiente para não comerem ninguém, achando que vão comer aquela gordinha, ela que um dia, e ela sabe, já foi gostosa pra valer, sem olhar ninguém senão olho roxo, então se acostumou a olhar ninguém, se acostumou a esquecer, o que é o próprio gordinho sem pescoço, um comportamento moderno, modesto, olhar ninguém, nada atrativo, um erro político, uma função prática social, olhar ninguém e ver o mundo, antes fosse articulado, mas não, faz questão de provar sua masculinidade no poder da inação.

Carol, é claro. São duas. Uma eu poderia matar, porque ela gostaria. Outra – que é a mesma, apenas eu não sou mais eu mesmo depois de alisar a mão daquela desconhecida e de ter três dentes marcados na carne do meu dedo indicador – ficaria estatelada num carro antigo, Fiat 147, e o amigo, marido da outra, bandido e gordo, pobre homem que espera que a força lhe explique certas sutilezas, como a morte por exemplo, briga com sua atual mulher porque sua ex-mulher, a qual espancava com cinta, vejam bem!, estava ali também, e isso era certamente um motivo a mais para ser valente, além do quem sabe um pau que funcionasse diariamente, e o gordo caça nos bolsos cheios palavras que dizem “tenho uma mulher que tem uma mulher, deitada com a mão no rosto num Fiat 147, e eu na verdade não tenho mulher, porque se tivesse, como poderia estar brigando com ela por causa da minha ex-mulher – antes fosse dela! – que esteve aqui, ou será que estou brigando só porque minha barriga ficou pequena demais para comportar meu ego, tão enlatado quando salsicha em conserva, esse troço viscoso que sai dos poros nas noites de sábado?”.
E Carol. Fui vê-la cobrir o rosto deitada no carro. Porque queria ver a morte de perto. A morte tem olhos azuis. Batidinhas na janela. Ela apenas abre o olho e eu aceno. O olho dela, só um, porque dois ela sabe que matam mais rápido, são tão grandes que não dizem nada. Por que, vocês podem perguntar, eu aceno para ela? Seria obrigado a responder: porque ela se esconde e acha a vida bela, demais para colocar sua morte prática em questão. Não quer mudar de estratégia, agora que tem os olhos de fogo. E eu também acho a vida bela, do contrário não saía mais nas ruas. Mas me aperta o coração procurar beleza debaixo dos tapetes, ou num Fiat 147, para encontrar poeira ainda quente, ou então Carol tampando o rosto com olhos vivos exemplos da morte, uma canga de ontem na praia de Ipanema, pequenas varizes, como poemas de amor, sobre a cara. E o que poderia me tirar da cabeça a menina “MAIS LINDA”, quando eu disse a ela e ela apenas respondeu, sinceramente amuada, “JURA?”, mas, tudo bem, concordo com o que vocês estão pensando agora, se chegaram até essa linha, que, sim, esse texto não terá fim, já não tinha um propósito antes de começar, agora sai apenas porque assim me sinto mais convicto do que gostaria de dizer sobre Carol, já que dificilmente para Carol, mas quero marcá-la de algum jeito, aquelas marcas de cigarro no pulso direito, quero marcá-la como aquelas marcas de cigarro voluntárias num banheiro com cheiro de desinfetante barato, uma privada entupida fechada, ela em cima da tampa com o cigarro, se fazendo amar pela brasa, o que é a mesma coisa que tudo mundo faz, apenas ela faz porque não sabe. Isso se o gordinho não se tivesse interposto entre mim e ela, dizendo “Algum problema, amigo?”, e eu, “Não, quero ver um pouco mais a Carol, nenhum problema”, e ele, “Ela é maluca, doida das idéias, já matou um homem”, e isso é tão fácil de dizer quanto dizer que a vida é bonita dentro de um quarto com as cortinas fechadas, ou dentro de um livro, ou de um filme, tudo sem falar do que é a vida, grande demais para a beleza, como se a vida inteira não passasse de um quarto fechado, e a morte não passasse de Carol, enlouquecida, amaldiçoada, “jura?”, juro, me empresta um deus que eu te juro, e isso raramente digo. Não que seja grosseiro ou ante-clerical, apenas tenho poucas idéias de conversa na mesma hora em que quero estar com você: em suma, nunca coincidem o que penso e o que faço, o que é perigosíssimo, como o amor, não pela forma, jamais pelas inspirações, algo mais embaixo... É o que é, sem beleza nenhuma, pensem bem: é porque as grandes sacadas são, porque o que é dói sem pedir desculpas, e normalmente não corresponde ao que somos, e pensamos, o erro infinito, que me faz pensar se as “grandes sacadas” não passam de cama quente para a mortalha da humanidade... Não que me orgulhe em dizer isso... Se me orgulhasse deixava quieto... Mas é bem melhor do que todos os franceses que já conheci, com a exceção do francês belga que pagava cachaça sem parar de rir. E até hoje, olhando Carol no carro, espero Andréa, Lina, Claudilene, Fátima. Mas, como prometi, esse hoje não teria fim...

13.10.05

"A menina com transtorno bipolar que lê Hemingway"

Durante um mês inteiro, sempre às quartas-feiras. No que dormia, reparava na solidão escondida numa caixa enrolada em laço de fita numa das mãos do negro sentado no ponto de ônibus. Na outra mão um vaso com apenas uma flor vermelha. Não sabia distinguir que flor. Mas ela estava ali – a solidão, pura e eterna – na canção que assobiava o negro tristemente, sobrancelhas atiçadas, olhos baixos na sua flor vermelha.

Em momentos de grande perturbação ou convicção irredutível, é importante sonhar. A fumaça espessa de um Gold Flake numa varanda sem luz, onde se ouve o rangido de uma rede em movimento. Um homem gordo, olhos sanguinários, ou talvez apenas exaustos, mas bem abertos, na varanda coberta de ladrilhos à beira do Oceano Atlântico, escuta Woody Guthrie muito baixo numa vitrola de madeira: garrafa de Bell’s rola pelo chão com a força da brisa do mar, depois pára e roda para trás. Um colibri se pronuncia de 8 em 8 segundos, três duplos e curtos, um longo e sofrido. Ao longe, coqueiros, dunas, o infinito crepitante, a morte comendo pelas beiradas o que não se sabe sobre a vida, mesmo quando se vive, justo quando se engana. De repente, um fio de saliva desliza pela boca aberta do ronco do mundo: um fino fio infantil esculpi o rosto do gordo sonolento.

O mesmo colibri, agora morto e depenado, esmagado no asfalto. Um ioiô rolando para debaixo da mesa. Uma mão batendo na janela quando neva lá fora e o mundo derrete por dentro, dentro de cada um. Pessoas de preto se aproximam num ritmo de procissão, em círculos apontam dedos, perdem a compostura e se avançam umas nas outras como hienas famintas quando, de repente, um relógio do Batman jogado pela janela da cozinha, uma mão que lhe ensaboa as costas, um chinelo velho de borracha, uma unha comida presa num casaco de brim, uma grande montanha de pedra que ouve os barulhos da Terra e se cala, no formato de uma cobra naja instigada.

Por quilômetros se estende um cafezal. O vento dá suas coordenadas. Passos enganados por sussurros. Uma coxinha de galinha dentro de uma cesta de palha. Lulu Santos, um vestido velho de chita, Lulu Santos?, dois cachorros grudados pelo rabo, Vaguinho, o filho do caseiro... Vaguinho? E então, a proibição. Se vira na cama para tapear o ronco.

Dez minutos em branco.

Um casal dança numa gafieira, noite de meio de semana na Lapa, completamente só, enquanto toca “Formosa” num gramofone infestado de cupins: a mulher que dança é cega, usa óculos escuros, o homem parece feliz, sorri, quando no fundo espera que alguma coisa mude rápido. Mas não existe mais ninguém na rua e a cega chora no seu ombro.

Uma menina de olhos grandes e vidrados, que num belo dia de sol se senta em frente a ele na padaria, ele comendo um pão com média e lendo “Paris é uma festa”, imaginando o quanto nos resta, e ela chega bem perto, boca aberta num sorriso abobado, os olhos decididos dos bem loucos, cara muito pálida, intenções lentas e fulminantes.

- Posso me sentar? – ela diz, logo depois de se sentar.

Arranca o livro das mãos dele.

- Esse daí se matou – ela diz com muita naturalidade, mas tremendo.

- Você gosta? – ele diz.

- Dele ou do suicídio? – ela pergunta respondendo ao mesmo tempo, depois acende o cigarro torto num arco.

- Dele. Hemingway.

- Gosto de você. Mas estou realmente muito atrasada – ela diz e se levanta abruptamente, tira um papel da bolsa, senta outra vez.

Ele vê um pente feito com casco de tartaruga. Pensa: “deve ser bipolar, porque ativista não é”. Ela arranca um canhoto de cheque, tira uma caneta barata da bolsa e começa a escrever usando Hemingway como apoio para o papel.

- Olha – ela diz ao lhe entregar o papel. – Me liga. Agora estou mesmo atrasada. Mas quero te ver outra vez. Daí te falo o que eu acho do Hemingway de verdade. Mas agora não. Liga sim. Se não quisesse não te daria meu número.

Avança sobre a mesa. Um pão com manteiga pisado no chão. Sapeca um beijo na boca dele. Um beijo nu. Vai embora.

Outra vez se vêem na rua. Não se falam. Ela finge bater fotos. Aponta a máquina para cima, mas não se fotografa o canto dos passarinhos. Parece preocupada, certamente mais gorda, quase saudável. Ele ri e pensa: “a menina com transtorno bipolar que lê Hemingway”.

Então acorda completamente suado e de pau duro.

10.10.05

"Amizade"



Sim
Não
E estamos acertados.

8.10.05

"o dilema da paixão"

Vejam o que se passa em determinadas estâncias...

“você é de onde?”
como assim de onde? sou teu.

Sorriso simétrico dos olhos com a primeira ruga que será para sempre

“sinto que te conheço de algum lugar”
eu também.
“você faz o que da vida?”
você quer dizer DA vida ou NA vida, porque é bem diferente, você sabe...

Sorriso feio, o mais sincero, porque calmo, quase um erro justo, quase um acerto

“kuákuákuákuákuá...”
se for DA vida, eu te digo que gostaria de poder conhecer a fundo certos tipos de pessoa
“e NA vida?”
sou assistente de edição de um programa de televisão, e você?
“meu nome é Andréa, e o teu?”
ei! te fiz uma pergunta antes... não sou burro.

Sorriso quase sem sorriso, procurando a amiga, que não existe

“você é muito engraçado”
te fiz uma pergunta antes.
“você mora aonde?”
flamengo, e você?
“ipanema, sou arquiteta”
a cara de ipanema...

Sorriso, onde está minha amiga? quer saber? gosto dele, e daí?

o seguinte: gosto de você.

Sorriso, sem sorriso, uma pinta protuberante no canto esquerdo da boca, negra

“você não me conhece”
por isso mesmo.
“olha, eu sou tímida”
eu sei, eu também.
“não sei fazer”
eu sei.

Sorriso, cara fechada, mão no peito

“você é de onde?”
porto alegre.

Sorriso, cara contente, algodão doce, bolhas de sabão

“veio pra cá quando?”
bem cedo. minha família é de lá.

...

“vou procurar minha amiga”
tudo bem.

Sorriso, vai e volta, pára do lado, cheiro bom e antigo

eu gosto de você.
“que isso?!”
isso mesmo.
“você quer um beijo?”
também, mas...

Beijo de estalo

você é muito caseira.
“que isso?! você é maluco!”
você dá beijo de selinho num desconhecido já depois de velha.
“quantos anos eu tenho?”
eu tenho 23.
“sério?”
sério não, meio torto.

Beijo no pescoço, saliva salgada, a paixão

olha aqui, o teu gosto...

Beijo na boca, de língua

Ela larga o homem – sorriso – e vai procurar sua amiga, que não está em nenhum lugar e, ao mesmo tempo, está em todos. ela volta, mais falante, estranhamente não achou ninguém.

você gosta de mim?

Sorriso, mentira e sonho, as mesmas coisas, misturadas, para enganar melhor

“isso não se pergunta”
tem razão.

...

Chega perto uma menina simpática, olhão verde, outro cinza, poucos agrados.
um cão uiva determinando o fim da festa

“vamos...”
vamos de a pé.

Ele puxa ela pelo braço, não dá certo, ela se vira pra menina, olho no olho verde dela,
nada no cinza, além do que não se explica

“olha, esse cara quer descer a pé”

Aponta para ele

Sorriso, menina de olho verde, outro cinza, quer viver, mas não sabe como ali

eu vou te ver de novo?
“você é um charlatão”
por quê?
“por causa do jeito que fala”
diz isso porque eu sou sincero?
“talvez...”
não sou charlatão. posso ser chato, incompetente, mas não sou charlatão.
“fofo...”
quero te ver outra vez... gosto de você.

Sorriso, minto ou digo a verdade?, talvez um número e pronto, está feito, me livro, me lembro. ela anota o número dele.

estou sem o celular. deixei no carro de quem me trouxe.

...

você vai me ligar?
“vou”

Sorriso, beijo caseiro, e nunca mais se viram outra vez

6.10.05

"um pouco de poe"


“Parece porque é”

***

“Eu não tinha medo de olhar as coisas horríveis,
mas ficava apavorado com a idéia de nada ver”

***


“O que vejo, o que sou e suponho será apenas
um sonho num sonho?”

***

“...E a morte invade
Os meus sentidos, na ilha peregrina,
Tão de leve, que nem sequer pressente
O adormecido que ela está presente.”
(do poema Al Aaraaf)

***

“...E, entrementes, guarda na mete que tudo é vida –
VIDA – Vida dentro da VIDA – o menor dentro
do maior e tudo dentro do ESPÍRITO DIVINO.”

***

“E ali dentro está a vontade, que não morre. Quem conhece o
mistério da vontade, com seu poder? Porque Deus é apenas
uma grande vontade que penetra todas as coisas graças
à força de Sua aplicação. O homem não se submete aos
demônios, nem se rende inteiramente à própria morte,
a não ser pela debilidade de sua fraca vontade.”

***

“Como ponto de partida, considerei simplesmente provado que o começo nada tinha por trás de si, nem diante de si, que era um começo, de fato, que era um começo e nada mais que um começo, em suma que este começo era... aquilo que era.”
(de Eureka: poema em prosa ou ensaio sobre o universo material e espiritual)

3.10.05

algum matemático, por favor, responda:

qual a probabilidade de você estar pensando
numa mulher que nunca conheceu na vida
exatamente quando ela aparece de repente
do teu lado no sinal com roupa de executiva,

soltando os cabelos rindo para os lados,
cantando enquanto você pára de cantar,
reconhecendo você sem você conseguir,
olhar de volta sem rir como um idiota,
dobrando em seguida a última esquina,
da chance que separa dois desconhecidos,

para logo depois você deixar cair a chave de casa
no vão entre o elevador quando abre e a porta,
para sempre perdidos no porão das vaidades:
você – talvez ela – e a chave?

o japonês é quem tinha toda a razão:
se a vida não passa de um sonho,
e estamos todos mortos,
não quero esquecer,
vou lembrar.

1.10.05

"Ressaca"


o gosto que tua boca apresenta
em determinados sábados
sem explicação
ou em domingos de paixão vazada
você atrás da paixão numa garrafa
ou com explicação demais para dar
é o gosto de tudo aquilo
que você nunca pôde suportar
somado àquilo que você
sempre soube que jamais
iria te abandonar.

e se os olhos pelo menos abrissem...
seria mais fácil detectar o erro
ainda em tempo...
mas não.