31.1.09

"alien"

Se não podemos abraçar, não há por que discutir, não há por que guerrilhar, enfim, não há por quê. Enquanto houver um motivo, um que seja, como cor rompendo o asfalto quente, enquanto houver um motivo que seja para ser, haverá guerra, haverá discussão e mortes e alojamentos fantasmas. Em compensação, se não houvesse mais como ser, em nenhuma hipótese ou partícula, seria o fim de toda guerra, de toda hipótese deliberadamente criminosa, de tudo aquilo que suga permanentemente e não devolve nada. Sem abraço, enfim, sem que as pessoas consigam de alguma forma atingir a imprescindível pieguice de dar as mãos, não haverá mais aquilo que faz o mundo ser, não haverá mais o motivo real pela disputa, não haverá mais a discórdia, porque estaremos longe e longe estaremos calmos, tão calmos como no fundo do mar. Os homens ainda guerrilham porque sabem que ainda é possível abraçar. A visão do abraço é a visão do equilíbrio. Como homens são pêndulos, o equilíbrio é sempre algo furtivo, que causa nojo. Sentimos nojo. Sentimos nojo, ponto. Afirmando isso podemos saber que a bondade poderia ser uma perfeita análoga ao equilíbrio. O equilíbrio, como todos sabemos, causa nojo. O que restaria então à bondade? Mas temos o cérebro, esse ilustre vilão desconhecido. Nosso algoz não é capaz de nos deixar ser os animais ainda semi-selvagens que viemos para ser. Então nos induz a tornar de novo ao equilíbrio ensaboado. Passamos horas dos nossos dias vendendo equilíbrio, mostrando aos outros na rua “olha só, estou bem equilibrado agora, veja que beleza, que maravilha de harmonização”. Mas a noite é a falta de luz e onde há falta não há equilíbrio. Talvez por isso os mísseis fossem lançados sempre à noite. Talvez por isso as pernas só fossem amputadas pela manhã. E de repente não conseguimos mais nos conter, estamos a caminho de casa mas nada parece muito cômodo, nada parece se aproximar de algo familiar. Mesmo aqueles a quem acenamos, mandamos beijos do outro lado da rua. Seres estranhos, todos. Bom mesmo teria sido aceitar o mais difícil: ser deixado no meio da rua sem dinheiro, ir andando a pé, gastar as solas em causa própria. Mas ficas. Persistes no equívoco e orgulhas-te. Essa frase ficou realmente terrível! Olho para mim mesmo e não tenho a menor idéia. Impossível adivinhar o que há por trás da pele. Isso começou como discussão tácita e já periga desandar. Sinto que estou copiando clamorosamente o estilo de Graciliano Ramos. Por que tanta secura, meu deus? Dizem que abraçamos por causa de deus. Dizem também que matamos por causa dele. Eu vejo de outra forma. Deus é uma ferramenta, uma palavra em alto-relevo que se pode quase pegar. Mas não passa disso. Deus é uma semi-ocultação de uma solicitação tendenciosa. Queremos ser salvos, mas não todos, não sempre. Afinal, o que acontece depois da salvação? Permanece a antiga dúvida. Olho pela janela e vejo que, depois de muito tempo, faz sol, os carros voltaram a passar embriagados de raiva, o diálogo entre as buzinas muito mais real que o diálogo entre os humanos, e me sinto aterrorizado. Não vivi ainda quase nada: algumas mortes mal recebidas e alguma vida que transborda sobre o fogo único. Mesmo assim sinto medo como se conhecesse o mundo. Quem conhece o mundo sabe que há sempre pouca chance. Eu não conheço e sinto como se soubesse. Tenho pouca chance e não sou mais tão novo para dizer que isso não me apavora. O sol brilha forte como um velho sem compaixão. Se soubesse alguma coisa poderia dizer “veja bem, isso aqui e mais isso aqui, eu poderia dizer que sei razoavelmente bem”, então ao menos não estaria tão deslocado, estaria inserido, automatizado, poderia assim perfeitamente atingir a reflexão positiva e “apenas viver”. Mas saber alguma coisa leva a uma sentença mais lenta ou mais rápida, mas não menos destrutiva. Gostaria de falar mal de muitas pessoas. Descontar tudo em cima delas. Mas de que serviria descontar em quem sabe tanto quanto eu? Disfarçamos bem. Damos a mão às senhoras cegas, tomamos café com o dedo mínimo voltado para cima, esperamos diariamente pelo milagre, nossa fatia de misticismo chulo. Podemos decorar tabelas ou mesmo desempenhar a criatividade repentina. Além do mais existem os gramados, as montanhas e os antidepressivos. Em suma, está tudo à mão. O problema é, como dizia o filósofo que morreu na curva, que tudo está à mão, mas nada pode ser explicado. E acontece que somos feitos de uma natureza que, expandida, tende normalmente às questões do saber. E como isso é uma ladainha demorada preferimos encher os bares, enriquecer obesas famílias portuguesas e repressoras, lotar os estádios dos aplausos enlouquecidos, comprar armamentos e subir fronteiras imaginárias. E quando nos damos conta somos o poder que se torna retorno à infância não aproveitada. E estamos mais uma vez explodindo postos de gasolina, pulando de penhascos, assassinando indiscriminadamente formigas como se fossem leões africanos, ou mesmo os filhos desnutridos de uma tribo violada. Falar em guerra? Como é interessante participar desse teatro, onde todos se olham e se acusam e esquecem tudo pelo que o ser humano já passou para chegar até aqui, que é lugar algum, que é lugar onde não sabemos por que exatamente continuar, mas um zunido dentro da nossa cabeça nos diz que é preciso persistir, que um dia a sorte virá, que a justiça virá, que não haverá mais separação entre riqueza e pobreza, seremos um embrulho para presente dos infernos, e não mais precisaremos temer o fim do mundo, ele estará aconchegado como um feto nas nossas barrigas.

21.1.09

"cat in the rain"

hoje eu vi um gato na chuva
e achei que essa frase ficaria
melhor escrita noutra língua,
então pensei em outra língua
- eu e o gato, dois estranhos -
e a frase ficou mesmo bonita
- today I saw a cat in the rain.

dizem que gatos não molham,
mas aquele molhava devagar,
corpo esticado contra o peso
do mundo e ali estava o gato,
apenas manchas, olhos, fuga
e vida poética que se debatia,
contra todos os gatos, contra
aquilo que dizem sobre gatos,
que não molham e que nunca
poderiam ter a vaga coragem
de estar na chuva contra tudo.

o gato molhava e fugia e era
como eu mesmo só na chuva,
sem milagres, sem pesquisas
de como estar em cada lugar,
apenas eu e o gato, a chuva
caindo feito faca sobre a pele
- fallin' like a knife over skin.

18.1.09

“É mesmo algo muito raro”

Eu queria ao menos por uma vez ser coerente. Dizer sem pecado as belezas do mundo. Queria ver as cores cada uma no seu lugar. E que o sangue não me assustasse tanto. Queria sentir prazer em acordar dormir acordar levantar deitar segurar a ampulheta virada para baixo. Eu queria que o sol me dissesse qualquer coisa de “continuemos então de mãos dadas”. Que a poesia recolhesse meus órgãos para um local seguro, longe do monstro sem forma que me apedreja. Ah, como eu gostaria, por um dia, uma hora, tratar os seres humanos como iguais e amar a mim mesmo tanto que seria possível gostar de um igual a mim. Mas o mundo exige certa dose de brutalidade. É algo estritamente necessário para a separação dos grãos. Com um metro e setenta de altura, segundo o laudo militar, minhas chances são tão ínfimas quanto as de Napoleão. Mas só de ver e sorrir por simplesmente estar vendo, apenas reagir às manifestações da terra como se tudo fosse importante e estivesse no seu devido lugar, “ver por outro prisma”, apenas romper com a idéia preconcebida ainda dentro do cerne. Queria finalmente olhar, e ver. Ver tudo e não esperar nada porque estaria vendo realmente tudo, mas, moralmente, a idéia de não esperar nada me assusta e me aproxima de cometer uma atitude qualquer impensada. Queria, queria, queria. De que adianta falar que adoraria provar a doçura de cada pessoa, lamber os dedos que tocaram o favo e dar de provar da substância a qualquer um? De que adiantaria mais essa interrogação? Queria, sim, queria olhar para vocês e não precisar escrever nada, pensar em vocês como página branca mais bonita. Queria um texto branco para ninar meu pavor de continuar com essas perguntas vazias e essa adolescente insubordinação. Mas estou perdendo a batalha, sinto-me cada vez mais como qualquer um. Apenas não me esqueci. A memória é o que nos impede de aceitar totalmente. E tenho um repentino ímpeto de pular da cadeira, vestir a calça mais velha, entrar no primeiro boteco e olhar a todos nos olhos e que nesse único movimento todos os órgãos transbordassem por dentro de cada corpo. E as doenças seriam bem-vindas e os aleijados e os mal-cheirosos e até mesmo os crápulas incorrigíveis abraçariam a mesma causa. Que comoção seria a tomada das ruas, os chocalhos nas mãos das crianças e as bebidas dividas por pessoas que pela primeira vez se olhassem. Mas, em vez disso, a confusão da sensibilidade leva à propagação da dor. E nas ruas ninguém se olha, mas todos esperam algo de algum lugar. Um meteoro, um dilúvio, qualquer coisa que as faça sacudir a carcaça para aceitar mais. E esperando envelhecemos distantes uns dos outros. E velhos nos tornamos cada vez mais parecidos. As crenças vão se transmutando em horríveis carrancas, as expectativas cada vez mais ácidas e menos humanas. Vivemos as cascatas de uma troca de pele inédita. Queria a doçura, de fato, queria a poesia funda de alguém que respirasse mais alto. Mas os ídolos envelheceram e representam o outro lado. Estamos sozinhos e procuramos ajuda em pleno sol. Corpos em chamas que não chamam atenção. São dúvidas que não serão respondidas, a carne dura do tempo achatado por hipóteses remotas. E vivemos às custas dos que possuem tudo e não têm nada. E nem mesmo a língua pátria está mais do nosso lado. Acabaram com os acentos, os pontos hesitantes, os travessões intransponíveis, as vírgulas lispectorianas. É um tempo duro de notícias temerosas e praias cheias. Nossas pernas agüentam ainda mil quilômetros, mas temos um buraco no peito, que não é tuberculose, não é amor ferido, não é piedade, não são leituras equivocadas ou buscas rudimentares. Existe um desaparecimento ao lado de cada um. Aos delicados, deve-se dizer: cuidado! A poesia não é mais a poesia que salva uma vida. A poesia agora quer tomar o espaço da vida. Já tomou. É mesmo algo muito raro não se perder a ternura.

14.1.09

"A Preparação"

Apenas vinhos baratos, por uma ressaca fraterna. Muito deve estar relacionado à forma com que um se acomoda de frente para a fera sedenta. Sim, é fundamental ajustar o espírito para receber a luz forte. Abrir as janelas, ouvir o som de lá fora, tentar capturar as nuances que se acumulam e se atropelam. Dar uma ou duas voltas pelo ambiente, tocar objetos de vidro e de metal, sentir o frio se comportar diante da pele ainda confusa, administrar a ansiedade em desenvolver pirâmides.

Que se pode fazer senão preparar o corpo, não sentar agora, tomar um copo de seja o que for, entrar em conexão com o movimento torrencial, alimentar com qualquer substância levemente venenosa o corpo, adaptá-lo ao leve, muito leve cinismo criador?

Recuar tantas vezes quantas necessárias também pode engrandecer a sujeição às idéias ainda soltas num pequeno espaço sem luz, mas cheio de calor. As janelas ainda abertas. Um calor insuportável e as plantas paradas. O som dos carros que passam pela avenida comporta uma solidão de ultraje. Os seres invertebrados da noite parecem tão felizes...

As reticências de repente assustam. Há que se ajeitar perante o assento. Barbaridade essa barba grossa, esse cabelo desgrenhado. As pernas doem, o corpo reclama em qualquer língua ancestral. Ainda mais essa repentina sensação constrangedora de faltar um Quê imprescindível. Buscar esse Quê. Vale a pena abrir as gavetas? Tudo vale a pena... Destino mais enfadonho. O de tudo valer a pena. A sensação de ser lhama da montanha gelada serve apenas para acalentar o espírito. Conhaque também. Preparar o cinzeiro, limpar as cinzas mais antigas, trazer o aparador para o charuto enrolado num excelente país escravocrata, almofadas para o assento, que por baixo se começa a pensar.

Sim, estalar os dedos um no outro, Get out of town, todos de repente, todos os dedos, roídos e sem digitais bem-definidas, todos assim sobre a mesa, abrir enfim uma garrafa, talvez seja mesmo a hora, o tic tac, tic tac, tic tac do relógio, um momento, isso não é Machado de Assis! Que dedos horríveis, pobres coitados, dedos em pânico. Cada vez mais reticente... Importantíssimo enterrar os mortos, deixá-los com sabedoria de pasto. Mas é inevitável e perfeitamente ordinária a conclusão de que talvez um belo bico de pena ajudasse em qualquer petição poética.

Carregar por que a tinta dos infelizes? Nada disso, com um bom preparo atinge-se a excelência. Frieza, e avante! Sente-se, cuidado com a postura, deixe a máquina rodar seus eixos, deixa a fúria tomar corpo. Um gole a mais ou a menos, que há de fazer contra? O principal é traçar um objetivo claro. Realizar devidamente a tarefa e recuperar a esperança das massas. Está tudo pronto, a favor de uma dialética proveitosa. Como comecei mesmo isso aqui? Era uma frase bonita. Meio sem sentido. Mas bonita. Apenas vinhos baratos, por uma ressaca fraterna. Pois muito bem. Tantas voltas para chegar de novo a isso? Ó palavras desconexas, por que nos acompanhais por becos tão sólidos e abstratos? A cabeça ereta contra o encosto reclinável, por favor, endireite essa postura, estale os dedos, deixe Julie London soltar sua voz de branca sem preconceito, e então o que dizer mais, o que dizer?

10.1.09

“engraçado como de repente”

engraçado que às vezes basta reclinar a cabeça,
fazer a vez de mago-poeta andando sobre as brasas do caos,
tentar focar os tons mais vivos das cores,
o sol que teima em se mostrar feito prostituta iniciante,
às vezes basta um olhar-para-o-lado-à-procura,
queimar fronhas e lençóis como sinal de fumaça pela janela.

e será que o fato de tocar Rocky Raccoon no rádio –
os cotovelos em sangue escorados no parapeito ausente
– favorece ao desvario repentino em cifras mitológicas?

a falta absoluta de qualquer intuição precisa sobre o movimento
espontâneo do que há ao redor intensifica o cadafalso,
mas a chama prateada do risco insensato é como faísca
nos olhos despreparados para o encantamento,
cansados de ser mostrados para onde não se deve olhar.

engraçado como basta, de repente, um olhar desatento
que titubeia, tomba para o lado e se fixa, vazio de sentido,
além da piedade que também deveria ser preciso sentir
por estarmos cercados pelas sirenes, fechando, fechando.

8.1.09

"blaise cendrars"

passa arrastando-se diante de mim
o homem arrasado sobre muletas.
na cara de dor o sorriso constante
contrasta com sonhos de caverna.
a perna tomada pela gota, a pata
bem mais que um pé fere a visão.
além eunucos equilibram pastas
diante da cruel visão do concreto.
com a pele curtida de sol, assada,
ele não tem uma perna, o alfinete
prende a boca da calça sem perna
e, curiosamente, está bem vestido.
o homem pode ser Blaise Cendrars
voltando aleijado da viagem infeliz.
como Blaise, esse infeliz sem perna
havia viajado muitas vezes e ainda
viajaria outras muitas mais, apenas
que eu, do outro lado da rua, nunca
poderia compreender o que faz um
homem viajar tantas vezes e assim
permanecer além do tempo, como
alguém que inventou o muito longe:
os maníacos cavadores de confins

5.1.09

"primeira segunda-feira do ano de 2009"

as bombas longínquas e as chuvas
parasitárias trazem para bem perto
um presságio de “carta ao pai”,
uma volta a mais nas entranhas
do relógio encoberto pela poeira,
e as cartas aos pais não tocam mais
a alma, e as bombas não causam
qualquer tipo de comoção, são negócios
alienados, distantes da ação humana,
e os presságios, esses pobres diabos,
continuam raros, apenas se aproximam
quando são menos esperados, inúteis,
jamais pousam sobre solo firme,
mas nas areias infinitas desses olhos
que ardem sobre túmulos, os presságios
afundam com as crinas em meio ao vento,
essa visão das bombas caindo e as crinas
fugindo como flâmulas rumo à nova
região de fundo seguro, em meio ao fogo
que nos acordou ontem à noite enquanto
sonhávamos suados, doloridos sob a luz.

3.1.09

“william zanzinger”

hoje eu sou William Zanzinger,
sozinho, ultrapasso os pórticos
de Dante e sigo com passo reto;
matei a menina com violência,
bêbado, tenho as costas quentes,
na rua alguns posam estupefatos
– não sabem muito bem o que é
estar por um triz, assim, a queda
diante dos olhos, o discernimento
há milhas do pensamento inútil
de puxar o porrete para mais perto,
perto demais do ato que me faz
ser hoje antigo algoz dos tempos,
carregador da cruz de todos nós,
assassino inviolável, perturbação
que melhor seria tentar o suicídio,
mas alguns homens não escolhem
perder ou ganhar, eles não sabem
mais receber nada, e eu sou agora
William Zanzinger ultrapassando
os pórticos e ele está hoje morto,
William Zanzinger, e sobre mim
nem ao menos fizeram uma canção.