27.3.22

"sempre que penso na grécia"

 

para kiddo

 

a poesia começa com a barbárie

na comunidade do sonho juvenil

– com humildade revolucionária

e nenhum argumento filosófico.

 

incêndio na ala das crianças órfãs!

tudo remonta tempos imemoriais,

a não ser pela fala pobre do poeta

– quinto na fila rumo ao olimpo –

que mesmo pobre criou os deuses.

 

demonstrações infantis de maldade!

exuberância original do corpo rijo,

a poesia começa com ossos frágeis,

da história, ao calcanhar de aquiles.

 

não penso, por isso existo: heroico.

sou eu o milagre ao qual me agarro,

o mesmo milagre que construímos.

 

sem moral alguma, apenas avanço

com gargalhadas e dispêndio de fé

: criação do que jamais deformarei.

 

repetição dessa história eterna ideal

às margens do meu desejo raquítico.

 

idade dos deuses, do poema heroico,

idade dos homens, de volta à caverna.

deuses outra vez, fé no que não se vê,

providência divina: força de acúmulo

da humanidade em desespero de fim.

 

devoção, sexo, enterro: eterna trilogia

– canibal cartesiano após a dissecção.

23.3.22

"pomar de morangos"

 

joelhos são grandes traidores,

foram feitos para durarem,

pelo menos entre humanos,

não mais de quarenta anos.

 

minha mãe morreu bem cedo,

de câncer no cólon do intestino,

acho que era esse o nome dele,

mas prometi a mim mesmo que

jamais tiraria a prova do nome.

 

quando fiz trinta e seis anos,

idade em que se foi minha mãe,

minha médica, que sabe bem

como minha mãe morreu,

olhou para mim e me disse:

você está na idade do câncer.

 

não achei muito delicado,

nem tampouco auspicioso,

mas achei muito engraçado

que exista idade para tudo.

 

então examinei, como indicado,

o cólon do meu intestino grosso,

enquanto pensava num intestino

que estivesse bastante injuriado,

reclamando de tudo à sua volta,

sendo grosseiro com as pessoas;

na hora aquilo me deixou calmo.

 

mas mesmo que eu estivesse

na idade ideal para o câncer,

o cólon do intestino grosso –

ah, minha mãe, ai de mim! –

era um pomar de morangos.

 

foi o que disse a doutora,

enquanto eu saía de maca

achando tudo engraçado

porque estava sob efeito

da anestesia e aquilo era

o que sonhei a vida toda

como o pico do prazer e

também uma boa notícia

e todas as vezes que corri

atrás disso me drogando,

não cheguei perto dessa

vontade de levar comigo

meu pomar de morangos

guardado no meu coração.


mas sobre meus joelhos,

naquela época tão antiga,

eu jamais havia pensado.

 

2.3.22

"jack london meu gatilho"

 

tenho agora quarenta anos,

meu pai que tem sessenta e sete

diz que usaremos máscaras

antivirais pelo resto da vida,

entre milhões de variantes mortais

que terão nomes cada vez mais feios.

 

ele diz que minha irmã que tem onze

será uma pessoa que muito pouco

lembrará a pessoa que fui e quase nada

lembrará a pessoa que meu pai foi.

eu mesmo lembro muito meu pai,

mas não tenho ideia de quem sou.

 

homens graves e feios com gravatas

que parecem enforcar seus pescoços

decidem se a vida no mundo vale a pena

mesmo que seja possível fazer com que

ela desapareça num piscar de olhos.

 

tenho agora quarenta anos,

a idade de jack london morto

depois de pegar onda no havaí,

depois de unir-se aos zapatistas

e aos socialistas e aos esquimós

e aos cães que puxam trenós,

enquanto estou aqui parado

e os homens enforcados

pelas gravatas do destino dizem

coisas que não entendo, decidem

se a vida no mundo vale a pena,

aquela vida em que não creio,

ou se pode explodir num piscar

de olhos e desaparecer, assim

como a casa de jack pegou fogo,

e com ela o sonho de jack london

evaporou com a força dos seus rins,

enquanto a malária voltava e talvez

quem visse dissesse: é um homem

condenado de sessenta e sete anos.

 

mas era jack london com quarenta,

e nada do que fiz até aqui se compara

sequer com uma noite de sono de jack

– imaginemos uma noite de febra alta

– até isso iria além das minhas ações.

 

não encontrei a alma humana

nos olhos de um cão siberiano,

mesmo assim, por contraposição,

é lindo um poema em que se possa

ter jack london como parceiro,

pronto para morrer um jovem sábio,

enquanto aqui o velho já está morto,

o jovem adormece dentro do sonho

de jack london pelo mar da vida,

e tudo o que eu mais quero é poder

aos quarenta não me afogar na poça.