29.10.21

"soneto ao poeta rico de esquerda"


ri de tudo a poesia burguesa

e faz da ideologia essa moeda.

de bolso cheio vem o zé-cuzeta

dizer que idolatra o marighella.

 

cordeirinhos em pele de raposa,

gritam e gostam de fazer tumulto.

engajados porque fumam maconha,

enriquecem pela porta dos fundos.

 

mas a mim essa gente não engana:

sem dentes, a fome não dá risada.

confundem empatia com a fama,

 

enchem a rede com boas tiradas.

de riso em riso, seguem cantando,

empobrecendo a causa operária.

"epopeia"


não ser bom

nem verdadeiro:

mas ser belo.

 

transformar

a crueldade

em disputa justa.

 

porque todo

combate

é individual.

 

grande herói

enfrenta outro:

aplaudimos.

 

dar com murros

brilho à existência.

não pela busca

da felicidade,

mas pela façanha

de almejar a glória.

24.10.21

"uma aula de claudio ulpiano"

 

tenho matéria e sou, portanto, algo mau.

dentro de mim cada dia é um país diferente,

é difícil mudar de país todo dia, perguntem

aos ciganos e aos grande animais voadores.

o demônio vem do deus puro dos espíritos.

contra a vontade de nada, nada de vontade.

a justiça é necessariamente um vingança,

enquanto que os puros espíritos fogem à lei.

é proibido comer cajá de um certo pé de cajá.

isso quer dizer que alguém na casa quer cajá.

o demônio é um monomaníaco, ao passo que

o anjo – grande surpresa – é um hipocondríaco.

no momento em que descubro minha vontade

de comer mamãe e matar papai, começo a ter

vergonha do meu próprio desejo, estou na lei.

existem na obra desse menino (como é mesmo

o nome dele? herman melville) três personagens:

o demônio, o anjo e o profeta, que quer matar

os dois primeiros, mas matar o demônio parece

impossível, porque o demônio é rápido demais,

ao passo que o segundo não pode se mover,

então o profeta só consegue matar o anjo

e o demônio se mata junto com o seu alvo

de destruição total, e nós continuamos aqui,

como as exemplares figuras coadjuvantes,

ainda mais tristes porque somos capazes

de entender o que há de mais importante:

literatura é mostrar a vida como viagem.

tenho uma pergunta a fazer ao professor:

não parece uma bela sacanagem que o anjo

não se mova e seja destruído pelo profeta

enquanto o demônio escapa? seria a prova

de que a vida não passa de um programa

da vitória inevitável do mal permanente?

21.10.21

"sobre a eternidade"


uma pessoa é eterna

quando te faz querer

escrever um poema

sobre ela, sobre isso:

uma pessoa como tu,

que imagino sempre

a correr com crianças,

como mais uma delas,

uma criança muito séria,

a ponto de outras crianças

dizerem para o teu corpo

sempre maior que o delas:

tu és pessoa séria demais

para não ser uma criança.

 

eternizar é também isso:

imaginar sem poder ver,

cheirar os cabelos do sol

com os olhos fechados

na fantasia da pele do sol,

então pensar em cavalos

que corressem na água

ao ponto da eternidade

caber nas mãos fechadas

dessas mesmas crianças

com as quais tu corres,

e quando surges na tarde,

com tua doce avalanche

devastas a pequena vida

com enigma de vulcões.

 

eterno talvez seja algo

que nunca vi se mexer,

algo como uma foto

preta e branca que é

como, imagino, sejam

todas as personagens

de todos os poemas

de todos os tempos,

eu mesmo talvez seja

uma daquelas crianças

com os mesmos olhos

que já olhei por horas

e nunca vi se mexer.

o que, sem se mover,

talvez seja a origem

de tudo que morre.

 

18.10.21

"o coração é um tijolo"


aqui é criança solta e mãe de amor pesado,

na rua não faz noite muito longe do farelo.

quase esquizo um sujeito maleável cumpre

as ganas da intromissão dessa voz tão rala.

as bodas do fascismo oferecem repertório

ao diálogo com esperma de um futuro frio.

mordo o que posso sintonizo orelha de cão

no contrabando frágil de um pulo hesitante.

revoluções truculentas assistem ao passado,

seus dentes no rabo da filosofia geriátrica.

na crosta do afeto uma religião de feridas,

iscas de fluxo para uma história da guerra.

lança que fere é também madeira da casa,

marca mortífera na origem dessa aventura.

destino de criança é suor que dá com pelo

na fagulha suicida virada em outra estação.

o coração é um bumerangue de pedra dura

ao alcance de cada mão de criança magra.

o coração é um tijolo na carcaça do delírio

escorrido em mil cores por entre as mãos.