28.12.10

ÁLVARO DE CAMPOS

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

26.11.10

"poema didático para b.b."

e não será suficiente, mas este
será teu poema, um por todos
aqueles pelos quais você viveu,
um contra a aberração no lugar
do absurdo, poema para poetas,
não preocupado com o público,
contra tudo que use a fraqueza
como trampolim para a ordem.

não será um poema sensorial,
mas um poema que fale: aqui,
está a sensação vital do poema.

não será tampouco um poema
que a partir de flores, primaveras,
transportasse a ideia de conforto
poético, em vez disso, será feito
máquina com pistões azeitados,
será alfinete no balão do tempo
das múmias transportadoras de
sentido, e não haverá um sentido
que esteja além da sua imitação,
a imitação será clara como a cal
que cobriu os corpos assustados
dos acusados de terem nascido.

e que seja belo, e que fique claro
que daqui nós não queremos mais
ser algo para não ser outra coisa.

queremos a medida exata do ser
algo aqui, depois ser um algo ali,
trabalhar, enfim, o que nos refere
como algo sendo antes e depois,
como algo sendo síntese do agora
e principalmente como um abraço
que se dá num desconhecido sujo,
e ser a distância do que se quer
e o que se pode e o que se tem.

e quando pousares sobre mim os
olhos desatentos, não haverá um
serafim ou beladona ou brilhantina,
mas sim um paredão de sensações
onde estará escrito: aqui estou eu,
um poema para o sr. bertolt brecht,
e sabendo o que sou, você saberá
o que te emociona e o que será pó,
sem precisar forjar a esquizofrenia
em algo que se pretenderia sentir.

eu estarei na sua cara, leitor, eu
chorarei também no seu ombro e
criaremos uma relação só nossa,
e seremos mestres e aprendizes
e seremos mágicos e operários
e criaremos mundos e poremos
abaixo os pilares feitos da cinza
dos ossos de cada pálida inocência,
que não perdemos ainda, apenas
não sabemos mais como limpar
a cada cena nosso rosto marcado,
e talvez algum dia nós tenhamos
sido ostras e, como ostras, nós
tínhamos todos os sexos, todas
as formas, mas, diga, que ostras
poderiam ser o que somos agora?

17.11.10

"Los Perros Románticos" (Roberto Bolaño)



En aquel tiempo yo tenía 20 años
y estaba loco.
Había perdido un país
pero había ganado un sueño.
y si tenía ese sueño
lo demás no importaba.
Ni trabajar, ni rezar,
ni estudiar en la madrugada
junto a los perros románticos.
y el sueño vivía en el vacío de mi espíritu.
Una habitación de madera,
en penumbras,
en uno de los pulmones del trópico.
y a veces me volvía dentro de mi
y visitava el sueño: estatua eternizada
en pensamientos líquidos,
un gusano blanco retorciéndose
en el amor.
Un amor desbocado.
Un sueño dentro de otro sueño.
y la pesadilla me decía: crecerás.
Dejarás atrás las imágenes del color y del laberinto
y olvidarás.
Pero en aquel tiempo crecer hubiera sido un crimen.
Estoy aquí, dije, com los perros románticos
y aquí me voy a quedar.


xxx tradução xxx


Os Cães Românticos

Naquele tempo eu tinha 20 anos
e estava louco.
Havia perdido um país
mas havia ganhado um sonho.
e se tinha este sonho
o resto não importava.
Nem trabalhar, nem rezar,
nem estudar na madrugada
junto aos cães românticos.
e o sonho vivia no vazio de meu espírito.
Uma habitação de madeira,
em penumbras,
em um dos pulmões do trópico.
e às vezes me voltava dentro de mim
e visitava o sonho: estátua eternizada
em pensamentos líquidos,
um verme branco retorcendo-se
no amor.
Um amor desbocado.
Um sonho dentro de outro sonho.
e o pesadelo me dizia: crescerás.
Deixarás atrás as imagens da cor e do labirinto
e esquecerás.
Mas naquele tempo crescer havia sido um crime.
Estou aqui, eu disse, com os cães românticos
e aqui vou ficar.

15.11.10

"travesti"

lidar com a coisa rara, a coisa instante,
a coisa injusta, lidar que não se ajusta,
lidar com o não poder mais lidar com.

lidar com a coisa úmida, a coisa fórmica,
lidar com o que se esconde e te observa,
lidar com a coisa infame, a coisa rala,
a coisa rôla, com o infame da coisa em si,
que não é mais em si, nem em sol, é coisa
com todas outras coisas, é coisa só, que só
o câncer mitológico pode nos proporcionar.

12.11.10

"perdendo completamente a discussão"

Mas, você sabe, eu tenho 8 anos desde que tinha 20 anos.

11.11.10

"minhas mãos nodosas"

são mãos
de operário cândido
portinari

28.10.10

"a crina de mariana"

mariana, você pôs tudo a perder.
eu era apenas um sujeito surdo
arrasado pela justiça e assado
pelo tempo, e tinha tremeliques.
não havia muito espaço entre nós
e, ainda por cima, eu era um cara
puro de espírito, com tremeliques.
mariana, você não soube esperar
pela majestade que não se revela
na verdadeira fonte da felicidade.
andávamos de mãos dadas, víamos
as garças na Praia da Urca, e você
adorava o efeito das minhas coxas
no teu segredo raro entre as pernas.
outro dia te vi, mariana, sem a crina
pela qual você ficaria mundialmente
conhecida dentro de mim, sem crina
você me pediu “escreva um poema
para mim, como fazia antigamente”,
e eu disse “mas sobre o que eu posso
falar que já não tenha falado antes?”
“quem falou: aquele que mais ama é
subjugado e tem que sofrer?", você disse.
“não sei, Thomas Mann?”, eu respondi.
“sim, e o que você disse, você lembra?”,
ela disse, e eu: “não lembro, o que foi?”
“pelo menos, você terá amado mais”,
foi isso que eu disse, e ela queria saber
o que eu lembrava e eu me lembrava,
mariana, da sua crina encaracolada,
primordialmente da sua crina isenta,
como já não somos mais, e agora nós
estamos aqui de novo, e você me pede
um poema, lembranças, e são algumas,
mas nada como era a crina de mariana,
e não entristeça, mariana, porque eu disse
que sem a crina você parecia até mesmo
uma dessas apresentadoras de tele-jornal.
eu amaria a apresentadora de tele-jornal,
com sua sexualidade vazia, cabelo curto:
mas não como amei a crina de mariana.

22.10.10

"Por que eu amo a França" (Leonard Cohen)




Ó França, você deu sua língua aos meus filhos, seus amantes e seus cogumelos à minha mulher. Você cantou minhas canções. Você entregou meu tio e minha tia aos Nazistas. Eu conheci o peito de veludo da polícia na Praça da Bastilha. Eu tirei dinheiro dos comunistas. Eu deixei a minha meia-idade na cidade leitosa de Luberon. Eu corri dos cães de guarda numa estrada ao redor de Rousillon. Minha mão treme na terra da França. Eu vim até você com uma asquerosa filosofia de santidade, e você me deu banho e me fez sentar para uma entrevista. Ó França, onde eu fui levado tão a sério, que tive que reconsiderar minha posição. Ó França, qualquer messias chinfrim te agradece por sua própria solidão. Eu quero estar noutro lugar, mas eu estou sempre na França. Seja forte, seja nuclear, minha França. Flerte com todos os lados, e fale, fale, nunca pare de falar sobre como viver sem Deus.


texto retirado e traduzido do livro "Book of Longing" (Penguin Books, 2007)

13.10.10

"Bolaño's Heart Hotel"


sou eu aquele rapaz pulando
uma cerca no interior de uma vila
quente e seca num verão esturricante
enquanto espero o ônibus, e tenho
um bigode de viking e um coração
pálido, desavenças pelas quais fugi
de onde nasci e agora me entranho
no centro da lama de um lugar alheio,
meus trapos, meus sonhos beatniks
me embalam em direção ao mundo,
os cães passam voando com suas línguas
de fora e sua adorável delicadeza
estúpida e assassina, são perros románticos
e vieram para nos matar de amor,
com o peso da fartura de nossos corpos
que correm ao léu, e deixam rastros
e pistas selvagens sobre a sobrevivência
heróica dos pequenos abençoados
exilados de deus – sou eu aquele rapaz,
o estômago pelo avesso, sou aquele
rapaz que não pede, pequeno petulante:
aqueles eram meus longos cabelos.

10.10.10

"bravata"

eu sei, meu amor, que contigo aqui no meu colo,
tuas pernas duras, eu não preciso de mais nada,
e eu sei, meu amor, eu sei, todos nós sabemos,
que você está certa, eu sempre sonhei com um amor
que, como você, pudesse me ver escrevendo,
trabalhando no que mais amo e não trocaria nunca,
e eu sei, mamacita, dizemos sempre, ou tentamos,
coisas doces um ao outro, dessas de seguir vivendo,
mas acontece, meu amor, que eu preciso morrer,
eu preciso morrer horrivelmente, vergonhosamente,
eu preciso morrer como morreram meus heróis,
eu preciso morrer numa estrada para o México,
eu preciso morrer de tifo, de sífilis, de paixões abissínias,
eu preciso morrer sem deixar nada além de um Prêmio Nobel
e comentários inteligentes de homens já sem próstata,
enquanto, nos jornais, eles dirão: “grande escritor, abençoado
com a capacidade de narrar as questões medulares da raça humana,
morre de forma chocante, paródica, um tiro de espingarda na boca”,
e isso não será de todo feio, minha paixão, eu espero
que você me entenda, eu não preciso de cura ou benção,
estou abençoado pelas caronas nos trens de carga,
quero estar tremendo um dia, numa estrada de neve,
quero saber quem é quem nesse dia, por essa estrada,
e, sabendo quem é quem, quero tremer de medo, pensar:
“vergonha por tudo que pensei ter feito”, e sentar,
tocar uma bela punheta no meio do mato e sorrir
com os mesmos velhos dentes dos quais um dia disseram:
“um belo sorriso, rapaz intrigante, a febre da raposa”,
e quero morrer fulminantemente neste dia, no meio da neve,
mas agora você me dá seus pés, você deita seus pés no meu colo
enquanto escuto Highway 61 e isso é tão bom quanto uma bravata,
mas talvez não tanto quanto esta porque, meu amor, eu farei.

28.9.10

"canção para a mulher necessitada"

hoje vou escrever às mulheres de graves olheiras,
necessitadas Cabírias espancadas pelos maridos,
que cambaleiam pelas ruas com vestidos maiores
do que seu próprio tamanho, pois são pequeninas
essas incríveis mulheres capazes de rasgar a roupa
pelos tipos mais sórdidos, os que oferecem amor,
e são todas amaldiçoadas por somente acreditar
na possibilidade do amor, mas vocês, secos e fiéis,
vão cuspir nessas mulheres, vão rir da sua bondade
e jogá-las na rua com seus mil filhos, e esses filhos
um dia crescerão participantes de uma nova raça,
e será violenta e cheia de ternura e será debulhada
essa nova raça que virá meter no cu de vocês todos,
e vingará suas origens com sangue entre os dentes.

"Porto Alegre revisited"

nem sombra de Quintana,
seus passarinhos foram
abatidos em pleno vôo.

The Garret (Ezra Pound)



Come, let us pity those who are better off than we are.
Come, my friend, and remember
that the rich have butlers and no friends,
And we have friends and no butlers.
Come, let us pity the married and the unmarried.

Dawn enters with little feet
like a gilded Pavlova,
And I am near my desire.
Nor has life in it aught better
Than this hour of clear coolness,
the hour of waking together.


*** tradução leo marona ***



O Sótão

Vamos, deixem-nos ter pena dos melhores que nós.
Vamos, meu amigo, e lembre-se
que ricos têm mordomos e não amigos,
E nós, amigos e não mordomos.
Vamos, deixe-nos ter pena de casados e solteiros.

Aurora entra com pezinhos
tal qual Pavlova dourada,
E eu perto do meu desejo.
Não há na vida nada tão lindo
Quanto essa hora de clara frieza,
a hora de acordar contigo.

11.9.10

"o homem de seis faces"

para Camila Moura

tínhamos realmente que nos encontrar
noutro lugar para deslizar outra vez juntos
num falar frenético transbordado de alegria
e ansiedade genuína de seguir de braços dados
ou quase aproveitando cada espaço que a vida
proporciona e preenchendo tudo com ardentes
composições juvenis das coisas todas juvenis
de nós que nos mantemos vivos de repente
no seio da grande cidade e colecionamos fotos
que oferecem prazer e solidão tomando vinhos
vendidos em caixas de leites e somos os novos
mendigos maravilhosos com extravagantes
gorros de frio frente a outros companheiros
de negócios familiares em prol do povo e contra
a ordem escorregamos tenho a sensação pelas ruas
gélidas enquanto as solas dos nossos sapatos
se desgrudam da nossa alma andante e a chuva
faz seu trabalhinho sujo mas nós apenas cantamos
a plenos pulmões frases simples e melódicas como
you´re not alone / you´re beautiful e do outro lado
está o incrível e abominável sujeito de seis faces
com sua camisa de caubói americano e seu cabelo
em chamas e seus óculos mínimos e seu jeito
bonacheirão a quem batizamos e somos os pais:
Leon Penn Bolaño Valente Woddy Allen Presley.

6.9.10

"Cloths of Heaven" (W. B Yeats)



Had I the heavens' embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.

1.9.10

"corinthians centenário"

é pena que não acreditem mais na sujeira
dos rostos dos amantes brutos, sem fala,
que se amontoam à beira do suplício raro,
e não cobram nada, mal sabem pronunciar,
estão loucos, com o rosto sujo, e as velhas
revoluções proletárias falsificaram novos
atos perdidos e sem terra à vista, sem voz,
de tanto gritar a loucura doce e perigosa
dos que nasceram para sofrer de grandeza.

29.8.10

"aula de etnografia"

somos todos índios, somos todos os futuros
animais caçados por animais que serão a caça,
e eu agora sou bem mais um bicho preguiça,
um porquinho da índia meigo, e será difícil
que algum humano queira me ter como caça,
pobre de mim, coala sentinela fúnebre, olho
semi-cerrado, girando súplice pela passagem.

27.8.10

"hemingway"


pouco importa se inventamos reis,
odres de vinho, generais inexistentes.
importa apenas manter os cavalos
nas rédeas dos acontecimentos.
e, vestidos de mulher, estamos
nas frentes sangrentas que nos
arrancam quase a perna, nos dias
de selvageria e presunções mitológicas,
nas orgias emocionais submarinas,
e pouco importa que a carne agora
seja bem menos uma prova de vida
e bem mais uma forjada vitória fácil.
não queremos a verdade, queremos
poucas palavras, rasas e farpadas,
porque no fundo sabemos, sentimos:
temos medo, e o cano na têmpora.

9.8.10

“auschwitz”

sinto orgulho dos meus dedos feios,
que um dia foram bonitos, mas que
coisa mais incrível de sentir orgulho,
sobre o orgulho dos dedos tão feios,
hoje são feios, vividos e feios, vividos
de pôr abaixo as paredes retroativas,
são dedos feios, mas com belos nós –
e finalmente eu me orgulho: colhedor
de cenouras polonês, sabão humano.

"poema para meu amor"

há uma ponte de safena entre nós,
e o problema, baby, é que ela nasce
de um aborto cultivado, a poesia é
uma outra coisa e, talvez, ela possa
também ser má comigo, com o que
chamamos de Nós Dois Juntos, ela
nasce do sangue excessivo que nos
joga na vida sem veias – e, é lógico,
é possível amar ainda, faremos isso,
mas se vive da poesia, vá perguntar
ao safenado – e a poesia, meu bebê,
é uma outra coisa: as bases hesitam,
há uma ponte de safena entre nós.

"tom zé (fatal) sobre gal costa"



sabe uma faca me rasgando,
um mundo se acabando, num sei,
Gal Costa cantora, Gal Costa a mulher,
a mulher terrível, a mulher linda,
a noiva, a morta, a viúva , a maravilha:
é muito difícil falar essas coisas,
eu não sei, a Gal Costa sempre me trata
com choques elétricos, e eu chego pra ver
ela e me arrebento por ela e me desarrumo
por ela, não sei, é sempre surpreendente,
eu nunca sei o que vai acontecer, e cada vez
é como a vida (sic) tivesse se partindo,
se começando, se acabando...
Gal Costa é muito maravilhosa (risos).

3.8.10

"o fino da nata de Karl Kraus"

Karl Kraus (1874 - 1936)


Existem imbecis superficiais e imbecis profundos.


A minha linguagem é como uma prostituta qualquer que eu transformo em virgem.


Os mais falsos argumentos podem mostrar um ódio correcto.


Só é artista aquele que é capaz de transformar a solução num enigma.


O diabo é um otimista se acredita que pode piorar as pessoas.


A diplomacia é uma partida de xadrez em que os povos levam xeque-mate.


O segredo do demagogo é de se fazer passar por tão estúpido quanto a sua plateia, para que esta imagine ser tão esperta quanto ele.


O génio só pode compensar o defeito de provir de uma família não deixando nenhuma.


O amor e a arte não abraçam o que é belo, mas o que justamente com esse abraço se torna belo.

1.8.10

"The Alps" (Richard Brautigan)


One word

waiting...

leads to an
avalanche
of other words

if you are

waiting...

for a woman.





Tokyo
June 2, 1976

29.7.10

"Love Song" (Djuna Barnes, 1916)




I am the woman -- it is I --
Through all my pain I suffer peace,
Through all my peace I suffer pain,
This insufficient agony --
This stress of woe I cannot feel --
These knees that cannot bend to kneel --
A corpse that flames and cannot die --
A candle with the wick torn through --
These are the things from which I grew
Into the woman whom you hate --
She whom you loved before you knew --
Loved, loved so much before you knew.

All I cannot weep -- in tears,
All I cannot pray -- in prayers,
For it is so the wild world moves,
And it is so that Tame Man loves.
It is for this books fall to ruin,
For this great houses mold and fall,
For this the infant gown, the pall,
For this the veil that eyes weep through,
For this the birds go stumbling down
Into the cycled ages where
Their squandered plumage rends the air.
For this each living thing that dies
Shakes loose a soul that will arise
Like ivory against black space --
A quiet thing, but with a face
Wherein a weeping mouth is built --
A little wound where grief is spilt.

I am the woman -- even so --
Through the years I have not swerved,
Through the years I've altered not.
What changes have I yet to know?
Through what gardens must I crawl?
How many roses yet must fall?
How many flowers yet must blow?
How many blossoms yet must rot?

How many thorns must I yet bear
Within the clenched fists of despair?
To be again she whom you loved --
Loved you so much, so much did care --
Loved, loved so much, so much did care!

22.7.10

"não serei"

não serei um senador de modos elegantes ao jantar,
que no jardim enterra os medos, as ilusões antigas,
não serei o vagabundo riquinho que bate pega e mata
o rapaz de classe média que andava de skate no túnel
e que talvez, por mais duro que seja, estivesse mesmo
esperando pela morte bruta com a força dos metais,
mas não serei nem ele, o regurgitador de ferro e aço,
nem bem serei a pálida criatura que cultiva olheiras,
nem o parasita pródigo, mas um pouco serei o parasita,
serei também ondas curtas de paixão, das que inspiram
o passado brasa-mora e a cultura iê-iê-iê, essa gentalha
que não sabe como é duro sobreviver do próprio vício
de não ser e não ser e não ser e no fim não ter forma,
nem garota preciosa, nem ginga de bibelô, rebolar
é para os que desviam dessa frágil grandeza estéril,
desse bater de frente com o ridículo da auto-aceitação.

21.7.10

"all my loving"

será estranho, no entanto, quando, na rua, estiver tocando
“all my loving” no centro da cidade e, junto a mil pessoas,
a banda mambembe - como no fundo somos todos nós os vivos - me fizer chorar,
pois algo queima entre a espinha de Descartes e a jaqueta esfaqueada de Espinosa,
e será estranho, no entanto, pensar nas coisas da ilusão dos decretos livres,
enquanto Espinosa jaz enterrado com seu paralelismo e sua rinha de aranhas,
e Descartes coleciona condecorações em faculdades estéreis,
e minha namoradinha está em casa estudando a coisa do amor entre os povos,
e ela diria “não são bem coisas do amor”, sem muita paciência, e se eu a amo
é pela completa falta de paciência e pelo excesso de amor,
mas ela não sabe, a minha namoradinha, e nem eu bem sei, como ela diria,
que “all my loving” pode ser também suficiente, na rua, diante da banda cigana,
e talvez ela também não acredite - não posso culpá-la - que uma namoradinha
justifique uma lágrima no deserto, e as ruas irregulares onde, todos os dias,
escorremos hemorrágicos, carregados de mitos em pedra, sem paredes.

13.7.10

"texto prodigioso de Camila Moura"

minhas entranhas já não vibram cheias de vontade, já não dilatam em câmaras o conjunto já não provocam mistérios na carne ampla e dissemelhante
minhas entranhas sangram moles feridas, igual quando sozinho
quando deixado sozinho o sol se põe
e não se pode fazer nada,
e já não posso manter meus olhos abertos, eu vejo a luz cair por uma fresta e adormeço
sinto uma vertigem incontrolável por dentro, de um ponto exato
eu vejo do prisma do sangue
cercado por lobos meu útero
se esvai de cansaço, se aproxima a matilha
por muito aguardou a matilha

até o romper de músculos

de machos velhos armados com metais velhos forjados
com vozes de veludo amarram minhas pernas acariciam minhas pernas ao que miram meu rosto contorcido então raspam-me o leito não tiram nunca de dentro suas garras frias até que se aniquile a própria idéia do calor até que a câmara solte-se do coágulo num ruído agudo e volumoso e você já pode ir para casa
eu estou para atravessar a avenida e eu nem posso estar de pé
e nem dói nem nada, ou melhor,
eu não faço força, eu tento estar ao sol,
o útero se deixa rasgar, o útero inteiro ergue-se ao corte, ele persiste em sua forma mesmo sob ataque frontal: não desaparece, não volta ao barro, não participa nem sofre com o flagelo
o que sinto que tenho não passa de um tremor localizado
distribuindo numa ação direta a potência que então concentrava entre todos os homens, em ondas, perdendo intensidade de acordo com o afastamento radial do epicentro mas sem jamais chegar a zero
meu corpo alimenta uma cidade desconhecida
e as avenidas que cruzo de olhos fechados como setas
e entre nós esta rede de carne como uma idéia prematura
como se a cabeça transferisse toda sua importância ao ventre
como se ali, enfim, um olhar se concretizasse, depois do fim...

como estivessem os canais do desejo preenchidos de alarme
eu permaneço calada, eu não me mexo e nem faço força
a máxima intimidade oferece jantares a grandes médicos, e mais
o sangue escorre pelos canais e cai numa cuba refrigerante, e instala-se o frio, e o estéril trauma, e o sangue será jogado na privada, e tudo será banhado com álcool, e a ferida será deixada sozinha e sem nenhum ritual de paz


para ler mais obras-primas da menina, vá em http://www.camilademoura.blogspot.com/

11.7.10

"mahler"




“quando se ousou voar com os pássaros,
só se deve saber mais uma coisa: cair”

(Rainer Maria Rilke)


chegou, enfim, o domador de abismos,
preparador de aquários de uma nova era.

graças a deus, és o inoportuno, o macaco
judeu com meio metro de testa, os olhos
de serpente, a pose chapliniana, pequeno,
o que dava pele aos fantasmas e, bem ali,
de nós até deus existe apenas um passo,
nos tíbios sentimentos pela ansiada paz.

grande ator fazendo um grande homem
que caminha rua abaixo e segue os gritos
proletários pensando: “eles sim são meus
irmãos, porque eles são o futuro”, e nós,
esse futuro, não sabíamos que se começa
abatido a pauladas, e um intruso nunca
deixa definitivamente de sê-lo, e que há
sementes de dúvidas no real significado
da liberdade, parênteses entorno do amor
e da própria morte, mas você, o que sabe
da carne trêmula, se pudesse dizer, diria:

“não temam, meus filhos, é preciso saber
que se bate com a cabeça contra a parede,
mas, saibam, é a parede que terá o buraco”.

8.7.10

“tua carne não apodrecerá, Roberto Piva”

Roberto Piva (1937 - 2010)



poderia algum dia, Roberto Piva, como agora,
ser que víssemos nas tuas roupas neo-realistas,
na tua rica juventude, estuprada por São Paulo,
a quem odeia, São Paulo, mas a ela dá as tripas,
porque apenas em tripas e ódio nos damos todos,
e a criação vem necessariamente do ódio coletivo
de sermos, apesar do estupro-fascínio, dependentes
da beleza e das bandanas nos pescoços-caravaggio
e dos passos de sapatos com solas de madeira
descendo pelas escadas com a tinta paranóica.

quimicamente desejáveis e não é o que todos querem?

não, Piva, deus da sarjeta incandescente dos profetas,
eles querem tuas fotos nos jornais e mais meia dúzia
de poetas ordinários se refestelando sobre tua carne,
aos prantos, desejando a ti uma boa passagem,
e eles – é claro, Piva – ah, mas eles não sabem
das calçadas ensangüentadas, dos tiros noturnos,
e, muito menos ainda, Piva, eles sabem que não é
para ti este mundo, onde se enterram no papel
os poetas eternos: nesse jogo, disso eles sabem,
ficam as moscas e, atemporal, a carne apodrece.

3.7.10

"O sweet spontaneous" (e.e. cummings)

O sweet spontaneous
earth how often have
the
doting

fingers of
purient philosophers pinched
and
poked

thee
, has the naughty thumb
of science prodded
thy

beauty .how
oftn have religions taken
thee upon their scraggy knees
squeezing and

buffeting thee that thou mightest conceive
gods
(but
true

to the incomparable
couch of death thy
rhythmic
lover

thou answerest


them only with


spring)


xxx * xxx


"oh suave espontânea"

oh suave espontânea
terra quantas vezes
os
dedos

idólatras dos
filósofos lúbricos picam
cu
tucam-

te
, têm o polegar pervertido
da ciência espetado
tua

beleza . quantas
vezes religiões não te
põem nos joelhos pontudos
espremendo e

esbofeteando-te que tu tinhas que gerar
deuses
(mas
fiel

ao incomparável
leito de morte teu
rítmico
amante

repondeste-
lhes apenas com

a primavera)


tradução dirceu villa

2.7.10

"roman jakobson"

a vida cotidiana
é apenas um sucedâneo
da síntese do futuro.


(vladimir maiakovski)

agora o câncer é a poesia
da medicina, e não valem
mais os gestos de punho
seco, as mortes políticas,
mata-se finalmente por
vaidade, e como é belo
o amor falso no qual nos
baseamos, e como é bom
transar sem camisinha,
aturar em silêncio a veia
que derrubou os cossacos,
e agora nós só transitamos
entre estranhos talvez com
armas de tiro e que nunca
sabem, tanto quanto nós
não sabemos que ainda
é cedo e pálido crepúsculo,
para esperar o dia frágil
quando não há tiro nu,
conversa-se, droga-se,
e estamos nus no tempo,
e a gosma que deveríamos
apreciar está mais abaixo
e temos medo e por isso
vamos longe, de cabeça,
mas já não há mais tiros
no peito de uma geração
inteira diluída em dúvidas:
estamos perplexos, rindo
do sabe-se lá o quê, a base
fugiu para longe, os peitos
sob a mão não amedrontam
e nem o suicídio é algo raro,
pergunta-se: mas e se não for
maiakovski, por que interditar
a passagem do tempo? - talvez
seja leitura demais, vivemos
o tempo da leitura demasiada,
amplos no aspecto pequeno,
e não sabemos, pobres de nós,
que o tiro já foi dado no tórax
e não nos resta nada mais que
a simples primavera esgotada.

24.6.10

"festa entre artistas"

sempre deixe aberta a porta
do banheiro quando quiser
que alguém por acaso esteja
na porta, ali, do outro lado,
quem sabe até enlouquecido
com a falta completa de amor,
com essa proximidade falsa,
bem ali, do outro lado da porta,
pensando em como seria abri-la
e, apenas para mudar um pouco
os parâmetros, dar de repente
de cara com alguém defecando.

5.6.10

"they liars"

you have to empty
your stomach until
there’s nothing left
but a piece of a rest.

some folks they say:

“when i don’t create,
then i’m not living.”

i think they are liars.

when i don’t create,
then i’m only living.

and living, my folks,
is what fears the most.

30.5.10

"delicato ma non troppo"

não sei se é o vento fresco do início do inverno,
misturado ao calor aconchegante de um domingo
pela manhã, sem ressaca alguma, a não ser aquele
contumaz estremecimento estranho por todo o corpo,
que às vezes me leva a falar sozinho noutra língua
e além de tudo, é claro, muita saudade mas não
exatamente de alguém, saudade de uma sensação,
como se eu fosse um homem das cavernas e sentisse
como um homem das cavernas, a ponto de bater
a cabeça nas rochas, mas agora, talvez, por causa
de um monte de coisas juntas ou talvez apenas seja
porque no rádio, sempre nas manhãs de domingo,
existe um programa com as músicas que lembram
nossos pais e avós e todas as namoradas do mundo
e as coisas incontidas do coração, mas agora não há
estrada imediata, há apenas uma longa curva, mas
pelo menos as crianças gostam de mim e sorriem
com minha bela cara de idiota assustado, menos, é claro,
o filho do vizinho e isso eu nunca entenderei por quê,
mas acho que talvez seja porque ele será muito rico
e já me olha com desconfiança, como quem poderá
um dia roubá-lo e é bom mesmo ele ficar de olho aberto
desde agora, mas a mim me importa apenas acordar
nesse domingo de vento veloz e fresco e com muito sol,
e eu acordo e engulo um cigarro no outro e me dói
a garganta e sei que perderei minha voz assim e gosto
do perigo e fico com medo de perder a voz e apago
o cigarro no meio porque preciso da voz para quando
estiver feliz poder cantar no banho e ter coisas bonitas
e feias para dizer a pessoas conhecidas ou estranhas,
e penso que terei em breve uma irmã que se chamará
Marina e Marina Marona será o nome de uma nova
Anita Garibaldi e eu acho que Dorival Caymmi
ficaria feliz com esse nome e faria uma bela canção
cheia de trocadilhos para ela, mas ali está meu pai
porque o rádio toca a “Primeira canção da estrada”
do Zé Rodrix e eu sei, pai, que você tinha apenas 17 anos
e agora temos talvez menos anos ainda porque a vida
explode por dentro e por fora e já não temos todo
esse controle pretensamente humano e, de fato, nunca
amei a ponto de fumar um maço de cigarros apenas
ouvindo música e lendo e além do mais acho que deve
haver mesmo alguma coisa muito errada comigo
para eu ter virado assim um sujeito que escuta
Peninha e Erasmo Carlos e se emociona muito,
com os pêlos do corpo eriçados e se mantém assim,
dançando sozinho no meio da sala de um teatro
sem espectador e é claro que me sentir assim é algo
inevitável quando decidi ao acordar que se deve
apesar de tudo continuar a viver, mas tudo no fundo
se resume à vontade ancestral de te foder outra vez.

25.5.10

"a barca de niterói"

gosto do teu hálito de sono, do cheiro
inconstante de esperma e travesseiro –
me sinto muito bem na barca de Niterói.

enquanto todos correm para seus lugares,
lambo meus beiços e cheiro meu bigode,
feliz por um momento apesar das botas
dos mortos que bóiam na baía semi-extinta.

são mortos que nunca sentiram teu cheiro,
o cheiro de dentro de ti nos bigodes, pobres,
se afogaram porque sempre falta alguma coisa
a um homem quando ele decide deixar as botas
em pleno mar, mas na verdade, não importam
as botas flutuantes – estou feliz porque você
não me dá pressa quando tudo grita “pressa!”.

então me recordo de quando eu acordava
e ia à janela enorme, e a rua já tão cedo
tão cheia de pressa, e eu agora sem nenhuma.

ver você era a voz que diz “não tenha pressa,
olhe mais para ela, como dorme sem culpa”,
e eu, como bom católico, pecava sem culpa
por te olhar, tua pele oleosa, teu quase-ronco,
tua forma espatifada de ser simplesmente tudo,
e tudo me fazia esquecer janela, pressa, carros,
e pensar apenas num nome para um filho, assim,
despreocupadamente, como quem diz eu te amo.

24.5.10

"coral"

na natureza
as cores mais fortes,
resplandecentes,
indicam os venenos
mais poderosos.

queremos afinal
a beleza do veneno,
ou melhor seria
morrermos nus
na feiúra?

23.5.10

"domingo na tijuca"

arregacei a marcha fúnebre
que toca os corações frágeis
e os levam, com olhos tristes,
aos confins da conseqüência.

e por isso preciso recuperar
o rolar cadenciado do pistão
calmo e firme, e ligar o rádio.

no rádio, a cachaça mecânica,
de Erasmo e Roberto Carlos,
feita tal fosse Chico Buarque,
me faz pensar “que bom frear,
poder ser um pouco tijucano”.

19.5.10

"pseudo-subterrâneo"

Acredito que na raiva somos honestos, e apenas. Acontece que, quando somos honestos – vejam que contraditório – somos em demasia. É o que nos dizem com os olhos: “São em demasia”. Ser em demasia é uma depravação, quase uma apropriação indevida, um luxo adquirido por um assassinato a facadas. Entende-se, portanto, que ser honesto é uma depravação.

Andamos nas ruas à procura de um tombo que nos faça apaixonar por algo: já não cremos na dureza da evolução vertical. Mas no fundo sabemos: os espaços estão acabando, estamos sendo espremidos nos cantos das mesas, e precisamos tomar nossas cervejas escondidos atrás de gigantescos chapéus retóricos. Esse romantismo fora de moda, essa inclinação vexaminosa ao perigo da ternura gratuita, os choros enquanto assobiamos antigas canções que não nos lembram nada, não importa muito de onde trouxemos tal bagagem: estamos cegos e seguimos em direção ao sol amargo da desconfiança.

Um homem deve-se perguntar: o autoconhecimento deve necessariamente representar a morte do amor? Conhecer mata, seguimos suscetíveis aos mais variados melodramas. Estamos vivos, portanto, mas não pertencemos, não fazemos os outros dizerem: “De fato, progridem”, nem sabemos responder às mais simples questões. Ao contrário, sangramos sorrisos e torcemos ainda pelo desregramento de todos os sentidos.

Por que não vieram de uma vez nos alimentar com roupas exageradas e loucos cachecóis? Nos jogaríamos facilmente na degeneração da verdade, através da fantasia, apenas para poder dizer: “É mentira, então posso fazê-lo”. Nosso paradoxo mais emocionante: a depravação nos isola como párias, mas pelo menos promete um pouco de verdade. Nossa única maneira de sentir, o beliscão na pele que machuca e elucida, é sermos contra a verdade. Na negação de tudo, podemos aceitar. A nós – antiga doença – parece fundamentalmente sem sentido afirmar coisas como “agora sim, vejo que tenho”, ou “não é bem isso, mas farei com que seja”, ou ainda “preciso esquecer isso, então pensarei naquilo”. Não temos compartimentos, as guerras internas nos conduzem a um inebriante e mentiroso estado de charme. “Nada me importa”, dizemos sem dificuldade, com a boca trêmula, esperando que algo aconteça, o plágio definitivo que nos permitirá dormir outra vez. Nada acontece, então acendemos um cigarro, e pensamos: “É incrível o domínio que se tem sobre a própria vida”. No fundo, nossa grande aspiração é a de sermos arrebatados por um soco firme nas idéias, o que nos faz beber descontroladamente de uma delicadeza selvagem, felina, como o gato acuado por uma chuva de prata: atávico e bonito crime da vida.

É preciso ser herói ou chafurdar na lama. Queremos os olhos quentes e as nucas expostas em desejos musicais. Não nos obriguem a explicar essa beleza assustada que tende a deixar o corpo nu diante de cruéis expectativas. Criar uma nova espécie antiga é nossa única forma de permanecer. Não viemos apontar os atalhos, estamos vendados com a purpurina barata da lucidez indiferente, vejam com atenção nossos esperançosos caminhantes, como eles pedem, como dão o que nem tem, estão com o peito rasgado, a boca seca, os passos frenéticos de pernas curtas demais, e ali está algo que suplica por provações que justifiquem a nossa tristeza, que não podemos afirmar a não ser com pequenas gracinhas sem pretensão. E, além de tudo, pensem o que quiserem, mas quando agredimos e cuspimos estamos entregando nosso mais precioso bem. O resto é mentira, serve apenas para viver.

6.5.10

“à esposa abissínia de rimbaud”

a retomada da primeira masculinidade,
quando os versos eram sobre os campos
e as mulheres germinavam nos vestidos
a maravilha agressiva do primeiro sexo.

a retomada foi uma pele curtida e crua,
modos europeus, cigarro sempre no bico:
o milagre vinha da tribo islâmica argoba,
e eles andavam, as mãos dadas, o corpo.

a retomada da primeira masculinidade
ainda doída, com os dentes quebrados,
mãos descascadas, vermelhas, enormes,
inflamação nas juntas latentes do amor.

vocês se amavam em silêncio utópico
enquanto hienas rodeavam os corpos
dos inválidos nos esgotos inexistentes.

o calor desértico te fez inchar as juntas,
ademais essas andanças de malabarista
que te levaram enfim: agora és homem.

e como homem deves viajar para longe,
acumular riquezas, reclamar em cartas
para a mãe avarenta, sobre tal doença,
que é doença da distância, o carcinoma
que vai comer o ex-menino pelo joelho.

e ela estará, Zelda Fitzgerald africana,
e compreenderá pouco, e dará muito,
como as reles mulheres das tavernas,
que davam o decote ao servir o chope.

e mesmo podre, enrolado na ambição
mundana, tu exalas ainda a pestilência
tenebrosa dos que recebem, e se vão.

2.5.10

“resposta insuficiente para rimbaud”

porque já não tenho mais como abandonar
o que você sempre desprezou em cifras,
porque não tenho Zanzibar, nem ao menos
uma mísera Pasárgada reconhecível,
mas, principalmente, porque sou fraco,
e acho beleza nessa antiguidade suplicante,
e porque já pesam sobre mim o bastante
meus 28 anos, minhas poucas viagens,
e porque as ondas, banhadas em ácido,
nunca interferiram na delicadeza frustrada,
e os sinos de nenhuma St. Paul’s geométrica
badalaram sobre mim industrialmente.

sinto febre de música, e de movimento,
talvez ainda errarei bastante, assim espero.
não chegarei, obviamente, a ser sábio,
mas algo faz eu me afastar dessas arestas,
algo que vem de longe, talvez da época
em que os coelhos eram humanos bons,
e não se absorviam tantos fluidos cerebrais.

talvez um pouquinho de ti, mas não a fuga,
muito mais o pavor de ser-te em pretexto:
raspar os cabelos, banir o piolho poético,
chantagear, quem sabe, o amigo sodomita,
mas talvez falte ter querido ir mais adiante,
balão às pressas de estourar por culpa física.

mas a ti digo não, porque não é a palavra
de quem ama, de quem publica nossos livros,
de quem não dá adeus, mas sofre por dentro
das margens instransponíveis da linguagem,
seja para lamber, ou para xingar, ou ao léu,
e, afinal de contas, futuristicamente falando,
o que faria eu, agora, com um arranha-céu?

muito bem, meu irmão de mãos vermelhas,
eu direi não a ti, como a falha premonitória,
direi não às místicas caminhadas de roer
costelas até chegar ao estômago estragado.
direi não aos professores fúnebres, veados
sem sucesso e por isso mais bem sucedidos.

direi não até, quem sabe, eu amadureça,
para ser jovem como a estrada perigosa
exige, e que se apresenta nas curvas,
não nas retas que nos levam à Rússia,
parando em Viena, e que nos retornam
de volta à mãe, a única fiel, com falhas
ao coração parnasiano, para que no fim
a senhora – e não direi senhora – venha
velar meu corpo, gangrenado, translúcido.

28.4.10

"rimbaud"


a criança podia apenas acreditar
nos órfãos e nos seres selvagens.
“Napoleão III merece a navalha”,
você gritava nos bares, agarrado
ao professor pederasta que dava
livros impróprios à criança rude:
Rabellais, Villon, Hugo, margem
que te daria o inferno exemplar.
todos no vilarejo te reconheciam
pelo riso fino e as mãos operárias,
o lábio semi-leporino, e as novas
pretensões ruminantes de sentido.
hoje sabemos apenas dos cabelos,
dos teus braços curtos para flores,
mas acima de tudo os teus cabelos
formados pelo ar gelado da longa
partida sem volta que melhor seria
perder de uma vez a perna, rasgar
de cabo a rabo o senso de perigo,
coisa que dói o estômago e incha
os olhos deslumbrados, sensação
aterradora de liberdade, quando,
firmes, as mãos nos bolsos vazios
nos levam facilmente até o cume,
onde viramos adultos e morremos.

"duas musas"



eu vejo vocês passando por baixo das escadas,
pelo concreto interminável da gigante cidade.
eu vejo vocês nas dobras das portas rangentes,
que nunca abri porque o que range não se abre.
eu vejo vocês sorrindo no frio, os dentes roxos,
fumando cigarros de loucas marcas, ou mesmo
cigarros comuns como os que sempre serviram.
e vocês estão maravilhosas, e parecem seguras,
apontando paredes pichadas e, vez em quando,
tomadas de repleto silêncio, pois são as damas,
as que vieram e foram e de alguma forma estão.
eu vejo vocês indo para longe, mas a distância
já não significa mais nada: o coração é caminho.

"maria teresa horta"


ah essas ancas magras, ruas mortas!
e por que ruas, Maria Teresa Horta,
poder-te-ia eu, ao te estender a mão,
levar teu suco raro, tua boca-poema?

"longfellow"


os dedos dos pés com largas cascas de pele morta,
as duas mulheres mortas, por azar e por incêndio,
seguindo o dedo mais rígido, logo acima, um não
muito largo, mas fundo, manancial de pus recente,
todo em estado cor de rosa por rápida cicatrização,
e seguindo o nosso pobre diabo pelas duas pernas,
depara-se com duas crostas duras, em cada joelho,
crostas duras sobre duras crostas, de certo o local
mais avariado, mas já tudo tão antigo, fossilizado,
placas tectônicas das súplicas do amor animalesco,
e subindo mais um pouco, a coxa estirada, por não
suportar a corrida, além de tudo, no meio do tórax,
a porta fechada com linha para um câncer – já este
não voltará mais – e no lombo direito, duas marcas,
dois dentinhos de gato, marcas frescas e inflamadas
como a noite do primeiro tombo, quando ainda não
sabíamos: deve-se bastar-se, eis tudo que nos resta,
e drogar-se um pouco, talvez, e morrer de incêndio.
foi um anjo que nos trouxe magros e adeptos à dor,
à flecha e à música – depois levou as flores embora.

22.4.10

"hacker na área"

aviso aos meus escassos leitores que um hacker invadiu o espaço para comentários no blog, excluindo alguns. apenas para que saibam que isso é algo que eu jamais faria.

atenciosamente,

klaus kinski.

18.4.10

"Paul Verlaine"



Será mesmo que de todas as rugas plantadas não restará uma gota de seiva bruta? Será mesmo essa pergunta ultra-melancólica? Será culpa da lua cor-de-rosa de Nick Drake ou Nick Ray? Será um pouco de exagero nas ironias de Dorothy Parker? Será que o exagero é real e o resto que cabe à minha percepção está deslocado? É preciso sempre procurar um rosto, uma forma esquecida, algo que talvez permaneça – e não seria esta só mais uma visão romântica de alguém pensando tão somente na verdade absoluta com que vão chorar sua morte?

As crises são leves e às vezes tão banais que se confundem com mau-humor. A necessidade de fazer rodar às pressas um mundo cheio de possibilidades truncadas é tão inconcebível quanto os pêlos que crescem sob as bolsas dos meus olhos e no meu pescoço. Os do pescoço eu arranco como nabos. Os outros se adaptaram melhor ao meu corpo, e parecem ter sempre estado ali.

O pensamento repentino sobre os pêlos sobressalentes só pode querer dizer alguma coisa, pensaria um espertinho alemão, mas não eu. A desocupação é tediosa justamente porque ela nos obriga a ver que nos falta ainda muito para admitir que falta alguma coisa. Por que não abri as janelas hoje? Pêlos grossos, que se avermelham nas pontas, a uma distância de quatro centímetros dos olhos...

Ter comprado a antologia de Paul Verlaine não pode ter sido uma atitude totalmente despretensiosa. Isso me deixa irritado e aflito, como se pudesse esbarrar sem querer em alguém na rua e levar uma facada.

Mas na verdade eu pensava em caninos sobressaltados, roía as unhas e lia nomes repetidos nas placas de rua, porque eu via caninos sobressaltados, mas não sabia se a boca sorria ou chorava. Lembrava de alguém dizendo que os achava charmosos assim, para fora. Na minha cabeça havia um ombro de mulher, mas não havia cor – não era preto-e-branco também, mas era certamente uma mulher, porque tinha cheiro, e eu acordei transpirando, com rumores pubianos. Havia a mulher sem cor e a antologia de Verlaine – digamos assim. Em dado momento as duas, obviamente, se misturavam, como nos sonhos. Mas a substância, que ora era mulher sem cor, ora era antologia de Verlaine, estava bem ali, um pouco mais para fora da prateleira – afastada da cena, quase se jogando sobre mim. Verlaine, nunca lerei.

É preciso ter Verlaine por perto, mas é proibido lê-lo, pois ele é o cão lazarento que não sobreviveu à provação de deus. Estou pálido, um gosto esquisito de resina na boca faz tudo ficar muito óbvio. Existe a necessidade repentina de um tapa-olho, um tiro trêmulo no asfalto, um papagaio sobre o ombro, um horizonte de sol infinito, algo que trema de vida, mas sinto vergonha por querer tanto. Uma luz incide suavemente sobre uma cicatriz feminina. Nunca lerei uma linha, Paul, promessa.

Talvez eu esteja perdendo a guerra também. Essa frase me parece equivocada por dois motivos. Pela guerra e por mim. São duas concepções vagas que de algum modo se unem toda vez que existe um período démodé em minha alma, e me tomo de falsidades e delírios. Talvez eu esteja me dissolvendo, para não precisar admitir uma guerra pré-concebida por outros planetas ou seres com muitos olhos, antes ou além de mim. Talvez meu amigo transcendentalista esteja equivocado quanto à massa única da alma. Mas será a minha guerra suficientemente interessante em algum ponto além das derrotas antecipadas pelo irresistível charme do recomeço depois do susto de quem acorda e ainda é noite? Só sei de duas coisas: uma mulher, não lerei jamais.

17.4.10

"delicado"

eu confesso que no fundo até me orgulho
das minhas feridas, das quedas de combate,
dos joelhos infantis rasgados, das marcas
que cuido e lambo devagar como um gato,
e ali o combatente, o sangue claro como
o das ovelhas em fila para o último abate,
porque são muitos abates, serão milhares
de tombos de corpo inteiro com as mãos
erguidas ao sol em tentativas desesperadas,
e confesso que tudo isso me causa orgulho,
estou inclinado às constâncias mitológicas,
mas não se preocupe, permaneço delicado.

11.4.10

“rasguei a testa quando fui ao banheiro”

chego como quem chega da guerra,
a testa aberta em vermelho explícito
demonstra que se apanha e bate-se,
e é mais ou menos o que resta, fora
a intrépida vontade de se fazer fogo,
e como não há fogo, há chuva, sento
no parapeito da ternura em chamas,
e devo então me embrutecer porque
os ferimentos não são meus, e sem
ternura me agarro à falha milimétrica,
seguro junto ao peito o erro plácido,
me agarro, na casa vazia, às gaiolas
sem pássaros, abertas, enferrujadas,
e não tenho mais os prantos externos,
estou sem divisa tanto quanto carente
da divisa preciosa que se fará farelo,
estou salgado por dentro, os punhos
estão cegos à procura de uma parede,
estou sem música, sem luz, estou só,
sem os movimentos teatrais repletos
de mentira e ódio e amor e safenas,
sem a fricção delicada entre corpos
que não sabem porque seguir acima,
mas seguem porque parados nada
subirá mais uma vez como bomba,
e preciso dessa bomba como aquele
que sabe que, mesmo não querendo,
perderá as pernas, portanto, finca
firme o pé supérfluo na direção crua
do tempo duro no qual as granadas
são apertos de mãos sem malícia,
e devo sentar sob a nona sinfonia
com guelras em vez de estômago,
apenas chuvas e destroços, e nós
não estamos mais ali, não há nós
frágeis a ponto de serem perfeitos.

sobrarão olhos diante das fêmeas
que não vamos jamais tocar e que
nos fazem gritar por nossas mães
em sonho, e nos trazem trêmulos
de volta ao útero seco da primeira
virgem nua que fazemos em reza,
fecundada por uma paz reticente.

6.4.10

"o gênio de lawrence"

(born in England: 1885 - died in France: 1930)


She (Lady Chatterley) went downstairs calmly, with her old demure bearing, at dinner-time. He (Sir Clifford, her cripple husband) was still yellow at his gills: in for one of his liver bouts, when he was really very queer. - He was reading a French book.

"Have you ever read Proust?" he asked.

"I've tried - but he bores me."

"He's really very extraordinary."

"Possibly! But he bores me: all that sophistication! He doesn't have feelings, he only has streams of words about feelings. I'm tired of self-important mentalities."

"Would you prefer self-important animalities?"

"Perhaps! But one might possibly get something that wasn't self-important."

"Well, I like Proust's subtlety and his well-bred anarchy."

"It makes you very dead, really."

"There speaks my evangelical little wife."

They were at it again, at it again! But she couldn't help fighting him. He seemed to sit there like a skeleton, sending out a skeleton's cold grisly will againts her. Almost she could feel the skeleton clutching her and pressing her to its cage of ribs. He too was really up in arms: and she was a little afraid of him.

(Lady Chatterley's Lover, D. H. Lawrence, 1928, pg. 195)

3.4.10

"jesus"

você talvez fosse um daqueles hippies sujos
que vendem miçangas e sorriem melhor que nós.
provavelmente você era olhado pela maioria
como olhamos os mendigos que se arrastam pelas ruas
contando os próprios dedos e com os membros íntimos à mostra,
ou o doido a quem chamam doente e apontam às gargalhadas,
o que foge para cima das colinas desérticas, e ah!
como vejo você causando náuseas na normalidade obesa,
olhado com os olhos de nojo com que nós, os sãos, recebemos
os estranhos maltratados pela própria fé.

e agora aquilo que você talvez tenha dito,
apenas amem uns aos outros e também aos inimigos
e aos fracos e necessitados, suportem a humilhação e a dádiva
com o mesmo sorriso sereno no rosto marcado pela volúpia do poder,
agora tudo isso que você disse, sem ter muito a quem dizer,
talvez seja isso tudo contrário ao que vivemos em seu nome.
e rezamos nossas anedotas diante de um mundo sem espanto,
e nos estabelecemos em seu nome deliberadamente enclausurados
em nossas próprias cruzes, e temos tanto de Judas, de Pilatos,
que não posso admitir que somos filhos do mesmo pai.

você foi o galã canastrão de carreira meteórica,
Chaplin sem o talento disfarçado dos nazistas
– e sem nada nós apenas dizemos amem.

1.4.10

"talvez"

talvez quem sabe houvesse restado algo
da contínua fricção imune entre os corpos,
talvez tivesse ao menos limpado os poros,
se em vez de pouco tivéssemos dado nada,
se não tivéssemos cedido nenhum milímetro,
talvez se a dita “descoberta fatal” não fosse
aquela à qual chegamos por restos de sobra
da fricção temente à deificação do espaço,
com medo do mesmo quarto de estátuas,
da próxima página, do mau-hálito matinal
discriminado por beijos de olhos abertos,
talvez se não tivéssemos feito nada certo,
se não tivesse de fato sido a pior descoberta,
a de que sofremos de amor porque o amor
é sempre solitário no que nunca é completo,
talvez se nós tivéssemos feito tudo diferente
do critério utilizado pelo amor dos inocentes,
eu não estaria agora criando esta saudade
de mim sentindo falta do que não tivemos.

31.3.10

"dois poemas de Roberto Bolaño"





Raro oficio Ir perdiendo el pelo
y los dientes Las antiguas maneras de ser educado
Extraña complacência (El poeta no desea ser más
que los otros) Ni riqueza ni fama ni tan solo
poesia Tal vez ésta sea la única forma
de no tener miedo Instalarse en el miedo
como quien vive dentro de la lentitud
Fantasmas que todos poseemos Simplemente
aguardando a alguien o algo sobre las ruinas


*** tradução ***


Raro ofício Ir perdendo o cabelo
e os dentes As antigas maneiras de ser educado
Estranha complacência (O poeta não deseja ser mais
que os outros) Nem riqueza nem fama nem tampouco
poesia Talvez esta seja a única forma
de não ter medo Instalar-se no medo
como quem vive dentro da lentidão
Fantasmas que todos possuímos Simplesmente
aguardando alguém ou algo sobre as ruínas




No enfermarse nunca Perder todas las batallas
Fumar com los ojos entornados y recitar bardos provenzales
en el solitario ir y venir de las fronteras
Esto puede ser la derrota pero también el mar
y las tabernas El signo que equilibra
tu inmadurez premeditada y las alegorías
Ser uno y débil y moverse


*** tradução ***


Não adoecer nunca Perder todas as batalhas
Fumar com os olhos injetados e recitar bardos provençais
no solitário ir e vir das fronteiras
Esto pode ser a derrota mas também o mar
e as tavernas o signo que equilibra
tua imaturidade premeditada e as alegorias
Ser uno e débil e mover-se

"vinte e oito"

agora desces do ônibus e em poucos segundos
estás encharcado, com a mala de roupas na mão,
mas ainda assim acendes um cigarro e permites
que o cigarro enfrente a chuva contigo, pobre
cigarro, com gotas grossas sobre a brasa frágil,
mas apenas andas lentamente porque a chuva
já não assusta mais, é parte fixa de um presente
ao qual te acostumaste – então chegas por fim
a uma casa que não é a tua casa, não tens casa,
mas tens a chave desta casa, giras a chave, não
falas muito mais agora, acendes outro cigarro,
estás finalmente acostumado com o ritmo vazio
que te faz tremer as pernas, portanto te lanças
ainda molhado, sem nenhum frio, sobre a cama
que não é a tua cama, mas só no que não é teu
és agora capaz de fechar os olhos para revirar
sonhos dos quais não te lembrarás mais no dia
seguinte e pensarás: “não lembrar dos sonhos,
deve ser isso o que se chama envelhecer mal”.

27.3.10

"l. cohen"




uma determinada canção medieval,
explicava com timidez a coisa óbvia:
a distância não tem meios de fazer
o amor compreensível e, afinal, nós
gostamos dessas notas tenebrosas,
dos vacilos emotivos, do ar gitano,
do erro que perdemos nos parques
alienados, de toda essa brincadeira
garcia-lorquiana – mas essas notas
tenebrosas são coisa que não se fala,
constância de cadafalso: nossa arte.

21.3.10

"óculos"

maior maldição é ter bons olhos,
sinal perplexo da carne reconhecida,
memória curta entre os vãos do erro,
seriedade amputada de se ver fundo.

com a face retorcida, olhar então a face,
estupro carinhoso de semblante infantil
com que eternizei a envelhecida carcaça:
os olhos tremem, doem de ver tão perto.

a luz impiedosa da realidade sem arestas
cansa-me de honestidade e falsa poesia.
estamos todos à beira de um dilúvio raso
e esperamos isso na boca de um deserto.

somos pedaços afastados de cada um,
e isso não é nem ao menos autêntico.
deixe-me, suplico, não ver a olho nu
a degradação da ternura, emoldurada.

vendo muito bem, esquecemos rápido
o que se move por dentro dos delírios,
relógios infiltrados na pele suplicante,
fundamental, cabal noção de distância.

18.3.10

DE MOMENTO EM MOMENTO (René Char)




Por que este caminho e não outro? Aonde leva para nos atrair desta forma? Que árvores e amigos estão vivos atrás do horizonte dessas pedras, no distante milagre do calor? Viemos até aqui porque onde estávamos não era mais possível. Éramos atormentados a ponto de ser escravos. Em nossos dias, o mundo é hostil aos Transparentes. Mais uma vez, foi preciso partir... E este caminho, semelhante a um longo esqueleto, nos conduziu a um país que só tinha o próprio sopro para escalar o futuro. Como mostrar sem trair as coisas simples desenhadas entre o crepúsculo e o céu? Pela virtude da vida obstinada, no giro do Tempo artista, entre a morte e a beleza.
do livro O pau da roseira
1983

17.3.10

"trincheiras"

A Transfiguração (1520), de Rafael Sanzio (1483-1520).
Óleo sobre painel 405 x 278 cm. Pinacoteca Apostólica do Vaticano.

os alemães sempre me fizeram
chorar feito criança, mas não vou
chorar na tua frente e, na verdade,
implodido, tenho chorado nas horas
mais patéticas, e queria tanto alguém
reconhecível, para sentir novamente
o abraço – espero de ti a tremedeira
que faz rir sob a nuvem de napalm,
quero sentir as convulsões salutares
no ventre enlouquecido de espasmos
e quero, acima de tudo, caber em ti,
como uma peça de encaixe: eu espero
falar contigo de um certo romantismo
alemão, perdido no nazismo das setas
preciosas – menos um dia, mais um dia,
falarei um absurdo, desculpe: eu queria
sentir o cheiro da tua virilha, e que isso
fosse a coisa mais bela, desde Rafael.

15.3.10

"guinada"

é difícil começar o que já terminou.
é preciso agora empacotar as mágoas
e partir para sempre, suar um novo sol.
levar a baixo as paredes com a cabeça
tornou-se um hábito diário, as cortinas
fechadas demonstram que estás só
e, é claro, há os outros, eles também
estão sozinhos e têm a testa marcada
com as pancadas recebidas pelo hábito
de nutrir o medo com socos trêmulos.
não basta, depois, transbordar os olhos
com pureza maldita, com hinos chulos.
é preciso começar o que já terminou,
lamber feridas como filhos sem cabeça
e amar o que destrói como quem ama
a ponta da agulha, o pai sem perdão.

11.3.10

"última febre"

Sangrar pelos poros é coisa normal, a ardência de expelir impurezas é quase dádiva, mas você, coisa impura, que não consigo expelir e carrego como um paralítico até as grutas da vontade, você é um problema de temperatura, você é doença do suor. Pois muito bem: 40 graus, tremeliques, língua de sogra. Nada vergonhoso. Deve-se morrer como se fôssemos gatos que pulam da janela atrás de borboletas.


Vou deixando pedaços de corpo pelo caminho, é bonito uma relação de troca com o mundo, uma relação física de troca com o mundo, é a única maneira de agradecermos a ele, ao mundo, e reconhecermos ao mesmo tempo a sua inaptidão com o tempo. Os pedaços ficam pelo caminho, unhas, pés, pedaços de mão, de braços e, reparo, é assim com todo mundo. O mundo todo é composto por pessoas amputadas. Veja o floricultor sem dedos, veja a freira sem vagina, veja o presidente sem cérebro, é uma coisa maravilhosa.


Deixo líquidos também, no auge da temperatura, mijo sangue, sorrio porque sei que é para poucos que chega a hora irreversível. Pessoas, sentimentos sobre pessoas, são os líquidos vermelhos, viscosos, que deixamos pelo chão. A sensação precisa tomar forma física, então os líquidos absurdos, os felinos selvagens miando dentro do peito tuberculoso, os gases em momentos impróprios, as rugas de amor, a febre, outra vez, para elevar-nos à potência de Lady Godiva, para nos fazer pegar fogo nos céus, e depois arrefecer em frangalhos – é só para isso que viemos, compreendamos isso todos.


A febre é um orgulho, uma luta injusta contra o corpo, uma forma de paixão irrecuperável. E nunca voltamos da febre, vamos até ela uma só vez, e ela permanecerá ali para sempre, agarrada às nossas marcas e vacilos. A máquina do corpo é feita de fibras, e de que são feitas as fibras? Do modo como aceleramos a máquina do corpo. Andarei pelas ruas, meu amor, prometo, com as mão na cabeça e uma arma na nuca. Assim andarei no ritmo que me será imposto, meu amor, assim não direi mais “meu amor”, direi apenas “todos nós”.


O corpo quer um pouco de circo, mas, grande erro, o coração é um palhaço sem calças, que chora ao som de Satie. Ah, mas andarei mesmo sem corpo, é para isso que vim ao mundo. Serei um espectro de ternura na noite chuvosa. Serei os clichês que, somados, trarão o arco-íris ao pote de ouro. Não tenho mais forças, mais pés, mais quadris, andarei feito gás etéreo.


Vou cair, sinto que se aproxima o momento da queda. Vou cair, é lógico, é o que acontece com quem não pensa e não pára de andar. Vou cair e, com licença, meu amor, pensarei e ti quando estender as mãos por ajuda, e ninguém aparecerá para ajudar. Sempre que não houver ninguém, pensarei em ti, meu amor. Sempre que houver alguém, compararei esse alguém a ti. Devíamos falar menos com as palavras, dizer mais coisas com os pés, com o sexo, com a língua por dentro da garganta. Assim diríamos as coisas mais lindas, fortes, as coisas sem maldade ou bondade, enfim, as coisas como elas devem ser.


Agora já estou no chão, os órgãos murchos escorrem suas últimas sonatas pelos poros. Ah, estou quase morto, como é bom! Quase morto, penso ainda, que maravilha, que pertenço ao limite máximo de ternura da vontade! Penso em ti, minha Coney Island Baby, minha Lady Chatterley, minha Maria Callas, minha Edith Piaf, minha imagem desmanchada em tantos espelhos trincados... Ajuda, ajuda, estou como um menino, pedindo ao vento coisas que os seres humanos já não podem compreender. Delírio? Dizem que é conseqüência da febre alta – tive febre a vida inteira. Na minha frente, o circo do mundo, o esgoto dos homens. Eles passam como eras violentas que, quando percebemos, não podemos perceber. Agora talvez seja o fim, mas não vou dizer a vocês, quero tanto quanto vocês que o mundo seja um pouco mau, um pouco bom, mas que não seja falsamente bom. Um pouco de maldade explícita derrubaria outra vez os antigos vendilhões. Ah, um pouco de maldade explícita nos faria seres humanos melhores, não seríamos mais tão mentirosos. Pensar que poderíamos ser salvos pela maldade, eis a grande novidade não computada pelos corpos.


Todos passam por mim, estou sangrando em bicas, vomitando hóstias, com o chapéu na mão, com as mãos arrancadas no chão de chuva forte, o chapéu firme agradecendo a passagem, ainda assim. Todos passam com expressões de pena nos rostos, pensando na próxima sessão de cinema ou no amor falido que os espera em quartos quentes de doença. Erguerei o meu chapéu lá no alto para esses transeuntes, eles terão um pouco de ternura enfim, por se apiedarem do que não pede pena e cai com força, sobre os joelhos dobrados, marcado pela fúria do corpo sem arestas, e eu me orgulharei tanto de mim mesmo neste momento, que não será difícil largar o chapéu e segurar com toda força a rosa púrpura que, do fim dom mundo e das explosões fúnebres da terra cansada, salvará a mim e a todos nós.

5.3.10

"estudo sobre poema debulhado"

estou infectado de ti, as sobras do espírito
escorrem pelo mijo turvo, estou agora
te lendo, tua última mensagem antes de partir.
nunca entendi essa tua mania de escrever
em espanhol, imagino que seja algo que te dá
coragem de dizer, então faça, meu bem,
sempre, tua marca latina em minha pele.
mas não entendo parte do que dizes e isso,
talvez, facilite o amor: não entendermos parte
do que se diz, então amamos – não é assim?
chove à cântaros na minha montanha isolada,
faz um silêncio de pós-guerra e, mesmo as folhas
da mangueira choram encabuladas, assobiam
hinos fúnebres ao amor – vai demorar mesmo
muito para eu me desinfetar de ti, estou pensando
agora nisso, vou acender um cigarro e fingir
que tu virás do quarto onde dorme o samurai
aposentado, e tu virás com teu jeito sonolento
de gueixa tenebrosa, e tu encostarás a cabeça
no meu joelho dilacerado e pedirás mais calma.
não, meu amor, não vou contar a ninguém.
a distância que temos é só nossa: percorrerei
o deserto sozinho – ah, se morrer, que seja logo.
quero morrer completo da morte mais antiga.
sem espadas de dupla lâmina ou cordas preciosas,
desempenharei aquela morte que não se ensina,
aquela que não se cobra, e ninguém me entenderá,
como eu não entendo, muitas vezes teu movimento
hesitante de dois, três corpos num só que se mexe
com cuidado e, além de tudo, teu espanhol.
estou infectado de ti, e não quero ajuda –
está aí a doença mais sublime que jamais
alguém compartilhou, e que é nossa muito mais
do que a distância que nos move adiante em rugas,
garras e saltos circenses, sobre as pústulas eternas.

1.3.10

"manoel de barros"

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição do poeta

27.2.10

"o grande acontecimento fatal"

o Haiti fica dentro do peito,
os mortos nos terremotos
chilenos não se comparam
com o que não vemos aqui
mais por dentro, enquanto
pensamos nas nossas coisas
o mundo grita, pede socorro,
mas estamos fazendo planos
para a família, para o futuro
e o futuro é uma boca aberta
daquelas que não se sabem
desesperadas ou paralíticas,
e de não muito longe ele vem,
o grande acontecimento fatal
está mais perto, nos cercando,
enquanto contamos sucessos
e choramos escondidos, nus.

23.2.10

"orgulho do papai"

o suicídio foi marcado no primeiro dia
a fogo, ferro e, vá lá, algumas rosas,
estas que, nós bem sabíamos, jamais
agüentariam o mau tempo do adeus,
mas mesmo assim nós lambíamos
estas rosas de plástico como filhas,
e no fim chegou o dia, ficamos eu
e a corda e o penhasco e a árvore,
você se foi, fugimos ao combinado
e de ti, desculpe amor, roubei a foto
que guardarei na carteira, e daqui
a vinte anos, quando perguntarem,
responderei: essa aqui é a minha filha.

22.2.10

“fim de partida”

agora, prometo, calarei minhas chaves,
deixarei escorrer, dolorido, todo visco.
me arrancaram os corrimões infalíveis
e a memória antecipa-se aos acordos.

nada mais de gritos de veludo, os tiros
de festim tornaram-se balas de ponta
metálica, como o gosto no fundo do sexo
que não fornece mais ao cúmulo armas
necessárias para perpetuar com cismas
o que cansamos de matar com nomes.

agora você já vai bem longe, sumiram
os precipícios em cuja beira dormíamos
calmos, o vento parado anuncia cortes,
não mais, porém, os cortes renegados
pelo que no fundo doía de dor legítima.

esquinas não receberão mais as ancas
do que borbota como lava, mas já não
queima, porque somos agora carvões
abandonados ao fogo leve da partida,
e quem sabe voltaremos, quem sabe
um dia não acenderemos como brasas
para deixar a carne ainda crua dentro,
por mais que, fora, a pele não responda.

17.2.10

"crime passional"

é preciso ter muito amor,
para enfim matar o amor,
para, não sobrando nada,
termos pelo que morrer.

é preciso não saber nada,
matá-lo como um viciado
atrás do que já não enche
mais o coração desatento.

não se espera a enchente
que arruinará as cidades.
engolimos água e fomos
obrigados a ver os peixes.

uma vez vistos os peixes,
estamos arruinados, não
há nada a fazer, o amor
receberá a faca na nuca.

necessário, infelizmente,
aos com muito amor, ir
na direção do que espera
ainda quente, respirando
com dificuldade horrível

e meter a faca até o fundo
e tirar o sangue, lamber
a faca aos prantos, afinal,
só se mata o que se quer
para sempre vivo, em nós.

7.2.10

"as variações de glenn gould"

sinto que se afasta lentamente
a montanha rachada pelo vacilo,
os lábios untados de saliva ácida,
e talvez não tenha volta, a noite
sua enquanto, no meu sentimento,
quebraram as mãos de Glenn Gould,
e agora eles se vestem de branco,
afinal eles precisam, pobres de nós,
estar de branco para dizer que você
está louco – branco, a cor da paz.

30.1.10

"Hemingway"


É uma pena que eu não possa, com indisfarçável vaidade, dizer que a história que se desenrola a seguir é um autêntico exemplo da escola fantástica, celebrizada por nomes de peso como Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant ou Roberto Bolaños, o famoso Chespirito. De fato, seria muito mais natural e menos cansativo se eu pudesse afirmar tal coisa, ou pelo menos, atuando, conseguisse suavizar as conseqüências trágicas dos acontecimentos seguintes. Mas preciso ser honesto, em primeiro lugar com você, leitor, que ainda não me deixou a escrever como um português, a mim mesmo. É em respeito a esta cortesia que iniciarei, sem mudar nenhum detalhe, mas na tentativa de não me esticar em floreios franceses, este algo extraordinário relato que me deixou assim, escrevendo a esmo sem nem mesmo conseguir sair do lugar.



Antes de tudo, é muito importante dizer que tenho apenas nove dedos nas mãos. É este um importante dado referente à minha personalidade pretensamente humilde, mas que no fundo esconde uma ambição desmesurada, a que me agarro como o parente falido se agarra à herança inesperada. Portanto, com enove dedos, é natural que eu seja um pouco dissimulado. Está aí um presidente da república que não me deixa mentir. Portanto, aqui estamos: nove dedos.



Outro dado fundamental: sou tabagista, mais especificamente maconheiro. Vocês vão entender a importância disso ao longo desta breve narrativa – espero que durem até lá.



Minhas ambições são desmesuradas, meu trabalho é bem modesto. Eis uma forma de alimentar a grandeza, e só tem grandeza quem precisa de pouco, além do que, ao mesmo tempo, é preciso aplacar a vaidade, maior inimiga dos que, como eu, falam muito e, agora me dizem, vêem coisas. Mas estão todos enganados!



Sucede que trabalho numa livraria, isso mesmo, vendo livros às madames e aos homens de muitos músculos, que levam cachorros pequenos para passear. É um trabalho na maioria das vezes agradável, mas muito freqüentemente causa tédio. E o tédio, como se sabe, é a grande bússola do nosso tempo.



Portanto estava eu entediado, anotando palavras sem ordem no papel, quando achei que era hora de largar o trabalho para fumar um baseado, o que explicitava claramente uma inclinação ao vício e à depressão. Saio eu da livraria, vou até o beco onde outros coitados enredam cada um seu próprio desespero. Algumas vezes fiz amizade nesse lugar. Não digo amizade: companhia. Umas pessoas tatuadas que falavam demais e eram muito magras. Sempre dizia a elas que achava incrível que pessoas tatuadas e tão magras pudessem conversar animadamente com um gordinho feito eu, semi-careca.



Ir ao beco havia se tornado um hábito, algo como coçar o topo da cabeça enquanto se lê, ou assassinar platéias nas matinês do cinema. Uma forma de perseguir o tédio e, ao mesmo tempo, enganar a si mesmo. Eu sabia disso desde o princípio, e não parecia menos interessante do que constituir uma família ou receber uma condecoração. Mas eu não imaginava o que aconteceria, quando tudo parecia estar na mais perfeita harmonia, embora às vezes burocrática, devo admitir.
Reparem nisso: agora me chamam de louco, mas eu já tive as minhas preferências intelectuais. Aquilo que atira para todos os lados e não diz exatamente a que veio. É lógico, eu lia Hemingway, muito, o tempo todo. Na verdade, sempre me achei parecido com o Papa. Tinha a certeza de que, com a barba branca, que não tardaria, poderia ser confundido com ele na rua, ou quem sabe até participar de um festival de sósias. Vocês provavelmente querem saber por que falo de Hemingway. Vou dizer num minuto.



Estou aqui nesta clínica toda branca, mas sei muito bem que tudo não passou mágica, talvez satânica. Acontece que, num belo dia, estava eu sozinho no mesmo beco, que eu na época chamava de O Beco da Sanidade, terminando meu servicinho sujo e batendo as calças para voltar ao trabalho. Larguei a bagana e, quando virei a esquina, ali estava uma aparição, era um bebê, uma cabeça larga e as sobrancelhas muito nítidas numa expressão bonachona, era Hemingway ainda bebê e ele passou no seu carrinho de bebê e só faltou um charuto na sua boca para eu pedir um autógrafo, “por favor, Hemingway, sei que você ainda não escreve, quanto mais entende, mas, faça o favor, assine aqui”, e ele estava sendo carregado por um casal contente, magro, sadio, que em nada parecia o pai suicida de Ernest ou sua mãe vadia. Aquele não podia ser, portanto, apenas um filho. Era uma mensagem sutil, um sinal oculto sem precedentes.



Cheguei lívido ao trabalho. Discutimos em grupo qualquer coisa sobre um seqüestro de um pseudo-intelectual, mas eu realmente não prestava atenção. Estava tomado por aquela imagem tão rápida, tão sem explicação, subitamente tão feita para mim. Tive sonhos úmidos mas, quando acordei, calcei os sapatos da mesma forma, assobiei as mesmas músicas durante o banho, mantive as minhas mesmas pequenas expectativas, e estava contente assim, outra vez.



No dia seguinte não pensava mais no assunto. Estava tudo definido assim: se eu não pensar mais no assunto, ele vai se dissipar naturalmente. Mas, no entanto, aconteceu o contrário. Resisti bravamente à correção, espatifei-me de alma lavada numa lama antiga. Mas amava aquela aparição, era algo que, eu sabia, exclusivamente avaliava o meu comportamento, o meu destino.



Nada aconteceu nos próximos três dias, e eu tentei de tudo para que acontecessem coisas. Passava a manhã mastigando pequenos biscoitos de trigo, imaginava, com seriedade, uma estratégia universal para conquistar os Estados Unidos da América. Estratégia inútil, eles já foram conquistados. Sinto que sou bem mais velho que o tempo, isso me assusta. Sinto que olham para mim, chamo de canto um colega. Ele mesmo ri, tem poucos dentes, é um mau sinal.



No dia seguinte, tudo parecia perfeitamente normal. Eu havia me levantado, como de costume havia lixado os calos dos meus pés. Deve haver algo errado com a minha pisada na terra. As solas dos sapatos estão sempre desgastadas, e eu sempre tive a impressão de que isso tinha a ver com um certo apavoramento em se estar no mundo. Eu tinha essa estranha mania de me colocar em situações sofríveis para treinar o que eu chamava de minha “raça de vida”. Então deixava sempre a geladeira totalmente vazia, e talvez também por isso eu trabalhasse numa livraria, para treinar minha humildade, sorrir para gente muitas vezes pior do que eu, para me sentir bem com isso, bem por agüentar sorrindo. Portanto, eu pisava as calçadas como quem pisa em ovos, como quem desvia das minas explosivas de Angola. De todo modo, no dia seguinte, eu estava no trabalho outra vez, batendo meu cartão feito um proletário, dez ou quinze minutos atrasado, fumando meu cigarrinho toda vez que enchia o saco, e não pensava muito bem em nada, até que...



Até que vi outra vez, voltando do antro, e achei enfim que a coisa toda era algo pessoal, reservada a uma doença específica, uma neurose da cabeça, como se diz. Vejam bem: eu não me iludia. Saí do antro de maconha outra vez e, dessa vez, justo quando não pensava mais no assunto, quando assobiava e pensava em ter quem sabe um encontro romântico, então lá estava ele, Hemingway, adolescente, como o garoto com talento que escreve para o jornal da cidade pequena. E, assim como o bebê, ele olhava para mim nos olhos, fixamente. As sobrancelhas quase juntas, a cara quadrada, os cabelos cor de petróleo, o riso debochado dos que farão além do normal.



Não cheguei a correr, mas precisei desviar imediatamente a atenção daqueles olhos, e dei um pique, no que um segurança local chegou a me segurar pelo braço, achando provavelmente que eu havia sido mordido por algum bicho.



- O senhor está passando bem?



Saí correndo, ofeguei, entrei no banheiro, esperava por sabe-se lá o quê, tranquei-me lá. Perguntaram se havia acontecido algo, e foi só aí que as coisas começaram a degringolar de forma fatal. Os lábios brancos, a pele de veludo molhado, não havia como, simplesmente, dizer que não havia nada.



- Não aconteceu nada, uma pressão baixa.



Daí em diante eu era como um cadáver abandonado num matagal, apodrecendo, esperando bicho. Pouco falava com as pessoas, os cabelos começaram a despencar da cabeça, mesmo os banhos foram diminuindo, até que, no fim das contas, eu tomava banho uma vez a cada três dias, em pleno verão. Apenas uma coisa não mudava em nada. Cada dia, voltando do antro, havia uma nova aparição de Ernest Hemingway, alguém com chapéu de pesca, um sujeito com uma boina e um charuto na boca, uma barba branca numa cara larga, coletes de safári, até mesmo um sujeito com uma vara de pesca, saindo sabe-se lá de que buraco, até isso eu vi.



Mas então veio o dia em que eu não vi nada, e aquilo já era o ópio, a cocaína. Quando não vi nada eu era como um viciado em estado de tremelique a quem se nega uma dose. Eu pedi ajuda na rua.



- Por favor, preciso de ajuda, por favor...



- Sim, meu senhor, o que foi?



- Eu não vi... Hoje eu não vi Ernest Hemingway.



- Ernest Hemingway, meu senhor? Você quer dizer o escritor americano?



- Sim! Você sabe... Todos os dias...



- Se eu não me engano, ele se matou há muito tempo, com um tiro na boca.



- Sim, é claro! Aí está! Mesmo assim, todos os dias... Todo santo dia! E hoje não, hoje não vi nada!



- Meu senhor, o senhor está branco, meu senhor, alguém ajude!



Não me perguntem como terminou essa patética cena. Graças a deus eu não lembro de nada. Quando acordei, havia três pessoas à minha volta, e o ambiente cheirava mal. Estávamos na cozinha da livraria. Minha gerente, pela primeira vez, passava a mão delicadamente sobre a minha testa.



- Foi só um desmaio. Você está bem?



No mesmo instante, me senti magnífico. Talvez aquilo fosse tudo o que eu gostaria de ter ouvido a vida inteira: “Foi só um desmaio, você está bem?”. Sim, eu estava ótimo. Mesmo assim, fui liberado mais cedo para casa.



Me disseram que eu poderia ficar uma semana sem ir ao trabalho. Alegaram algo como “estafa mental”, “anemia”, ou algo parecido. Foi uma semana terrível. Eu lia sem atenção alguma, escrevia poemas de amor barroco e sofria de amor por mulheres que via de longe. Eu era como um Proust heterossexual e sem talento.



Estava felicíssimo no dia em que voltei ao trabalho. Receberam-me, de fato, como se eu tivesse perdido uma perna na guerra. Lembro-me que ganhei até mesmo um pão doce, terrível, cheio de frutas cristalizadas, e aquilo me levou a, discretamente, vomitar no banheiro. De todo modo eu não tinha nenhuma alucinação, e aquilo estava bom.



Assim passaram-se dias, como nas novelas ruins. Eu fumava o meu cigarrinho, era extremamente simpático com os idosos, irônico com as senhoras frígidas, mas atraentes, e atendia mal as mulheres muito bonitas, como uma forma de proteção. Não pensava em touradas, vinhos em odres, pesca esportiva em terreno espanhol. Pensava em ter uma vida mais saudável, parar com tudo que me atrasa, ser simpático, prestativo aos amigos. Outra vez tinha cor, dava bom dia às madames com raposas nas costas, cheguei mesmo a passar por situação constrangedora:



- Acho que sua neta está precisando ler isso, em vez das bobagens que todas as meninas lêem, livros sobre vampiros, essas coisas.



E entreguei a ela o quê? Um livro de Ernest Hemingway: Paris é uma festa. Fiquei tão feliz com isso que disse ao colega desavisado:



- A mulher queria levar “Julie e Julia”, e acabou levando Hemingway!



Aquilo mostrava plenamente que a situação não só não estava no fim, como inclusive culminava num mesmo ponto doentio, diriam, eu digo canônico. “É importante vender Hemingway no lugar dessas bobagens”, eu dizia a mim mesmo, sorrindo no espelho, triunfante, mas sabia muito bem que um triunfo pequeno, muito comemorado, antecipa momentos ruins.



Assim estava eu mais uma vez no antro. Fumei como aquele que sabe que está no corredor da morte, e mesmo assim faz a última refeição. Saí atento, mas forjando calma. Andei, levei mais tempo em meu trajeto. Olhei as vitrines das lojas, flertei com as outras empregadas, sem culpa. Eu amarrava os sapatos, vejam bem. Eu estava desatento quando me empurraram, fecharam a rua. Pessoas corriam sorridentes, parecia um grande acontecimento.



- O que houve ali?



- Um assalto a banco, um assalto armado.



Pronto. Eu precisava sair dali. Mas a polícia havia chegado, se pavoneava como de costume, sem resolver jamais a situação. As coisas começavam a me dar medo outra vez, de uma outra forma, e isso era ótimo. Medo de levar um tiro, de correr e tropeçar, ser esmagado pela massa, desmaiar outra vez, não havia nada melhor. Eu não podia olhar aquilo. O sangue me dava desmaios, e um tiro, qualquer nervosismo inesperado me faria vomitar entre estranhos.



Mas pelo menos não havia Hemingway, nem sinal dele, e isso me fez crer que talvez tudo não passasse de uma predisposição momentânea à identificação. Mas o erro foi achar que estaria, apesar de tudo, do cerco, da polícia, das gargalhadas sorridentes de pessoas ensandecidas, que estaria tudo para bem mim... Digo, depois da questão. Eu achava que mesmo com tudo isso era melhor do que ter visões e passar mal por uma idolatria juvenil. Nessa hora eu realmente acreditava que tudo não passava de uma armadilha da moral. Mas foi bem aí, no contrapé da confiança que, me desvencilhando da multidão, eu vi.



Um sujeito passou correndo, vários sujeitos passaram correndo, um milhão. Eu não queria ver nada, mas estava preso e, a essa altura, já pensava em paranóias. Fui tão empurrado de um lado para o outro que, num belo momento, virei a cabeça, como se eu fosse o apóstolo Pedro no momento da terceira negação.



Eu vi rapidamente a cena, aquilo parecia algo que, naquela situação, só eu poderia fazer. Tentei disfarçar os olhares sobre a minha pele branca, sobre a minha tendência branca, sobre, em suma, a brancura do meu ser. Não podia com sangue. Mas a gritaria era inviável.



- Que isso?! Um cara rouba o banco... Então mete o cano na boca. Que loucura! Que horror!



Aquilo, digam o que quiserem, dizia respeito a mim. Mas não entendi direito.



- Um assalto? Cano na boca?



Era perfeito demais, fora do tom, catastrófico. Eu estava de repente ali, olhando de soslaio. Havia realmente um sujeito sentado num banco. Diziam que era um assalto, não parecia. Ele estava exatamente de frente para um grande público, parecia com medo, suava. Estava sentado numa cadeira de balanço entre o ato falho e a incompreensão. Aquilo me fazia sentir mal. Olhei finalmente para a cena do crime, não agüentei mais.



A coisa toda seria uma piada não fosse... toda ela... tão feita para mim!



Não era uma situação propriamente dramática. Havia ali apenas um sujeito que desistia da sua obrigação, preferia morrer a se entregar. A primeira coisa que vi foram os chinelos do homem, e que era um homem magro, com o tornozelo fino, os olhos de gazela. Eu vi primeiro os sapatos, porque ele era um homem ridículo. Identifiquei-me com ele, eu não era nenhum alienado. Não saberia ler em espanhol numa roda de bêbados, não saberia bailar com um touro. E eu estava na frente de um sujeito que achou que soubesse, mas não podia, e confundiu sem querer saber com poder, o que é bem típico de quem tem pais covardes.



O que importa – um à parte às filosofias – é que se dê ou não um tiro na boca. O resto já não é nada, dado um certo momento torna-se algo desimportante.



No fim das contas não teve jeito, o sujeito estourou os miolos, o cano na boca, lagos profundos do Michigam, a solidão da impotência, ele estourou os miolhos com um tiro na cara, e isso foi muito rápido, tanto quanto a abordagem mais enfática da polícia, os gritos de deleite e a aglomeração repentina, todos em cima do sujeito sem cabeça. Mas o meu problema exatamente era que houve um estouro de cabeça, e uma espingarda na mão.



Comecei a suar de maneira assustadora, desfaleci. Tentaram me ajudar, dei bordoadas por todos os lados, saí correndo como um gato recém nascido debaixo de chuva forte. Não pensei em mais nada e, confesso que, desde então, os pensamentos tem sido cristalinos, de modo que desconfio deles. Mas uma coisa é certa: fiz o que me restava fazer.



Corri até a livraria, segui até a gerente, me agarrei no seu colarinho e gritei com fúria:



- Eu achei que nunca mais veria, mas eu vi! E dessa vez eu vi a espingarda!



- Do que você está falando? Não quer um pouco d’água?



Ela tentou me controlar com a mesma iniciativa de antes, a mão na testa, as palavras de compreensão. Eu estava indócil, me lembro que derrubei o bebedor com as mãos, e muita água foi derramada, e muita gente entrou na cozinha, onde fiquei como um louco, tentando me fazer entender, virando os olhos, marcando o meu destino. Mas eles não entendem que não existem tantas coincidências. Eles não entendem o que dizia aquela espingarda, aqueles miolos contorcidos. Eu murmurava coisas e era difícil, realmente, entender o caso sem nenhum desdobramento, sem nenhuma satisfação plausível.



Agora estou aqui, tratado como inválido, e sei que não demorará muito para que ela, A SITUAÇÃO REAL, volte a me atormentar. Mas na hora apenas tentavam me convencer de que eu estava nervoso demais, de que, numa cidade como a nossa, não era para tanto caso e que, em suma, suicídios eram comuns. Mas aí eu derrubei mais coisas e, quando me dei conta, havia pessoas de branco em volta. Nunca me esqueço de quando me levaram. Não fazia mais tanto calor na cidade, as pessoas estavam muito calmas, as coisas estavam paradas. Os enfermeiros que me carregavam eram dóceis e até mesmo sorriam para mim. Eu estava louco, eles queriam dizer, eu estava louco e minha testa levaria, muito provavelmente, uma forte descarga de choque. Pensei nisso quando vi um fio de alta tensão desencapado, a rua cinza, o povo com a fisionomia de um fim de guerra. O fio fazia faísca na calçada e, pendurado no fio, um tênis velho de criança, amarrado pelo cadarço, quando enfim me levaram, e agora estou aqui, e me sinto bem.