31.12.13

"edifício médici"



no apartamento térreo
do edifício presidente médici
as cortinas não se movem
e uma música detestável
emociona os alcoólicos,
que não pretendem mais.

fumo cigarros, ouço lou reed
no apartamento térreo
do edifício presidente médici
onde afoguei os perigosos
olhos de um rigoroso amor.

minhas entranhas não escutam
a detestável música que embala
a solidão irmanada em pus seco
e cobram a ausência química
que lhes impus para poder
eu também tragar deste farelo
das últimas horas perigosas
nos pelos deste ano ímpar.

mas não há vento, a chuva
não chamou atenção à festa
que prepara o banho frio
no apartamento térreo
do edifício presidente médici
onde torço para que alguém
chore e cante de emoção
com essa música detestável
e que lou reed faça a vênia
ao tão famoso presidente
e com um riso desbocado
equilibre a causa química
de minhas tristes entranhas
e obedeça ao sinal de apelo
de minhas algemas intocadas.

“Adeus Português” (Alexandre O'Neill)





Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor 
a luz dos ombros pura e a sombra 
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço 
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila 
quase medita
e avança mugindo pelo túnel 
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático 
o dia-a-dia da miséria 
que sobe aos olhos vem às mãos 
aos sorrisos
ao amor mal soletrado 
à estupidez ao desespero sem boca 
ao medo perfilado 
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido 
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa 
puríssima da madrugada 
mas da miséria de uma noite gerada 
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós 
traz docemente pela mão 
a esta pequena dor à portuguesa 
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual 
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas 
e o cemitério ardente 
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio  
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia 
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento 
digo-te adeus 
e como um adolescente 
tropeço de ternura 
por ti


30.12.13

"vem dezembro"



confundo tâmara com damasco.
quase perdi um dente com ameixa em passa.

minha barba cheira a algo idealizado.
há uma sede de bílis em minhas pedras.

o corpo de enfermagem,
escolho o corpo de enfermagem.

palhaços calvos como os dos filmes de terror
adentram aos risos o quarto cirúrgico.
há o escolher a vida ou o método,
mas as doses aumentam
nos poros da minha curiosidade.

instalações,
todos querem saber das instalações.

amanheço fora de todo concreto.
pastoso o frio no corpo superior.
um incômodo de panos
nas tranças de meu abecedário.

um homem muito bonito
entre os gases da minha adequação.
nublado e as pedras de bílis.
sem frio agora as rampas da vesícula.

é preciso enviar flores.

um atendimento tão humano
não se encontra em qualquer crise.

é tempo de cobrir as partes.

troco sândalo por vândalo em sandalismo.
muletas, cores de um despertar.
você precisa de tênis vermelhos,
me diz a menina de vinte um anos.

o corpo de enfermagem,
escolho o corpo de enfermagem.

autorizam-me finalmente a cobrir as partes.
é um vestido antigo o elo até a cabeça.

são lindos olhos os que o senhor tem.

fazer um colar com as pedras de bílis
parece fora de cogitação.
esta é apenas uma pesquisa
feita na casa de partos.

acima dos olhos os cílios de um paradeiro.
existem filas para a prevenção
de problemas bem maiores.
se um vinho ao menos lembrasse
a preguiça de meus engenhos.

confundo tâmara com damasco.
quase perdi um dente com ameixa em passa.

é preciso render ainda que meia hora mais
a solidão dos pulsos adestrados.

sonho percevejos deglutindo flores.
seria de bom tom enviar
flores ao corpo de enfermagem.

impressiona a todos minha rápida melhora.
mensagens se acumulam no silêncio de dois lados.
comediantes fartamente usufruem
de minha essência para o ato técnico.
o jogo anfíbio permanece em giro
enquanto se briga pelo bilhete premiado.

outra manhã se descalça num abracadabra civil.
cabeceio a inscrição das trinta e duas unhas da estação.

tenho fé em ser forte.

um escândalo de mel se equilibra em meus trapézios.
escolha furtiva essa do bruto livre.

o corpo de enfermagem,
escolho o corpo de enfermagem.

entre onde e quando, um declive bromado
houve uma última vez antes entre duas nevascas.
acalmo o cesto onde guardo meu réptil.
está sombreado o terreno fértil das máscaras.

queimarei todas as naves
no sofrimento de mito em mito.

afastou-se o galo incerto, homem.
mas sofro, além sofro, aquém sofro.
é chegada a hora do desague jurídico.
o menino sobre o qual se põe o índice
do enredo dos enredos do enredo.

fala-se vagamente
sobre um pouco de saliva e terra.
lembro-me vagamente
de algo neste sentido e sofro.

autômato arteriado de círculos viciosos,
vem dezembro com suas trinta e uma peles rotas.

impossível não recordar o magro senhor doce;
farol irregular, o dia induz a dar-te algo.

aqui me tens, paz de uma só linha.

sei dos noivos defuntos desse diamante implacável.
dóceis se aproximam com sua fixada técnica.

é o tempo da desora.

bruto como postiço alcanço
a côncava mulher.
são quatro paredes
nesses anos latitudinais. 

"o corpo não pode"





para Belchior

o corpo não pode encontrar seu lugar dentro do corpo.
é preciso tempo para se apaixonar, é preciso esquecer
a violência de tanto tempo, a solidão e a fúria, a pressa
de correr perigo acabou por assentar os cascos de prata.
é no sul da alma que se encontra o estômago do desafio,
o egoísmo de acumular cifras como rastros dessa trilha.
um bandolim dedilha as cordas do meu coração infantil,
o sol dos quintais aquece o erro fugido às letras cifradas.
vazar o céu da filosofia, romper o sono vínculo provável.
não imaginavam que se pudesse fazer o que diz a beleza
daquelas tardes apoiadas ao violão do rapaz sem nome.
resta agora chorar dentro do carro, resta apenas o amor.
a riqueza encolhe o ritmo da ancestral máquina humana,
um corpo cai de muito alto, jamais atingirá o solo duro.

o corpo não pode encontrar seu lugar dentro do corpo.
caindo do alto, procura tocar-se, procura algo que, útil,
saia do seu caminho, desprenda-se para fora do acerto.
a felicidade, foi dito, é uma arma quente, no alto donde
cai o corpo está surdo todo o perigo, aqui a ferida viva
na parede da memória não conta mais os seus metais.
do alto dessa queda haverá alguém com quem morrer,
longe da família o familiar rebanho corre em muda paz.
cansado de não poder falar sobre essas coisas sem jeito,
o corpo deixou a sessão das cinco e o beijo sentimental,
o batom serve agora para marcar os espelhos dos hotéis
conforme vai-se fazendo a maior música, esquecimento
dos corpos atropelados que não deram o perigoso salto
e ficaram como as letras das velhas canções de outrora,
enjauladas pelo medo na juke box de um boteco imundo.

o corpo não pode encontrar seu lugar dentro do corpo.
o corpo vem de uma terra onde o céu é o próprio chão,
o que chama alma se entortou junto ao bagaço de cana,
garotos esperam por nova aparição em teatros-fantasma,
suam os versos de um tempo apodrecido de anteontem,
ficaram para trás paralelas nos estacionamentos da rima
e os antigos compositores baianos tornaram-se inchados,
protegidos pelo bolor dos festivais da canção onde vaias
são agora velhas senhoras nas salas de cinema das tardes.
tomba o corpo horizontalmente e seu prelúdio infanticida
são agora as cutículas de uma ordem infestada pelo brilho
da tinta acrílica no bigode branco de um homem que vê
e agora fala o grande amor o sinal se abriu para o musgo
e as músicas são caixas de poeira na beleza da pista falsa. 

13.12.13

"sem ter lido hölderlin"


eu quis te dizer mais de mil vezes:
isso é perto demais, é o mais perto
que já cheguei, eu tentei mil vezes.
eu apenas quis te dizer, não disse,
fui chegando mais perto sem dizer.
você dizia o tempo todo, que perto,
que perto estamos e como é bom.
eu tentei com todas as forças dizer:
é demais, é perto demais, eu nunca
cheguei tão perto, veja, é tão longe
o lugar de onde eu tentei te dizer.
ainda assim aproximei muito mais,
ao contato das mãos rompi o luto
do querer dizer mais de mil vezes:
isso é perto demais, e agora está
distante toda uma vida entre nós;
a mãos unidas só cabe se afastar.

"muitos remédios"


contra as forças que ainda me restam
arrasto as juntas de uma antiga expressão.
uma frase foi grifada sobre outra frase
no caderno dos tempos doces vândalos.

e nem com lupa se distinguem as letras,
bolor ditado em abdominais noturnos.

não se afogar sobre a poça da linguagem,
não receber no peito o bico dos pássaros,
cansar somente desse não de um outro
que comanda os dedos e desafia o verbo.

será sem rosto agora a maravilha,
haverá palavras em grave desencontro.
procuro em agendas os anos mortos
e assassino papéis com vultos notáveis
que fazem ciranda na minha garganta.

arrocham os matizes pálidos das tripas,
fogem para longe esse tão perto de ti,
essa poeira lenta das janelas fechadas.

fecharão os anjos outro acordo espacial?
suará em câncer a linguagem das camas?

a dimensão se rasga em véus extintos
e buscas ainda a franja do vulto,
abrolhos cegos de toda ruminação.

11.12.13

"repare como"


era azul quando narinas entupidas,
era azul quando raramente a chuva,
era azul o que alastram os lenços,
era azul intumescidos poros negros,
eram negros quando reles cadáver,
eram negros a dor gorda ao piano,
eram negros rato ranho nos dentes,
eram negros a flor magra do suplício,
eram negros tensão em flor nevada,
nevada a calva do homem-mago,
nevada o teu indiscernível desafio,
nevada verbo que agoniza duetos,
duetos carneiro na abolição do cravo,
duetos sebastião de alcovitada pluma,
duetos a longa cruzada das crianças,
crianças setembro telhados houve,
crianças balanças destruídas e a luz,
crianças horizonte páscoa no asilo,
asilo cornetas de cimento imanadas,
asilo corrupção do pintor fanático,
asilo é tempo de engravidar o luto,
luto semblante prateado de se fora,
luto proliferação dos nossos anciães,
luto as praças cheias da esperança,
esperança língua individuais pedaços,
esperança escorbuto nos templos,
esperança já dissemos um ano atrás,
mas repare como eram mais negros,
eram mais negros uma vez a mais.

10.12.13

"óleo das horas dormidas"


pelas manhãs sinto no estômago a falta de meus dias.
à noite uma caranguejeira me arrasta para o que esqueci.
na madrugada sonho que o ventilador é um caminhão de lixo.
o caminhão de lixo passou e não me livrei daquelas caixas.
uma senhora passa fumando pela janela do edifício térreo.
em sua camisa há dizeres em sânscrito ou coisa que o valha.
a senhora não combina com os dizeres, mas eu não saberia dizer.
passa também um açougueiro com seu cheiro peculiar de história.
um eletricista sem uma perna que dorme num confortável colchão.
dorme num confortável colchão às portas da minha proteção inútil.
dorme como criança e imagino que o mesmo aconteça ao resto.
à velha dos dizeres em sânscrito e ao açougueiro da história.
a precisão destes versos tem a força de um delírio cômodo.
é preciso contorná-los de alguma forma para chegar ao final.
as lâminas não têm fio e o gás tem uma válvula de controle.
não há mais poetas pela região a não ser os que se presenteiam.
são dores de muco e pantufas prateadas de um natal em chamas.
agora estou de saída, pois arranjei um cabo de vassoura e um pai.
o cabo de vassoura para a válvula de gás e o pai até o asilo de loucos.
o lugar é bonito, cheira mal, lotado de pessoas com prisão de ventre.
Anastácio Cantor de Impropérios, Buda Hesse, David Homem-Leão.
os comprimidos noturnos são como as bolas dos pinheiros natalinos.
minha tuia holandesa morrerá agora sem a água dos meus tamancos.
papai-noel tem jaleco branco, orelhas mordidas e rosna docemente.
divido meu quarto com um senhor tatuado viciado em clorofórmio.
suas tatuagens são bonitas e fico pensando por onde teria viajado.
têm estilo oriental e ele está muito acima do peso e tem olhos claros.
Bangkok, Tanzânia, Absínia, Bangladesh, ele dorme e não come.
relata que não come há três dias e pergunta se eu também sou um DQ.
antes que eu responda ele dorme outra vez e eu também estou na cama.
somos todos pessoas que não souberam de alguma forma envelhecer.
pessoas que cantam sozinhas canções erradas de amor, novas e velhas.
estou na cama com meu livro aberto onde sublinho selfishness of quiet.
tenho no pulso uma tatuagem que o gordo ao meu lado não tem igual.
ela poderia ter sido feita em Bangkok, Tunísia, Absínia, deve haver por lá.
foi por causa dela e não de clorofórmio que vim para neste lugar bonito.
prefiro deste modo mesmo que haja tantas outras maneiras de acontecer.
as tardes eu passo dormindo sob centopeias verdes das horas em musgo.
uma mulher de cabelos roxos me trouxe escova de dentes e creme dental.
nada saiu ainda de mim que se misture ao cheiro ruim deste lugar bonito.
há uma área externa onde fazer exercícios, mas que usamos para fumar.
fuma-se muito mais quando se está louco e usam-se meias com chinelos.
aqui sou como os outros e as palavras valem menos, mas há os insetos.
eles me percorrem as feridas e escrevem à minha volta o preço da poesia.
ao fundo escutam-se marteladas de uma nova construção para a loucura.
acima os helicópteros da vida má e, ao redor, velhas canções de amor.
a química me pesa no ventre como um feto, uma saudade da juventude.
mas neste lugar bonito descobri que a juventude é uma invenção de velhos.

9.12.13

"trincheiras"


na pressa dos tiros não vejo quem passa
não há quem passe na pressa dos tiros
alguém me chama para além da pressa
os tiros perpassam os ouvidos da noite
no vazio dos olhos a pressa dos tiros
fora de mim a solidão de alguém ama
a pressa dos tiros engatilham sussurros
no escuro há a chama da pólvora mãe
têm pressa os tiros têm pressa eu tenho
e corro a passagem e vazam os ouvidos
são roxos amigos na pressa dos tiros
são quinas sem mesas nos bares d’além
apenas na pressa estou junto ao gatilho
alinhado à frente da guerra apressada
a guerra tem pressa os tiros eu tenho
gangorra de ossos na violeta do vácuo
demoram as horas na pressa dos tiros
sem vácuo a passagem solução do nó
destino e espírito, dois nomes de um só.

2.12.13

"andantino"


uma longa volta de gritos curtos
até chegarmos enfim à saudade.
depois uma histeria é que comanda
os nervos calmos que se tornam
escravos em busca de um mestre
sobre o qual reinar, rumo ao silêncio.
a marcha trôpega de um saltimbanco
perdura o tempo do eterno tombo.
não há como escapar à longa volta,
estamos mais próximos que nunca,
depois dos gritos somos a garganta.
ligados por uma linha entre torres,
pisamos firmes e damos os nomes
ao gigantesco sono do nosso riso.
uma longa volta de gritos curtos,
saudade é nervo, silêncio é corda.



27.11.13

"virá uma flor"

De algum lugar virá uma flor magra e calma em sua insignificância tranquila e dela se abrirá o sorriso que deixei de perseguir. Essa flor virá depois de uma longa chuva, ela será a chance do deserto. Persigo agora fantasmas de cactos, que se encontram brutalmente imbuídos de grandes causas. Mas a menor causa é a humana, e preciso de uma flor calada que me diga isso, quando despontar no deserto, o último deserto apontado com meu corpo. Esse corpo jovem e com nenhuma certeza, que quer ser bom e é mau porque não sabe. As flores não sabem, quando saem do chão, o que esperam, e mesmo assim ela virá, como um corpo cansado, um sorriso de mil anos, uma volta lenta num parafuso enferrujado, transportando uma beleza destorcida nos olhos queimados pelo sol da humanidade. Espero todos os dias, enquanto olho e não vejo, por essa flor que renascerá em tempos mortos, cheios de ação e gritos desesperados por direitos. Mas o direito é uma invenção do homem. A natureza tem outros planos. A natureza tem o plano da flor e da enchente. Espero na janela, triste e com dores no meu peito jovem, e tão gasto de mim e de tudo. Espero de olhos fechados, que o deserto exploda na flor desguarnecida que nascerá em terreno insólito, calando as bocas e abrindo uma cratera no lugar onde fundei minha crise. Então amarei. Amarei porque saberei ser fraca. Amarei porque serei o antigo cisma. Amarei finalmente sem raiva, sem a síndrome do abandono nos contornos das ações frutíferas. A flor virá como fruto de uma guerra explodida em cores frágeis, num câncer hipnótico que abrirá meus olhos para o maior mistério, este que não compartilhei. Uma simples cor dentro das cinzas da sintaxe, contra o convencimento da palavra justa. E calarei, enfim, adoravelmente, para pela primeira vez poder ouvir com os olhos, escutar com a boca, amar com o ódio e aplaudir o silêncio cortante de minhas mãos apertadas no último enlace da concepção. Mas preciso ainda falar do ódio. Que há em minha paralisia e no meu espanto, que há no meu voto de matrimônio e que há no meu amor pelo que não sei, e que me mata. A flor única dirá que o ódio é um mesmo, que a homem se dispersou para se reencontrar diante de um mesmo precipício. Esse ódio está em mim, está em Zelito, que dorme apaziguado em seu mundo simples e vencido, está em Sérgio, que não dorme sacudindo as pernas e acordando suado de pesadelos que julga bons, que julga éticos e vorazes. Mas é apenas ódio. O ódio que nos uniu a todos, dentro de chances perdidas por um amor ideal. Meu amor ideal não está agora em mim, ou em lugar nenhum. Mas está, tenho certeza, nessa flor sem nome, magra, encurvada, quebradiça, que nascerá quando nada mais puder nascer. Que desmentirá a bondade, a crueldade e os belos feitos. Que julgará calada a incerteza de minhas vagas intenções. Poderia dizer: quero apenas amar o que eu possa compreender. Mas a flor não me trará senão o silêncio clamoroso de minhas inquietações. Irei com as mãos em sangue até ela, beijarei sem boca suas pétalas. Por mim, por Zelito, por Sérgio, por todo o massacre do meu amor desajeitado. O erro dos opostos é um mesmo: ser oposto no que há de comum. A flor resumirá tudo isso, e terá a cor de um recém-nascido, pálida e ofegante como um antigo batimento sofrido do que, humildemente, ficará, enquanto passaremos desarranjados, como símbolo de uma era que não se fez entender. Por enquanto, aqui, apenas o ódio anda de mãos dadas. O amor é solitário, despolarizado, não se movimenta, apenas espera, como eu, por uma chance de florescer. Mas o tempo do amor não é o tempo do mundo. O tempo do mundo sou eu. 

20.10.13

"álcool"


são firmes petelecos nos nervos
de tua quente fidelidade noturna.
palhaço sem calças, esqueces
tua simplicidade monumental,
a gagueira com que vencias
erros humanos sem pecado.

porque todo pecado é o certo.
há um dia em que se percebe
a mudez fratricida de tua lira,
engano roufenho de tua chave.
e abres tudo sem mover o fio
que te liga ao que foi proposto
e desafia tua tesoura barroca,
sem fio no fio de tua espécie.

esquina revelada do absinto
a rua em que, sem as noites,
dormem teus nervos de areia
ao se enrolarem no plástico
de tuas raízes sem tremores.

são firmes nervos, os petelecos
precisam inaugurar outro gesso.
é mau o novo gesso, ele é como
as primeiras ternuras da infância
quando se odeia o que se ama,
olho imenso a que apontastes
na gota infame do naufrágio.

agora, outra vez, as faculdades
dirão faça isso, morra por aqui.
e terás enfim um medo terrível,
um estúpido em tuas entranhas
agarrado aos cílios de tua vida.
mas são areias de outros ruídos
que formam o silêncio de deus.

4.10.13

"valquírias"

para claudia


viverei mil anos na galícia de tuas coxas,
teu pólen serão as ilhas onde descansarei
os navios apedrejados de minha esperança.
nos teus olhos, um enjambement de lírios,
nos teus quadris, minha galáxia herdada.
não falemos, então, nada além dos olhos,
firmarei em teus olhos minha vaga nação.
em sarabandas lunares repaginar carícias,
virar do avesso a ruína do segundo parto.
dentro de ti serei sempre o pastor anfíbio
e a violência explodirá em sutis enxadas,
enxadas e pisadas sobre nuvens velozes
e já não estaremos mais entre os mortos.
pelo instante em que tocarmos as pontas
do nosso milagre comum, afirmaremos
a comunhão das espécies e o sono do fim.

25.9.13

"adágio"


no dia em que eu não estiver mais aqui,
um sol novo se abrirá nos corações pulsantes,
as aves estarão no chão se debatendo, pequenas e grandes,
por um pedaço histórico de pão adormecido.
reconhecer-me-ei, ó antigo, nas pequenas aves
que, sem comer, alegram-se, e poderei assim
dar o pulo fremente na direção do fantasma,
para entrar na ciranda primária do esquecimento.

no dia em que eu não estiver mais aqui,
haverá um sorriso modesto de um jovem sensível,
porque um velho muito velho, de suspensórios,
passará inclinado pelo vento com a bengala para cima,
como se assim falasse algo secreto
no dialeto incompreensível dos velhos e de deus.

no dia em que eu não estiver mais aqui,
não haverá mais cigarros duvidosos fumados nas janelas,
por um dia apenas, os que me amam
sentirão enfim minha presença que dali escapa,
deixando ao menos um abajur sem lâmpada num canto,
e no escape haverá o instante em que tudo que é presença
afirma a adorável encarnação do mistério da terra em nós.
por um instante, nesse dia, por não mais que um instante,
saberão os que sofrem algo a mais
sobre sofrer e perseguir o sofrimento, algo além
dos conselho sobrepostos por lágrimas,
algo além do corpo segundos antes da convulsão.
saberão que a convulsão traz consigo, segundos antes,
a claridade do que em tudo está contido,
e a escuridão ganhará um feixe de luz azul,
diferente dos filmes de ficção científica, meu pai,
aqui registro: amo-te, pai, e tudo o que fazemos neste mundo
tem esse vago propósito de dar conta do que em nós é menos,
menos mundo e mais do que está diante dos nossos olhos,
talvez infelizmente – quem sabe não sabe, sabe apenas que

no dia em que eu não estiver mais aqui,
não serão necessários olhos, nem mesmo os teus, amor,
azuis como nunca o foram em verdade para meus olhos
de cílios longos como é longa a dolorosa incompreensão
da qual agora posso fazer meu riso, e tua mão secará
contra a minha ainda uma última vez, e compartilharemos
o raro frio entre os que se amam sem dar respostas
a perguntas mudas, para tocarmos no que se espalha
ao ponto em que se comunica; um peixe chorará,
um polvo rebentará seus tentáculos, os amigos
farão um freio súbito para que se respire,
uma vez apenas e para nunca mais, a terra preciosa
de que não compreendemos os pontos,
e produzimos vírgulas como grampos em nossa cruz.