29.6.07

"kerouac"

teu erro foi me fazer pular etapas
só para chegar cedo na tua velhice
e sentar tranqüilo – desesperado –
outro bêbado genioso na cadeira de balanço
alisando um gato exultante da própria beleza.

teu erro foi me dar tanta certeza,
tão falha quanto a bravura dos covardes,
de que as coisas poderiam dar certo,
se estivessem de um lado e nós do outro.

teu erro foi talvez o meu aborto,
a geração depois da geração seguinte,
o buraco negro na camada de ozônio,
a carga triste de um movimento abjeto.

teu erro, por fim, foi meu remédio.
porque se não sou o que pude ser,
pelo menos ficou uma certa brisa,
uma esquina que permanece aberta.

ficaram olhos enfumaçados e a ilha.
ficaram cigarros pela metade e foices.
e, por fim, a magia pálida de um grito,
de um abraço, de um soco no estômago,
de um vulto secreto no olho da noite.

25.6.07

"Sonho de Inverno"

Será mesmo que de todas as rugas plantadas não restará uma gota de seiva? Será mesmo essa pergunta ultra-melancólica? Será culpa da lua cor-de-rosa de Nick Drake ou Nick Ray? Será um pouco de exagero nas ironias de Dorothy Parker? Será que o exagero é real e o resto que cabe à minha percepção está deslocado? É preciso sempre procurar um rosto, uma forma esquecida, algo que talvez permaneça – e não seria esta só mais uma visão romântica de alguém pensando tão somente na verdade absoluta com que vão chorar sua morte? – no fundo intocável da consciência.

As crises são leves e às vezes tão banais que se confundem com mau-humor. A necessidade de fazer rodar às pressas um mundo cheio de possibilidades truncadas é tão inconcebível quanto os pêlos que crescem sob as bolsas dos meus olhos e no meu pescoço. Os do pescoço eu arranco como nabos. Os outros se adaptaram melhor ao meu corpo, e parecem ter sempre estado ali.

O pensamento repentino sobre os pêlos sobressalentes só pode querer dizer alguma coisa, pensaria um espertinho alemão, mas não eu. A desocupação é tediosa justamente porque ela nos obriga a ver que nos falta ainda muito para admitir que falta alguma coisa. Por que não abri as janelas hoje? Pêlos grossos, que se avermelham nas pontas, a uma distância de quatro centímetros dos olhos...

Ter comprado a antologia de Paul Verlaine não pode ter sido uma atitude totalmente despretensiosa. Isso me deixa irritado e aflito, como se pudesse esbarrar sem querer em alguém na rua e levar uma facada.

Mas na verdade eu pensava em caninos sobressaltados, roía as unhas e lia nomes repetidos nas placas de rua, porque eu via caninos sobressaltados, mas não sabia se a boca sorria ou chorava. Lembrava de alguém dizendo que os achava charmosos assim, para fora. Na minha cabeça havia um ombro de mulher, mas não havia cor – não era preto-e-branco também, mas era certamente uma mulher, porque tinha cheiro, e eu acordei transpirando. Havia a mulher sem cor e a antologia de Verlaine – digamos assim. Em dado momento as duas, obviamente, se misturavam, como nos sonhos. Mas a substância, que ora era mulher sem cor, ora era antologia de Verlaine, estava bem ali, um pouco mais para fora da prateleira – afastada da cena, quase se jogando sobre mim. Nunca lerei.

É preciso ter Verlaine por perto, mas é proibido lê-lo, pois ele é o nazareno que não sobreviveu à provação de deus. Estou pálido, um gosto de resina esquisito na boca faz tudo ficar muito óbvio. Existe a necessidade repentina de um tapa-olho, um tiro trêmulo, algo que trema de vida, mas sinto vergonha em querer tanto. Uma luz incide suavemente sobre uma cicatriz feminina. Nunca lerei uma linha.

Talvez eu esteja perdendo a guerra também. Essa frase me parece equivocada por dois motivos. Pela guerra e por mim. São duas concepções vagas que de algum modo se unem toda vez que existe um período démodé. Talvez eu esteja me dissolvendo, para não precisar admitir uma guerra pré-concebida por outros planetas ou seres com muitos olhos, antes ou além de mim. Talvez meu amigo transcendentalista esteja equivocado quanto à massa única da alma. Mas será a minha guerra suficientemente interessante em algum ponto além das derrotas antecipadas pelo irresistível charme do recomeço depois do susto de quem acorda e é noite?

22.6.07

"o cheiro do lençol"

foi naquela manhã gelada.
você bateu atrás de colo
e pensando ser impossível,
eu representei um orgasmo.

me lembro que chovia.
havia algo sobre lençóis.
você chegou, depois sentou,
então se cobriu, daí me olhou,
então se descobriu e me disse
que o lençol cheirava mal.

na verdade foi uma coisa banal
a tarde na qual fingi um orgasmo.
não havia nada de sensacional,
mas me parecia impossível falsear.
você reclamou do cheiro do lençol
e talvez você me amasse, ou poderia.

era de fato uma manhã bastante fria.
tudo parecia absolutamente congelado.
estávamos na cama juntos, tão separados.
você disse eu te amo: eu fingi um orgasmo.

"Dúvidas apócrifas de Marianne Moore"

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?

Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?


João Cabral de Melo Neto

21.6.07

"Nara Leão"

um cantinho, Nara Leão...
pros teus dentes de pijama,
pra tua fama de proveta.
Nara triste, me dá tua mão.

tão só na capa do disco,
de gravata borboleta.
Nara linda, Nara feia,
Nara calma, descabelada.

se a vida não for nada, Nara,
que será da tua voz pequenina
quando o barquinho naufragar?

Nara rindo, Nara exausta,

o leão de Nara dormindo
sozinho na beira do mar.

"amor difícil"

o amor consome
a fome de amor
o amor consola
a sola da alma
o amor faria
falta não fosse
o amor da foice.

o amor consome
a fome de amor
o amor me falta
dai-me de volta!
o amor da vida
amor sem poesia
o amor da morte.

"a máquina"

a máquina não admite erros ou acertos.
a máquina não tem defesas naturais.
a máquina bate como a era do jazz.
ela tem dentes de aço, como nós.

a máquina é tão explícita: cada erro é tão claro.
a máquina somos nós mais simples, paralisados.
ela é bruta amiga, agüenta firme no seu posto de máquina.
ninguém pode com a máquina, e cada pequeno erro
é um pouco do erro de nós todos: maquino-falsários.

"Hermes Baby"


Ela segue engasgada, perde o fôlego tropeça, empaca perde o colorido, embota enferruja é invariável, sempre as mesmas frases, sempre os mesmos lances de cabeça, ela é primorosa no que sabe, mas sabe muito pouco, e fala sobre tudo, Abissínia Chipre, fala até sobre as Ilhas Galápagos, e quando se cansa diz que vai morrer, empaca outra vez, eu dou a mão ela solta, aquela tinta fraca sob os olhos, aquela tinta mais fraca que o sentimento, aquela tinta sem vírgula, com letras marcadas, algumas letras apagadas, aquele falatório muitas vezes sem sentido, mas às vezes tão exato – ela diz que sente medo, que tem medo dos travessões da vida, ela diz que apesar da maquinaria antiga, quando nos olhamos assim em silêncio, é mais fácil alcançar a minha doçura, mas que a forma bruta com que eu bato nela, não condiz com a delicadeza antiga que nela dorme: e de madrugada grita.

"a casa de enxofre"

na casa de enxofre,
macacos e lobos
e cabras no cio
unem-se aos corvos
sobre o telhado infecto.

gemidos de luxúria,
tribos do inferno
abrem suas portas
na casa de enxofre:
ainda não é noite.

ouve-se um pêndulo
ao lado do abismo
que os bichos comem
em frente ao jardim
da casa de enxofre.

os cães sentem o vácuo
de um tempo assassino.
e o repetir das horas
reluz no fim do sorriso
a besta de duas costas.

17.6.07

"escuta policial na zona chique da cidade"

voz 1. Maré 23. Rua Dr. Marquês Canário, solicitante alega que menores estão importunando os transeuntes que por ali transitam.

voz 2. Correto, vamos fazer circular, psicologicamente vai tudo circular.

voz 3. Toda noite é isso. É o Corpo de Lingüiça e o Cara de Galo Velho perturbando a ordem aqui no Leblon.

voz 4. Mete a porrada!

voz 3. Cuidado aí que o Cara de Galo Velho costuma portar uma faca.

voz 4. Olha a faca!

em seguida...

voz 2. Maré 23. Aqui na Marcos Canário tem família de rua, família de problema social estão no local. Mas os menor já circularam, copiado? Era o Cara de Galo Velho, Corpo de Lingüiça e o Michael Jackson. Os elementos já circularam.
voz 1: Michael Jackson também, companheiro?
voz 2: Também. Galo Velho foi pro Jardim Botânico e Corpo de Lingüiça foi lá pra Gávea.

16.6.07

"yoga"

um passo
para além das tripas,
das tosses, dos vultos,
dos cactos, do escuro.

um passo
para além das viroses,
do lucro, das posses.
das águas, do muro.

um passo
para além da morte,
do furto, da cova,
de agora, de antes.

um passo
para além do Rio Ganges,
da respiração contraída
do universo.

um passo
para além do que regressa,
e nos afaga fora do corpo
com tiros de recompensa.

um passo
para além do filho morto,
além das casas de meninas
e dos horrores noturnos.

um passo
além de todos os equívocos
e todos os amores públicos
do "eu posso" e do "eu sou".

um passo
tão perto de tudo aquilo
que de tão perto vê tudo,
e nos dá trigo, cores, sons.

longe do verniz miraculoso
das promessas de algodão
e perto da celestial miragem
da gente feita de passagem
por vultos com olhos de deus.

12.6.07

"o quinto dia"

Sobre o que for carregado, ser sobre o que fosse nada, rir e chorar desacordado, como o filho que não nasceu, olhar mais um tempo, negar o sórdido, esperar pelo vento, abraçar o sórdido, já que o vento não veio, pensar em cactos sedentos de areia, pensar em como os cactos são como nós mesmos, metáforas repartidas com uísque nacional, escutar a manhã de Grieg num antigo desenho animado, fazer carinho no próprio carro, uma charrete enguiçada, pensando numa antiga namorada, que desligou o telefone quando quase, sem ser convincente, você disse que a amava, e não somos convincentes, afinal mas precisamos, e duramos uma noite, e rimos para cima para que tudo escorra pelo rosto, ouvimos quem sabe os sons surdos dos banheiros públicos, uma certa ternura pelas meninas da Prado Júnior, sem conhecê-las ou falar de futebol para as meninas bocejarem, ser barbado e não ter idade, pensar em Ney Matogrosso com uma faca na Pizzaria Guanabara atrás do Cazuza, pensar naquela velha letra de música, de que muitos se envergonham, “os meus amigos todos”, “i remember u well”, “u told me again”, tonight i’m Kris Kristofferson, babe, gimme a head like nobody before, e as manhãs de abril em junho, a tua imagem congelada na porta do labirinto ou no ímã da geladeira, sou eu ali desaguando no teu ombro, desaguando feito criança sem mimo, fazendo xixi na cama sem poesia, despetalado no mal-me-quer, sublinhando frases em livros de amor: “o amor será dar de presente um ao outro a própria solidão?”, sou eu então não agüentando e escondendo velhos pactos debaixo do braço, a saudade que sinto quando estamos juntos e eu vejo nos teus olhos os restos do meu sorriso morto, sou eu enfim desaguando, é a estaca dos gestos, o quarto com a morrinha de uma amizade antiga feita há minutos para sempre sós, sou eu envergonhado sem ser músico te falando sobre a dificuldade de se fazer uma canção, uma cidade bonita finalmente, assim, sem música, no silêncio compassado de uma lembrança impressionista, uma vergonha bonita afinal, porque a cidade que sempre é feia de repente ficou bonita, de bochechas vermelhas, num risco de céu o avião que passa dizendo que os homens e mulheres vírgula, sou eu envergonhado pedindo perdão a todos os poetas que estavam ali quando não virei a cabeça, e antes de desligar ela disse sem me olhar nos olhos, porque afinal isso seria banal e óbvio, mas ela disse, ela disse e parecia uma frase já dita em algum lugar ainda pulsante, uma frase repetida de tantas despedidas sem lenço, de tantos abraços pela metade, de tantos socos na parede, coceiras incontroláveis, tremedeiras lúcidas, sim ela disse, ela disse eu vou embora, mas antes ela disse, ela disse eu não te amo nem você a mim, e ela disse isso sem olhar, porque olhar corrompe, ela disse você sabe falar, você fala sem parar, você fala amor amor amor amor, você chama o que te mata, você chegou atrasado, babe, você não sabe fumar cigarro kerouacamente, dias dos namorados e eu aqui pensando num antigo tema de Paganini, pensando no que me fez chorar estranhas lágrimas cor de sépia, pensando nela dizendo: “você precisa desesperadamente de amor mas não ama ninguém”, mas há rosas vermelhas sobre a mesa, há um livro que nunca foi lido, aberto na página exata sobre a cama desfeita, há ainda o que serve para inventarmos presságios de aproximação com as pausas marcantes no fim do abraço que hesita, do beijo sonoro plágio de Sergio Sampaio dizendo: não ligue que a morte é certa, não chore que a morte é certa.

11.6.07

"noturno dissonante"

a mesa ainda posta,
velhos hinos distantes,
formigas trabalhadeiras...

a antologia de Manuel Bandeira,
a réplica barata de um vaso chinês.

e na cortiça, fotos irreais:
namoradas desconhecidas em 3 por 4.
alguém familiar vestindo boina
e polainas amarelas – alguém materno
de calcinha e sutiã, sorrindo presságios
ao lado a morte com mau-hálito, antevista.

fotos mortas vivas fotos
de quem ainda não nasceu.

principalmente uma cortiça, o silêncio de deus,
gatos no cio, silêncio de nós, molas rangendo,
a sombra implacável de Manuel Bandeira,
a mesa ainda posta, a mesa vazia, o peito...
formigas trabalhadeiras - nenhum vento -
e essa constante sensação de desaparecimento.

6.6.07

"mais um cartão-postal"


você estava lá: poeta cânone.
assustado, todo em bronze,
ainda sem compreender.

pessoas tiravam retratos,
faziam fila para lhe ver.
pessoas brigavam entre si
- sim, elas gritavam -
faziam uma barulheira incrível.
acredite, poeta: estavam felizes.

elas que não tem uma estátua à beira-mar.
elas que não conhecem o amor da recusa.
elas que não sentem as dores do mundo.
estavam felizes, poeta, acredite.

e você como sempre tão carrancudo,
ou como você mesmo diria: sorumbático.
você com a eternidade debaixo do braço,
continuava triste e tranqüilo em bronze
ainda assustado, sem compreender.

no meio do caminho sem nenhuma pedra
a multidão acavalada punha os olhos.
uma criança gorda olhou para mim:
"quem é esse velho careca?"
e a mãe de bate-pronto disse assim:
"não sei, mas deve ser poeta".

o mais importante era a pressa.
o vento firme cortava as faces,
e você ainda quente, cansado,
com sua estimada testa vasta,
feito de bronze gasto, anônimo,
enquanto as hordas iam e vinham
para tirar retratos, ler seu nome.

mais um cartão-postal da cidade,
cidade essa que, você bem sabe,
pertence bem mais aos pombos.

1.6.07

"momento para John Fante"

agora assim, deitado na cama,
deixado como um feto morto
de um mito muito distante,
sugado todo pelo sexo falho,
largado como larva fúnebre,
eu pensava em John Fante.

quantas amantes, John Fante,
te largaram como um feto
de um mito talvez semelhante
ao que surge de mim ereto
e que me olha de esgueira
com olhos infames?

como um que talvez estivesse
agora assim, deitado na cama,
mesmo que chovesse canivete,
por mais que eu não suportasse,
observo a noite flácida e penso
nas ruas fáceis da tua Los Angeles.