29.12.07

"espera da emoção"

para Manuel Bandeira, com atraso.

te espero nos intervalos
entre abismos e arcanjos.
não existes e eu te espero
– Rapunzel sem trança.

com a sombra na mão
– inclinação taciturna –
te espero na distância
entre gametas e viúvas.

com este sorriso metálico
– orquídea feita em pólvora –
te espero desejoso e confuso,
miríade no espelho, te espero
como o faminto satisfeito,
sem braços, o colhedor de rosas.
te espero como ferida eterna,
te espero como quem morre.

27.12.07

"R." (Murilo Mendes)

Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão.
És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos
[voltaicos.

Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos
Onde atualmente só se ouvem
Cânticos de guerra e pregações do inferno.
Vens, toda fria do dilúvio,
Semear a discórdia nas choupanas e nos palácios.
Vens para a minha maldição, para me indicar o abismo
Onde ficarei só e triste, sem pianos.

26.12.07

"Toada de ternura" (Thiago de Mello)

Para Leonardo, um menino meu amigo

Meu companheiro menino,
perante o azul do teu dia,
trago sagradas primícias
de um reino que vai se erguer
de claridão e alegria.

É um reino que estava perto,
de repente ficou longe,
não faz mal, vamos andando,
porque lá é nosso lugar.

Vamos remando, Leonardo,
porque é preciso chegar.
Teu remo ferindo a noite,
vai construindo a manhã.
Na proa do teu navio,
chegaremos pelo mar.

Talvez cheguemos por terra,
na poeira do caminhão,
um doce rastro varando
as fomes da escuridão.
Não faz mal se vais dormindo,
porque teu sono é canção.

Vamos andando, Leonado.
Tu vais de estrela na mão,
tu vais levando o pendão,
tu vais plantando ternuras
na madrugada do chão.

Meu companheiro menino,
neste reino serás homem,
um homem como o teu pai.
Mas leva contigo a infância,
como uma rosa de flama
ardendo no coração:
porque é da infãncia, Leonardo,
que 0 mundo tem precisão.

Santiago do Chile,
novembo de 1964.

"Apollinaire por Henry Miller"

"A guerra prosseguia e homens estavam sendo massacrados, um milhão, dois milhões, cinco milhões, dez milhões, vinte milhões, finalmente cem milhões, depois um bilhão, todos, homens, mulheres e crianças, até o último. ‘Não!’, gritavam eles. ‘Não! Eles não passarão!’ E no entanto todos passaram; todos tiveram passe livre, quer gritassem sim ou não. No meio desta triunfante demonstração de osmose espiritualmente destruidora eu me sentei com os pés plantados sobre a grande mesa tentando me comunicar com Zeus, o pai das atlantes, e com sua progênie perdida, ignorante de que Apollinaire devia morrer um dia antes do armistício em um hospital militar, ignorante de que em sua ‘nova estrutura’ ele havia traçado estas linhas indeléveis:

Sede clemente quando nos comparardes
Com aqueles que foram a perfeição da ordem.
Nós que em toda parte procuramos aventura,
Nós não somos vossos inimigos.
Nós queremos dar-vos vastos e estranhos domínios
Onde florescente mistério espera por aquele que for colhê-lo.


Ignorante de que neste mesmo poema ele havia também escrito:

Tende compaixão de nós que estamos sempre lutando nas fronteiras.

Do infinito e do futuro
Compaixão por nossos erros, compaixão por nossos pecados
.”
* trecho de "Trópico de Capricórnio", 1939, de Henry Miller, na tradução de Aydano Arruda.

23.12.07

"mulheres"

se por acaso um dia eu tivesse
a chance de escolher entre todas
as mulheres que talvez eu tenha
amado e elas também quem sabe,
como sempre de forma desconexa,
ainda assim, o amor, se acaso tivesse,
a chance, eu não escolheria nenhuma,
entre todas, preferiria ficar sozinho.

obviamente elas não são más pessoas.
algum erro cósmico encurtou as nossas
façanhas – apenas isso e o sol ausente.

e obviamente eu detesto ficar sozinho.
mas nada pior que ser só, acompanhado.
e, afinal, o que amo ou amei nelas todas
é o sinal de que, por pior que tudo fosse
(ou seja) é sempre tempo de prosseguir.

elas me ensinaram que se deve prosseguir,
eu, por pura carência, resolvi que ficarei.
porque as amei sozinho, quando as amei.
a inocência do erro: isso eu devo respeitar.

21.12.07

"Fagulha" (Ana Cristina Cesar)

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

19.12.07

“25 anos” (poema para ser escrito aos 70 anos)

eu passava
leite de aveia
nos bagos
para que tudo
estivesse muito
limpo caso algo
de inesperado
acontecesse.

e raramente
algo inesperado
me acontecia.
mas quando
por algum acaso
acontecia algo
os bagos estavam
sempre sujos.

"Percepção" (Ezra Pound)

"Os artistas são as antenas da raça."
Você se interessa pela obra de homens cujas percepções gerais estão abaixo do nível comum?
Eu temo que mesmo aqui a resposta não seja um redondo "Não".
Há uma pergunta muito mais delicada:
Você se interessaria pela obra de um homem que é cego a 80% do espectro? A 30% do espectro?
Aqui a resposta, curiosamente, é: sim SE... se suas percepções são hipernormais em qualquer parte do espectro ele pode ser de grande utilidade como escritor - embora talvez não de grande "peso". Eis onde entra o chamado gênio pá-virada. O conceito de gênio como próximo da loucura foi cuidadosamente fomentado pelo complexo de inferioridade do público.
Um problema mais grave requer a analogia biológica: os artistas são as antenas; um animal que negligencia os avisos de suas percepções necessita de enormes poderes de resistência para sobreviver.
Os nossos mais delicados sentidos estão protegidos, o olho por um alvéolo ósseo, etc.
Uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio. Depois de um certo tempo ela cessa de agir e apenas sobrevive.
Não há, provavelmente, nenhuma utilidade em dizer isso a pessoas que não podem vê-lo por si mesmas.
Os artistas e os poetas indubitavelmente ficam excitados e "superexcitados" pelas coisas muito antes do público em geral.
Antes de decidir se um homem é um louco ou um bom artista seria justo perguntar não somente se "ele está indevidamente excitado", mas se "ele está vendo algo que nós não vemos".
Acaso o seu esranho comportamento não será motivado por ele ter sentido a aproximação de um terremoto ou farejado o fogo de uma floresta que nós ainda não sentimos ou cheiramos?
Barômetros e anemômetros não podem servir de motores.
*texto extraído do livro "ABC da Literatura" (Ed. Cultrix; tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes)

14.12.07

“mais uma tarde entre a vida e a morte”

era início de verão,
toda hora parecia meio-dia.
eu estava desempregado,
sem namorada, sem saco,
sem dinheiro obviamente.

meus amigos haviam viajado,
eles foram para muito longe,
e mesmo os que estão perto,
acenam de cima dos navios.

mesmo assim era de manhã,
uma dessas manhãs de verão,
e o tempo estava quente demais,
mas eu andava escutando Lou Reed,
chutando pequenas pedras,
assobiando para as garças,
enquanto nos cantos mais escuros
pessoas pediam esmolas,
pessoas sem pernas, sem olhos,
pessoas falavam sozinhas no calor,
sem amor, sem afeto, largadas,
mas eu sabia que era preciso
continuar andando e, se possível,
ainda tentar mostrar um mínimo
de alegria por não ser ainda
minha vez.

Lou Reed falava sobre piranhas e travestis
que rodavam pela Western com Hollywood,
onde, um dia, certo poeta bagaceiro viveu.
Lou Reed falava também sobre garotos ricos
que virariam padres, sobre cartas de tarô e
muitas mulheres que falavam demais.
de alguma forma ele me ajudava a seguir.

a mim restava continuar andando,
entregar dois filmes na locadora,
pagar por eles já que eu não havia
morrido ainda.

um era Laurence Olivier: Hamlet.
o outro era um filme médio, com um final terrível,
do Bob Rafelson, com Bruce Dern e Jack Nicholson.

a felicidade custava algumas músicas
piratas e 16 pratas, em notas de papel.

entreguei os filmes, a menina da locadora
era magra e tinha bafo, mas foi simpática
e, afinal, é bom que nem todo mundo
tenha que ser perfeito e precise
de uma causa.

saio da locadora dentro de uma redoma
que anda sempre que eu também ando.
entro num bar e peço uma cerveja.

o dinheiro está no fim, portanto, foda-se.
mortos passam andando com pressa e,
de algum jeito estranho, isso é bom:
apenas sentar no meio-fio do inferno
e simplesmente sorrir.

ao meu lado há uma senhora de cabelo duro,
cerca de cinqüenta anos e um longo passado,
provavelmente de abortos e bêbados injustos.

ela usa um vestido colorido,
moda na solidão dos tempos.
a paisagem parecia derreter,
tarde demais, terça-feira nula.

a mulher ao meu lado joga
seu dinheiro fora em caça-níqueis
e cocas-colas de vidro e promessas
no que talvez um dia tenha sido
alguém que está perdida
mas de certa forma mantém
um pouco de ternura – e não sabe.

aquela mulher apodrecida,
aquela alma esburacada,
aquelas apostas jamais ganhas,
aquele despejo de ternura,
mais Lou Reed e uma cerveja,
e ainda por cima Henry Miller
– suas ondas assassinas na mochila –
adeus Laurence Olivier, adeus Hamlet!
– chega de tantos conflitos e crânios.

aquela mulher que fuma sem parar
– eu sei, alguns de nós sabemos –
o quanto ela chora e choramos todos
e alguns não choram, mas sangram dentro,
e não temos empregos, foram-se os amigos,
dentro dos bolsos uma notificação de despejo
e uma carta de alguma fêmea: “te amo, adeus”.

pessoas assim, como era aquela mulher,
a quem os mortos olham como perdidas,
tem às vezes a missão de salvar meu dia.

eu não a conheço.
provavelmente para ela
eu seria apenas mais um
bêbado vil e injusto.

mesmo assim a amo
e preciso dela tanto
quanto deste poema
que não é nada, mas
é meu e de todos nós,
como o dia seguinte.

“ensina-me Buk”

deu agorinha no jornal da madrugada na tevê:
para termos um dia aprendido a nos comunicar
precisamos primeiro ter aprendido a esquecer.

quando eu digo: “eu acho que”
ela diz: “você só fala de você”.
quando eu digo: “então você...”
ela diz: “quem você pensa que é
para falar assim sobre mim?”

minha agonia é metafísica,
meus nervos são de condão.
dói na carne quando se pisa,
o diabo diz que sim, ela não.

"sexo"

acho que um homem
de verdade assusta
uma mulher.

eu pelo menos me sinto
assustado cada vez que
vejo uma mulher
passar.

7.12.07

"garotas calmas e limpas em vestidos de algodão" (Charles Bukowski)

tudo o que eu sempre conheci sempre foram putas, ex-prostitutas,
loucas. vejo homens com mulheres calmas e
gentis - vejo-os nos supermercados,
caminhando juntos na rua,
eu os vejo em seus apartamentos: pessoas em
paz, vivendo juntas. sei que essa paz
é apenas parcial, mas
existe paz, muitas horas e dias de paz.

tudo o que eu sempre conheci foram boleteiras, alcoólatras,
putas, ex-prostitutas, loucas.

quando uma vai
outra vem
pior do que sua antecessora.

vejo tantos homens com garotas calmas e limpas em
vestidos de algodão
garotas com rostos que não são de predadoras ou de
feras.

"nunca traga uma puta junto com você", eu digo para meus
poucos amigos, "eu me apaixonarei por ela."

"você não consegue suportar uma boa mulher, Bukowski".

preciso de uma boa mulher. preciso de uma boa mulher
mais do que da máquina de escrever, mais do que do
meu automóvel, mais do que de
Mozart; preciso tanto de uma boa mulher que posso
senti-la no ar, posso senti-la
na ponta dos dedos, posso ver calçadas construídas
para seus pés caminharem,
posso ver travesseiros para sua cabeça,
posso sentir a expectativa da minha risada,
posso vê-la acariciar um gato,
posso vê-la dormir,
posso ver seus chinelos no chão.

eu sei que ela existe
mas em que parte deste planeta ela está
enquanto as putas continuam me encontrando?

4.12.07

“quatro doses de conhaque”

gosto de lamber impurezas
no meio de dobras quebradiças
e certamente alguma alma antiga,
algum espírito recém decapitado,
fala por mim nessas noites ou tardes
escuras de vento semelhante a vozes
no timbre das quais em vão procuro
o sal do tesão, a boca falsa do amor.

“poema curto de emoção fugidia”

e o que será, na rua fria,
do filho que eu não tive,
pairando nalgum ventre?

o que, me diga, da fadiga
da qual nós, disfarçados,
morremos às pressas
todo dia, toda tarde,
à noite, diariamente,
sem nem mais saber
que dias nos farão
outra vez presas intactas?

"gênero"

poesia é fêmea,
poema é macho.

poesia é amplo,
poema, limitado.

poesia causa azia,
poema, problema.

poesia é algo morto
que enfim permanece
no que erradamente
julgamos como sendo
vida no seu dado
tempo.

poema é a distração
da rima na conservação
do erro, da faca sem fio
na alma, acerto objetivo
daquilo que já não
interessa.

1.12.07

“Augusto dos Anjos”

queria ter nascido Augusto dos Anjos
para compreender a sífilis parnasiana
que se antepõe e rói os nossos ossos.
queria ter nascido anjo para compreender
os vermes na essência da idéia positiva.
talvez fosse preciso essa maldição,
esse querer talvez um dia ter sido,
para que eu pudesse pensar em Augusto
– tão augusto, pobre Augusto! –
como ramificação do sumo de uma raça
na crucificação irrevogável do que passa –
e ainda somos todos a mesma quimera.

28.11.07

"maldito orquidário"

nas entrelinhas do pavor canônico
existe o afeto louco, desgovernado,
e essa alma tão sem nada, sifilítica.

difícil manobra ser espelho público,
para realizar em si ambições alheias
– ambições irreconhecíveis, latentes.

e logo abaixo das casas de mulheres,
logo abaixo da performance, da unha,
vejo sujo nosso jardim de orquídeas.

beleza plena que envergonha e mata,
vejo tinta nos cabelos, caras lavadas,
beleza vaga à qual nós damos nome.

difícil conceber a miopia dos sentidos
sem assumir em nós esse rastro podre,
beijo letal de uma boca roxa, carnívora.

26.11.07

"Os criminosos"

Aquilo que nos impele. Somos as palavras difíceis no fim de frases vagas. Somos aquilo que deu errado em nós. É preciso disso para se continuar vivendo. Saber ser o que se é, mesmo sabendo que aquilo que se é não passa do que somos e não deveríamos ter sido. Pobres os que são o que sempre quiseram ser. Estão mortos, os mortos sorriem constantemente, os mortos contam trajetórias. Porque morte é alívio. Morte é, por assim dizer, o início da vida contemplativa a que tanto aspiram hipócritas e gênios, um o tipo mais avançado do outro. Mas viver sangra. O sangue são pedaços de carne lambidos pela alma. Por isso o sangue é amor, sacrifício e, finalmente, despedida. Sobre o que deu certo nós apenas falamos. E fazemos em silêncio o desesperado jogo de tecer pedras com os próprios dedos.

Por exemplo, eu certamente sei que não deveria continuar a escrever este texto. Primeiro sei que o motivo pelo qual comecei a escrevê-lo já não é mais o meu motivo. É o de outra pessoa, outro qualquer coisa, através de mim. Não a noção rimbaudiana de “outro”, mercador de escravos e dinheiro ilícito, purificador de almas por não ser bom nem mau, por não precisar. Estou falando de um outro tipo de matemática. Aquela matemática que acontece enquanto pensamos que sabemos exatamente o que dizer. Como há dois minutos quando comecei aqui. Aquilo que reelege um presidente inapto, o que faz um filho nascer acéfalo apesar do imenso amor entre os copuladores. Aquilo que bebem os que promovem os acordos de paz. O que cala fundo o messias diante do próprio discurso, um pouco do que escorre pela boca do fraudador sobre a indiferença da beleza original.

De fato algo tão complicado que é quase um crime continuar com isso. Muitos sabem exatamente o que dizer. Deveriam morrer fuzilados ou ser de uma vez canonizados para virarem praça pública. Mas eles não sabem disso. Nós sabemos, nós os incompletos. Nós que vivemos querendo dizer algo e sabemos que não seria possível continuar. Nós que emprestamos livros com a desesperada função de marcar território. Nós os do eterno holocausto, os das canelas rachadas que carregam tonéis até a boca com o excremento dos que recebem medalhas – seus caixões feitos de madeira nobre. Nós que falamos por entre dentes coisas que não ouviriam nem mesmo se gritássemos. E nós não ouviríamos. Nós os ridículos falsificadores de suspiros, baseados na constante variável entre o mais absurdo mecanicismo maquiavélico e o absoluto respeito pelo temperamento explosivo das difíceis palavras no fim das frases impelidas.

Preciso terminar de uma vez sem tocar em nada. Não há mais tempo para aliterações. É preciso dizer a quem quiser ouvir que não temos outra vez a menor idéia, que tudo é um ciclo que se repete num eterno passado. É preciso fazer isso para conservar o tutano dos desejos mais secretos. Esses criminalizados. Os duvidosos que seguem reto. Os entrevados que jamais gritam. Os que esperam lhes abrirem as portas com sorrisos e sem perguntas. Os passíveis de caramujo. Os que se mantém puros em todas as extensões de suas vidas. Os encatarrados de nariz seco, mãos imundas e unhas sujas, quebradiças. Os que seguem apanhando e nunca reclamam de nada. Estão tristes, mas nunca derrotados. Eles são o que hoje as hienas chamam petróleo. Os aniquilados sem direito voltarão milhões de vezes e o rei estará preso em madeira de lei, ainda apodrecendo. Voltarão os de quem não se pode esperar nada que não seja esperar qualquer coisa e como isso é bom.

Mas na verdade não é bom e preciso parar imediatamente. Não deveria nem mesmo ter começado. O que nos impele não escolhe sentido, por isso não adianta se lamentar. Melhor não fazer, melhor adotar uma religião, um bom plano de saúde, um amor caridoso que nos encante pelo seu cálido charme vazio de sentido. Estamos no meio das multidões, dos pântanos concretos de ferro e carne e barulho, estamos nas canecas cheias e nos corações enregelados. Estamos sozinhos e não sabemos para onde ir. Nós os crentes na beleza, os idiotas inveterados, os que apenas balbuciam na imensidão de verdades desconhecidas. Fazemos a volta e nos calamos. Olhamos ao redor, fraquejamos, pensamos em preces, andamos mais rápido. Muitos pararam, perguntaram: “Para onde?”. Todos morreram. É preciso disso tudo porque não deveríamos continuar, dar o passo no escuro. Pular no imprevisível que, obviamente, também já foi santificado pelos corajosos com mil olhos. Mas alguém, às vezes, precisa cometer o crime.

25.11.07

"Nada e Tudo"

Olhou para ele e disse: “gosto de você porque você é tudo e nada ao mesmo tempo”. Ele não entendeu. Mas gostou. Anotou num papel. Depois se amaram violentamente por debaixo das cobertas, como em qualquer casa de família, depois da meia-noite, quando as crianças já estão dormindo, com as orelhas grudadas atrás da porta.

“Você é liberal, faz o meu tipo. Tenho nojo de certos homens. Contigo é só excitação”. Ele não entendeu, mas dessa vez pelo menos fingiu que entendeu. Beijaram-se torrencialmente e depois fizeram as pazes por uma briga da qual nenhum dos dois se lembrava mais, por mais que os dois chorassem copiosamente, até que ela se lembrou: “Foi quando você me confundiu com outra na calçada do edifício”.

“Gosto de extremos. Beijaria você na boca agora, mas o que me interessam são os teus demônios internos”. Ele não entendeu novamente, mas dessa vez se aborreceu. “Não tenho demônios nem anjos internos”, disse a ela. “Sou apenas isso que você está vendo e, em breve, nem isso”.

Ela mudou de assunto, era melhor:

“Sonhei que estava pulando pela janela. Duas vezes na mesma noite. Na segunda vez eu conseguia voar. Na primeira foi lona”. Ele esperou um pouco e não disseram nada. Depois ela disse outra vez: “Sonhar com a própria morte é sinal de sorte”. Ele finalmente entendeu, logo depois de ver pela janela um tênis amarrado pelo cadarço num fio de alta tensão. Despediram-se debaixo de uma chuva fina, as mãos dadas, o céu vermelho do final de um verão.
Ela voltou correndo para casa, fugindo dos respingos e da libido aprisionada. Ele atravessou a rua e morreu atropelado por um táxi. O taxista não parou para prestar ajuda e chorou dali a cinco minutos, com a cabeça encostada no volante, parado num terreno baldio. Ninguém sabe se todos eles tornariam a se encontrar no céu.

24.11.07

“soneto da velha coisa inevitável”

o tempo nunca espera,
ele nunca nos esperou.
e a nós dois foi entregue
um interstício furta-cor.

essa é só uma cartinha
a quem o tempo levou
junto aos restos da rua,
à profusão do silêncio.

é estranho esse engasgo,
essas formas desapegadas,
que se enrugam só quando

falamos demais em amor,
doemos demais por amor,
e amamos só o que se foi.

20.11.07

"tirem as crianças da sala"

a vida é mesmo um precipício.
há que se aprender a não voltar,
há que se pular de peito aberto
e não deixar carta de instrução.

mas, por favor, olhar para cima.
nunca olhar para baixo, a menos
que se vá desistir de dar o pulo.

a vida, como precipício, é claro,
não é segura.
é susto, logo de início, impulso,
frio na barriga.

no meio a vida é dúvida, tristeza,
lembrança curta
daquilo que não mais se lembra e
que facilmente ia.

no fim a vida é o medo, tropeço,
arrependimento,
e paz, pela obrigatoriedade nula
de só se ter paz.

sempre a precisão inútil das asas,
a força irreparável contra o muro,
os olhos abertos na direção irreal.

a vida é mesmo um precipício
– e tão longa, tão sem retorno!
que assim que um pula na vida
é quando ele sabe que é morto.

17.11.07

"a fuga"

onde foste parar,
amor sem palavra?
será frio o lugar?
é quente? úmido?

passado ou futuro,
o tempo que foste?
tempo, sem tempo?

onde foste parar,
que já não escutas
minha aflição de ti?

onde paraste enfim,
para me deixar aqui
com velhos clichês?

onde paraste, amor,
para desmembrar meu
peito em tão pequenas
partes estas que juntas
são irreconhecíveis?

diz para que alturas,
amor sem palavra,
levaste minha fome?

é possível sorrir, rimar,
enquanto tua mão suada
enfrenta o frio sozinha?

onde foste que já não venta?
onde foste que a rua é crua?
onde foste que não há anos?
onde fui? por que paramos?

16.11.07

"São Paulo não está"

São Paulo não está
nas discussões acaloradas
sobre o que não é São Paulo.

São Paulo nunca estaria
nas cabeças esmagadas sobre os meio-fios,
nos postes apagados, nós sozinhos à procura,
na fumaça que respiramos em silêncio e seguimos,
no som que faz pensar em deus e vem do Chá,
nas catacumbas submersas, nos assustados que apenas estão,
em Mario de Andrade atrás de amor na Consolação,
no casal que não conversa há anos e sorri igual,
nas mulatas Di Cavalcanti, aquele punheteiro genial,
nos dedos grossos de Candido não tão cândido Portinari.

São Paulo não está
nos risíveis senhores mijados e alegres,
na perda da virgindade do gênio baiano,
nos arranha-céus iguais a Tóquio ou Hong Kong,
não está nos seus japoneses vindos de Quixeramobim.

São Paulo não está
entre uma esquina escura e a história forjada,
nos olhares caipiras para seus corredores vazios e largos,
suas pessoas que nem formigas,
seus colaboradores imaginários,
sua caretice e suas matinês de putaria,
sua rotina supervalorizada e poética,
suas mensagens engarrafadas lançadas ao mar,
seu mar uma fila interminável de concreto em movimento.
muito menos São Paulo estará
nos seus mimetismos e sua marginália.

São Paulo não está
nas ruas de São Paulo,
na solidão indiscutível de São Paulo,
muito menos São Paulo está
nas pessoas que habitam São Paulo,
no beijo único sem abraço,
no cumprimento entre estranhos.

São Paulo não tem tamanho,
não é grande nem pequena,
não está em mim nem em você.
por isso é possível amar São Paulo.
porque São Paulo não está em nós.

13.11.07

"vigília"

já tive a ti demais,
tradição.

já me puseste no berço,
já menti pelo teu pecado,
já vivi pela tua satisfação.

já tive a ti demais,
solidão.

teu cerne, meu William Blake,
teu vácuo já não me compensa.
tuas cinzas nas minhas unhas.

já tive a tudo demais,
e nunca.

"O poeta"

Esta história, eu sei, já deveria ter sido contada. Mas me sinto ainda extremamente preso a ela, de modo que seria sempre parcial, em meu favor, ao lembrá-la. Depois percebi que guardá-la por isso seria burrice. Serei parcial agora, e sempre, enquanto sempre for agora.

Na época eu bebia muito. O resto é bem fácil imaginar: rondava as sinucas e os antros mais chinfrins até o fim da noite. Normalmente eu me tornava melancólico a partir de certa hora, e isso me levava para um lugar dentro de mim onde eu me sentia de certa forma confortável, cheio de ódio e senso de dignidade. Um lugar de muito sofrimento e amor próprio, de confusão sobre o sentido da dignidade. Normalmente eu acabava embrutecido, vomitando palavras desconexas num caderno de bolso, apenas para me sentir algo valioso, e isso era bastante estúpido e excêntrico para a maioria das pessoas – eu incluso – ainda mais com o aspecto deplorável que eu podia apresentar ao final de certas noites mal-sucedidas no meu não tão estranho jogo de esconder.

Tais idéias nebulosas sobre mim mesmo, as mais egoístas e extremadas, atraíam todo tipo de canalha, mulheres da vida, bêbados intratáveis, pequenos contrabandistas atormentados pelo consumo do próprio vício e alguns poetas ensebados. Impossível, no entanto, determinar o talento dos poetas, uma vez que eu também me considerava um poeta e estava inseguro quanto a mim mesmo: uma velha desculpa para a preguiça. E quando se está inseguro, ou preguiçoso, é impossível ser honesto.

Os poetas sempre foram tipos difíceis de classificar, afinal. Como a maior parte da poesia feita, pareciam todos um truque barato. Bons poetas poderiam ser ótimos canalhas ou corolas de igreja, os chamados “papa-hóstia”. Ao mesmo tempo, péssimos poetas poderiam ser cafetões disfarçados. Em suma, não havia no que se basear. E, normalmente, quanto mais uma pessoa me impressiona pelo seu intelecto, mais me assusta pela sofisticação da sua maldade. E puro intelecto é maldade pura.

De qualquer modo, eu também era considerado um poeta pelos meus mais chegados, e o que significava isso? Era mais ou menos a forma como eles esperavam que eu me comportasse: de maneira delicada e tacanha, com muita acidez e intensidade, de preferência com alguns rompantes dramáticos, mas sem perder a elegância. Eu, é claro, desempenhando o papel nos conformes do sistema, tentava negar tudo como um verdadeiro poeta, e dava os maiores vexames. Falava alto e cuspia, derrubava copos, chorava em ombros estranhos e, muitas vezes, entrava no sopapo por alguma divida de jogo – mesmo que eu nunca jogasse jogos de azar, pois sempre me pareceram redundantes.

Éramos na época alguns poucos amigos ainda. Havia os gêmeos, o diplomata e a “irmã mais velha”. Embora eu detestasse sinuca e não soubesse, por bondade, segurar um taco, ficava por ali, feito mosca varejeira, no balcão do boteco de fachada néon. Aquilo era um reduto de servidores públicos aposentados, punguistas com artrite e garotos de programa drogados demais, acompanhados de velhas viciadas ressequidas e vestidas com trapos, que dançavam até de manhã ao som de Jerry Adriani na juke box e seriam capazes de conversar contigo aos perdigotos sobre a crise dos mísseis em Cuba ou as crianças assassinadas da Chechênia. Aparentemente os motoristas de táxi eram os vendedores de cocaína que, por algum motivo secreto, também trocavam a droga por caixas leite. Os jogadores de sinuca mais velhos pareciam esconder alguma coisa quando olhavam para você.

Havia ali, como eu disse, uma juke box. Àquela altura da madrugada vocês podem imaginar o tipo de repertório. Basicamente música sertaneja e evangélica. Aquilo era bastante moderno. Um bar onde havia brigas freqüentes, onde uma vez vi um senhor de idade ser espancado por um selvagem de não mais que trinta anos com um soco inglês. Onde passavam droga e havia uma banca de apostas para os cavalinhos. E, basicamente, o que se ouvia lá dentro eram canções pregando esperança e boa ordem. Músicas de reabilitação e paz com Jeová. E que paz enlouquecida era aquela na qual vivíamos e de que tanto sinto falta?

Minha percepção das coisas ficava bastante afetada com a bebida e a fumaça. E era exatamente por isso que eu me sentia mais e mais perceptivo. Segurei uma das mesas de sinuca para os meus amigos, que estavam do lado de fora conversando sobre a passagem do tempo no cinema malaio. Então um senhor de certa idade se aproximou, com um olhar meio malandro, meio ordinário, e espremeu minha mão na mesa com a barriga, dura feito pedra.

- Meu bom jovem, você parece um rapaz loquaz – ele disse em seguida.

Tirei a mão debaixo da barriga dele e massageei cuidadosamente com a outra mão.

- O senhor percebe... A mesa já foi ocupada.

- Escuta, garoto, que tal ir lá colocar mais uma música, comprar um sorvete?

Havia uma cicatriz enorme atravessando o seu rosto e a unha do seu dedo mínimo era maior que as outras. Já haviam me dito uma vez para tomar cuidado com sujeitos com a unha do dedo mínimo maior que as outras.

- Tudo bem, mas o senhor vai jogar contra quem?

- Contra quem pagar – e me jogou uma ficha de música.

Você poderia ficar falando com um sujeito como este durante horas e ainda assim não saberia sobre o que ele está falando. Então resolvi aceitar a sugestão, apanhei a ficha no ar e pus para tocar uma música antiga que falava de crimes de amor e chuva. O velho levantou o chapéu na minha direção e disse:

- Nunca se esqueça, garoto: “a genialidade não anula a medula”.

Sorri de volta sem entender mais uma vez, pensando que talvez aquilo ficasse bom num poema do Manoel Bandeira (já que qualquer coisa ficava boa nos poemas do Manoel Bandeira), e fui até o balcão atrás do meu braço de ouro líquido. O que significava tudo aquilo? Aquela fumaça se esvaindo de vidas desmembradas em pequenos pedaços e aquelas mulheres com sinas definidas, emagrecidas pelo tempo. Aquelas pessoas que pareciam flutuar pelo mundo e que ninguém via. Não porque houvesse algo melhor para se ver. Mas justamente porque não havia algo melhor. Então não se via mais nada. Éramos pessoas aviltadas com problemas de insônia, cigarro após cigarro em becos sem saída, atrás de restos que nem os ratos haviam se dignado a aceitar. Éramos gritos entrevados enlaçados em espíritos penados, birras acumuladas em tempos de chuva forte, bocas mastigando bocas e ruminando algemas invisíveis em cubículos que diminuíam conforme os dias passavam. Não havia uma revolução ou uma guerra ou um partido ou um tirano ou uma ditadura em quem pudéssemos pendurar o cabide de uma culpa herdada, e que medisse nossos esforços. Vagávamos todos, imponderáveis, tolos, rumo a dias melhores, rumo a potes de ouro e duendes pegajosos. Dias melhores que nunca antes nem depois foram vistos desde que recebemos o peso da nossa tradição secular suplicante. Dias vivos apenas nas cores esmaecidas da nossa percepção deslocada.

Eu desenhava figuras geométricas no caderno. Antes havia feito um rapaz enforcado.

- Com licença, você é poeta, certo?

Olhei e vi um homem, melhor, um hominídeo com péssimo aspecto físico e semblante esquizofrênico, que parecia assim um poeta, por motivos óbvios. Uma flor na lapela e bafo. Não respondi nada. É o melhor modo de lidar com poetas. Então ele disse mais uma vez:

- Um poeta, muito bem... Vi logo que era... Pelo caderninho pautado.

- Olha, cara, eu só estava desenhando...

- Escuta bem: leia Rilke. É o maior poeta de todos. Leia Rilke antes e depois do banho. Leia Rilke na privada, durante as refeições, até no escuro, leia Rilke. Decore as elegias, afague seus anjos e suas esfinges, mas leia no original!

Ele mesmo não devia ler Rilke há muito tempo. Quando dizia mais uma vez “leia Rilke”, escorregou no que parecia ser o jantar devolvido de alguém, e tive que recolhê-lo. Coloquei o homem sentado num banco e ele imediatamente abraçou o balcão e pediu duas cervejas. Como um raio, se recompôs e serviu nossos copos. Não parecia comandar os próprios movimentos. Seus olhos tinham qualquer coisa de muito mal esclarecida. Tilintavam como gelo num copo de uísque. Pareciam mais próximos da origem das coisas que os olhos da maioria. Mas estavam próximos demais. Pareciam enlouquecidos justamente por isso.

Ele falava sem parar. Falou quase a noite toda sobre a métrica de Rilke, sobre como era necessário escrever poemas como quem esculpi uma pedra, e que eu deveria me preocupar com as cores de cada palavra ao compor versos. Ele dizia assim mesmo: “compor versos”. Parecia um sujeito muito antigo, mas não tinha ainda 30 anos.

Bebi muito na conta dele aquela noite. Meus amigos já haviam pagado as suas e as minhas e estavam saindo, quando eu disse que ia ficar, que tinha conhecido um poeta, um poeta de verdade, e que ele estava pagando as cervejas. Eu falava com uma ingenuidade pouco convincente, e nem eu mesmo acreditava em mim.

Meus amigos então foram embora e disseram para eu tomar cuidado. Ele que tome cuidado, eu disse, e apontei para o homem, que entornava todas no balcão. Sentei ao lado dele, ergui meu copo e disse com solenidade:

- Um brinde à poesia!

Sem me olhar ele disparou um tapa violento no meu copo, que estourou na parede. Os jogadores ergueram seus tacos, os bêbados acordaram, a garçonete molhou um cliente e a música repentinamente, como tudo naquela noite, acabou.

Os olhos do homem ficaram ainda mais vidrados, mas escureceram por dentro e em volta. Ele se curvou ainda mais no banco, como se espinhos lhe perfurassem a pele. Alguma coisa parecia perto de explodir dentro da sua cabeça. Alguma coisa que não era dele e também não me pertencia, mas que de alguma forma havia sido colocada entre nós. Ou a falta de muitas coisas. Ou tudo isso reunido. Seus olhos ficaram brancos e seu rosto, embotado.

Eu resolvi sacudi-lo pelos ombros e perguntei o que estava acontecendo, dando-lhe tapinhas na cara. Mas ninguém pergunta a um louco o que é a loucura esperando obter uma resposta coerente.

Ele apenas me olhou e disse, salivando pelos cantos da boca:

- Fique aqui. Não vá embora. Vou pegar um pouco de cocaína. Eu compro mais cerveja. A gente bebe lá em casa.

Então pensei, “foda-se Rilke”, e saí para vomitar na calçada. Depois fui para casa, poeticamente, e sonhei com frases coloridas.

"gauche"

existe o baiano
e existe a praga
do baiano.

existe o preconceito
e existe o baiano
da praga.

existe a praga
de quem lê baiano
preconceito.

e existe Drummond.

5.11.07

“menino apaixonado tropeça e cai de costas no asfalto”

“Entre os olhos e a coisa
cai a sombra,
e essa sombra
é a palavra pré-gravada”
(William S. Burroughs)
...e você não está ali quando mente de costas, dentro da noite e minha reticência beatificada no caos urbano, em gritos e olhos cheios de incompreensão e mãos pegajosas que tremem facas sem fio, mas ouço o teu trabalho alheio, ouço teu barulho falho, essa espécie de ronronar dos infernos, um estalo no desapego do desassossego do sexo que bateu asas, como se o som fosse da fricção da coisa vindo, como se o declínio estivesse próximo do corpo inchado, adormecido de meios-fios, meas culpas, comedores cabisbaixos de paralelepípedos, em tom surdo e seco, devastador como a flor que não passa de plástico em olhos abertos de vidro, como nós, como um saco de ossos que se pulverizaram dentro do amor assusta-dor, quem me assusta é o som do que sai de dentro como meteoro explícito na carne sudorípara do teu desamparo repentinamente próximo, dedicado a mim este ruído, um som de tropeço e absinto, um som casal de poetas falidos em praças públicas, onde crianças não sabem o demônio que as espera e sorriem, sinto a tiara do ódio castrado presa à falha do couro cabeludo, e nem sei o que digo, é verdade, mas quem souber melhor do que eu tampouco deveria dizer, pois se sabe, contente-se, e boa passagem, mas sinto o vento deste rumor estrondoso no ouvido vindo de pontos suspensos em coletas digressivas na paz forjada da calma daquele sussurro banido do qual nem mais lembramos, este barulho abafado de sonhos se chocando, que faz suarem os meus sentidos e derrete minhas necessidades imediatas, que me faz ver santos nas esquinas das palavras desnecessárias de que tanto preciso para morrer nada além de aflito pela placidez da paz compulsória, som vazio e seco, som do seio surdo que não sai da tua sonora suposição de mim, por mais que eu tente te arrancar do vácuo deixando meu vermelho no teu braço, que pise fundo na imensidão da tua dúvida, dos abraços distorcidos em concordâncias desleais, na busca por migalhas do que de mim só existe em bocas entrecortadas no momento do choro despercebido no escuro do quarto, quando sou eu que tenho os dentes brilhantes e brancos, pavorosamente brancos, como Vlad Tepes da Romênia, no teu mundo de calcinhas e meias-calças vermelhas do qual fui mutilado pela faca das decisões sem ressalva, do que não volta atrás depois que se ouve o som, os cabelos em choque paralisando o tempo eterno, a espinha que se contorce no eixo sujo da tristeza irrevogável em movimentos tetraplégicos necessitados de um porém que não se quebre, apenas mais um garoto tombado na esquina do agora ou nunca, e é sempre este o som quando um coração se parte, quando um irmão desconhecido tropeça enquanto pensa em quem ama loucamente porque lhe deixa calmo, inconsciente como vim e como vou, na nulidade tranqüilizante, nos assobios dos caridosos embriagados, entre as árvores que acompanham o momento do som mais sorte da próxima vez, pernas como foices cálidas ou um sorriso rápido emprestado que mutila, quando as palavras se calam e entendo a verdade que grita e que nada pode ver, enquanto for apenas, e não tudo, tarde demais.

1.11.07

"reciprocidade" (Geraldo Carneiro)

o amor
desfaz
a noção
do tempo.
o tempo
desfaz
a noção
do amor.

31.10.07

"devaneios à vespera de um encontro"

empato comigo mesmo quando quero vencer a marcha simples do afeto e minha raiva, por mais que sim, não, não cabe, não sou grande o suficiente para morder lábios que não sejam imaginário sangue, e para encarar a própria faringe minha carcaça se apega fácil demais e odeia rádio que se ouve só, e, como Mozart, queria sair por aí perguntando “você gosta de mim?” e poder chorar por uma réplica negativa ou ter uma crise convulsiva se alguém tocasse uma nota de trompete, mas tudo supera a delicadeza e por isso só malucas se aproximam de mim do mim que não é meu, infelizmente, mas gostaria de dizer, ainda assim, para impressionar minha própria fragilidade: “dos trinta filmes que realizei...”, “de fato, dos 15 contos de minha última antologia...”, ou bocas em dúvida por causa de avenidas mudas, tortas, ou espertas demais, ou bichas sérias, o que não me ajuda muito na relação entre o que eu quero e aquilo que eu tenho na minha frente, sem saber no fundo do fato, de fato, que se passa na minha cabeça – isso é apenas uma cabeça? – quanto mais daquela menina com uma rosa falsa presa na orelha, que sorri ainda menos do que eu, e eu a amo, mais porque gosto da palavra que do significado que, burramente, ninguém soube definir assim como se define uma parede branca, sem saber que talvez o amor que já soa ridículo assim quando eu escrevo seja apenas uma parede branca e a mosca morta petrificada na parede branca que eu posso chamar de amor seja eu sem saber que você também tem sua parede, mais falta de amor do que amor em si, já que é tão fácil falar de amor, como se vê aqui.

não que eu goste. mas não também que eu use roupa preta e cabelo com goma, saiba usar a pelve ou camisa de botão aberta florida com cinto de couro, ou um espeto cromado fincado no queixo, ou que dance e abrace todo mundo como se fosse um pretexto para morrer. não consigo extremar sentimentos, respeito seu ritmo ausente de mim. A menos que caia na grama para ser carregado por um senhor barrigudo que parece com o pai que inventei agora e já me tapeou com um sorrisinho sórdido: o que nunca aconteceu e seria meu sonho.

fora o sonho, minha vontade sempre foi beijar uma mulher mais pesada do que eu. ninguém entende isso por isso eu não explico isso, mas é um tipo diferente de enigma sensual. somos iguais no que me diz respeito e nos difere: no caso a dor de ser gordinho. minha cabeça é gorda, sobra gula. pego nas banhas dela como sonhasse com meu próprio desfecho sorridente.

será que sou infeliz? palavras.

se todos bocejam, não me venham falar de chatice. falemos então sobre vaidade.

eu diria: a vaidade é apenas aquilo que se desprende de ti quando você está pensando em outra coisa que você pensa que é a maneira como as pessoas te vêem mas é de fato apenas você mesmo vendo, mas prefiro dizer: “fique aqui”. você diria: “nem pensar”. eu diria então: “você tem uma bela irmã mais nova” ou “como você vai?” você me estapearia. Carlos Drummond responderia: “mal, obrigado, minha irmã é careca”. e diríamos todos “te odeio”. como é estranho e rápido conhecer uma pessoa quando você já inventou ela (seria horrível ter que escrever corretamente aqui) desde o começo.

eu minto
que não consigo
dizer o que sinto
mas sinto
que não consigo
dizer o que minto.

não sei terminar essa
e para dizer a verdade
estou nervoso como o diabo
porque ela me espera
debaixo da marquise
e eu não sei onde estou.

28.10.07

“O momento mágico”

Sim, apenas pela sensação fugaz das linhas se fazendo. Sim, por uma bobagem, pelo espaço preenchido por qualquer bobagem. Por cataratas de bocas se abrindo e se fechando. Pela bobagem singela de um sorriso sem razão. Pela loucura liquefeita nos espaços entre as folhas de um eterno clima outonal. Sim, pela emoção fragmentada de gritos enxertados. Aquele espaço sempre quase mudo, a ponto de se realizar, se afastando. Aquele ranço entre o silêncio idealista e a solidão tácita. Existe talvez quem sabe um “não basta”, não basta apenas garantir uma sabedoria, porque no fim se perde e se nega, mas quem saberá realmente o que um dia chamou-se ingenuidade ou força de espírito? E onde estará em mim o amor de que preciso? Porque é preciso achar, sim, talvez apenas para ver a beleza das linhas se fazendo. Talvez apenas por uma bobagem. Sim, por uma bobagem. Só por causa de um rombo incômodo que repartimos em silêncio aos risos debaixo da fumaça dos cafés de filmes aos quais jamais assistimos, mas com cujas atrizes aprendemos a nos masturbar. Os sonhadores foram banidos para a obscuridade. O tempo é um constante dizer não ao convite de deus e, sim, é preciso ter de volta. O espirro inconseqüente de quem se arrepende da luta e cai, agora sem braços, criando suspiros ordinários de repente remetido ao movimento reacionário de um tempo ainda desconhecido, onipresente, sem saída.

26.10.07

"a felicidade anda bêbada de ônibus"

Entrei no ônibus sorrindo e cambaleando, como qualquer sujeito ao lado de quem se pode dormir sossegado, e fui para o fundo, chacoalhando com os buracos do asfalto mal reformado. Havia no ônibus algumas caras mortas e três meninas no fundo.

Assim que sentei, me virei para trás. Vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela da lotação. Um reflexo cansado. Ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava sentada ao lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, entre os cabelos.

Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. O que estariam pensando? Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, a franja que lhe caía sobre os olhos me deixou momentaneamente sem tato: o corpo duro, a vida dura, muito mimo, filha única, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela me chamou mais atenção do que as outras duas juntas: a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes de um sorriso falso. Eu olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre os joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para.

Percebi que ria de mim entre os dentes. Começou a me apontar. Pensei: “Então quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais canalha, aquele que se dá para as balconistas em alguns dias menos quentes, quando se acorda desmotivadamente feliz e até as remelas nos olhos são como que poéticas. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo, e com ela foi minha ilusão. Eu ri, eu ri, eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar para ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafas e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios de árvores ressequidas da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo e desintegrado no espaço. Era um riso com tantos pequenos detalhes imersos que senti a obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo à beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, que hoje tudo passa, que eu passo.

Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que gritava tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de chá e mesa. Mas rir de volta para ela era tão inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".

As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo convencer a mim mesmo de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça as suas amigas... Sou apenas um bêbado".

Levantei porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora e para sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da viscosidade noturna. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela, ou renegá-la como a um deus justo. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Quem foi mesmo que disse que a beleza é a única coisa divina e visível ao mesmo tempo? Um alemão provavelmente. Os alemães são os mais incríveis mentirosos.

Mas pela primeira vez era melhor ver do que pensar na felicidade. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco, mas era um sorriso morto. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, eu te amo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que eu ainda tenha alguma graça para alguém. A felicidade abriu a boca e ficou assim, com ela aberta, sem me engolir. Depois riu do seu próprio ego inflado e resolveu brincar. Disse por fim: "Muito prazer, meu nome é Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.

Olhei pela janela. Ela estava ali, com a cabeça de fora. Tudo rápido demais porque mágico. A eternidade não dura mais que cinco quadros. Nem a beleza. O mundo ainda tinha vida na sua melhor metade. "Fique com deus", li nos lábios da Graça, da Felicidade. "Você...", eu disse de volta apontando, meu rosto como a parte preponderante que some na escuridão da vontade. Até mais ver, Felicidade.

24.10.07

"solidão"

Solidão é quando o prazer se torna uma busca frenética e nos esquecemos de que a busca frenética é que deveria ser o prazer. Solidão é a graça dos ordinários, a desgraça dos sensíveis, o refúgio dos literatos, a estética do desempregado, a paz da fé no que nunca foi visto. São duas camisinhas no bolso e um vinho empoeirado em cima da geladeira. É quando os valores se tornam lágrimas dentro de um copo pela metade e o sorriso honesto está na outra metade que não existe mais, se esfarelou. Foi devorada pelo mundo. Solidão é o pedido de desculpas de um asmático, relações movidas a “com licença”, “por obséquio”. É jogar pôquer virtual, faturar um milhão virtual, tirar as cuecas e dormir sentado. Se pintar de palhaço e escutar Erik Satie, masturbando-se. É babar no travesseiro, acordar suado e virar o travesseiro de lado, para não voltar a dormir nunca mais. São os minutos contados para o sonho cortado quando a gente finalmente voa. Solidão é acordar deste sonho e só lembrar da queda, que nunca existiu. O vapor de uma panela cheia de óleo quente. É abraçar um retrato antigo ou olhar pela janela e ver a si mesmo estirado lá embaixo. E ao mesmo tempo continuar aqui, ajeitando os cabelos que sobraram na frente do espelho, passando talco antes de vestir as meias. É o vício de si mesmo, a maior droga inventada depois do amor. São conselhos para a vida toda, é a vontade do outro por você: “seja feliz”, “você tem tudo”, “é o bastante”... É o bastante? O quê? Tudo? Melhor que nada. Será? O quê? Nada? Não exatamente, nunca exatamente... É observar o tempo e ver uma mula manca fustigada por um mujique russo enfezado e com bigode, suor, chicote na mão. Uma pomba amassada na via expressa, alimento de mais dez pombas. É quando o nariz de um filho escorre sangue e o pai pergunta se ele andou cheirando cocaína. Um pano com álcool, por favor, ou benzina. É quando tudo tem o mesmo sentido, porque todo o sentido se tornou o próprio anacronismo e o anacronismo, a crônica do dia seguinte. É a paciência da barriga inchada de fezes e tédio. É o tédio como virtude, como progressão aritmética, a vida calma de um pedófilo num domingo ensolarado. Ouvir as reclamações dos outros e procurar nelas os buracos vazios das tuas próprias. Convencer os outros de você. Pedir de cabeça baixa. Aceitar com os ombros. Escrever para ler os comentários. Pedir que leiam e comentem. Distribuir panfletos sem assunto. Não falar a quem se ama. Não amar a quem se fala. Aprofundar simplicidades. Suspirar forjando novas dores para que alguém se preocupe contigo. É quando mentira e verdade são uma coisa única, mentira portanto. É quando a punheta é o mais longe de si mesmo que você pode chegar. Uma punheta sem gozo. Uma ligação para o interior de São Paulo. Sou eu me olhando e vendo a mim mesmo. Monótono como uma escova de dente debaixo do basculante do chuveiro. Programar a semana. Pensar em novas possibilidades artísticas. Dizer “possibilidades artísticas”. É o vento derramando os objetos do quarto e você deitado na cama suado, sem dormir, dormindo doze horas por dia. Cuidar da vida. Entrar no psicólogo. Arrancar os pêlos do nariz e do rosto. Recorrer à astrologia para explicar a vida sem saber que a graça da vida está no que dela não se explica. Ler dez páginas por dia de um livro eterno. Um livro cheio de orelhas. Um Eu Te Amo maiúsculo sem valor algum. Olhar para a porta e te esperar entrar. Sentir o sono dos derrotados. É quando todos se tornam um só você. Mas é só você quem não está ali.

22.10.07

“a palavra”

eu apenas coloco a palavra
na cabeceira
e a verve diminui um pouco.

então vou sorvendo as poeiras
interessado pelos móveis
pelas esquinas de um pensamento torto
de uma alma não-falada.

esse tolo vaso de cerâmica sobre a mesa
esse tolo vaso em cacos na lembrança
e os limites do quebrar o vaso em cacos
para apenas colocar a palavra
na cabeceira.

18.10.07

"Jabá!"

Existe doido para tudo. Entre os mais doidos que conheço - isso entre os doidos assumidos é um baita elogio - está o querido Fernando Ramos, editor e leão de chácara do Jornal Vaia, lá de Porto Alegre. Alguma coisa deu no subversivo camarada para ele me fazer uma série de perguntas sérias sobre literatura, publicadas junto com as minhas respostas, e mais dois poeminhas pretensiosos, no site do jornal.

Quem não tiver nada melhor para fazer, clique aqui, e descubra como é fácil parecer inteligente e/ou ser pedante sem nem mesmo sair de casa.

"Rodriguianamente Brasil"

No Maracanã, nesta noite de quarta-feira, poucos gritos mobilizaram a torcida desunida em 90 mil cabeças, que se manteve quase todo o tempo em silêncio. Eis abaixo uma tentativa fiel de reprodução dos mesmos:

"Ei, Galvão, vai tomá no cu!"

"Uuuuuuuuuuuuhhh!"

"Lá na Rede Globo só tem viado / Galvão Bueno... Come o Arnaldo!"

"Ih, fudeu! Ronaldinho apareceu!"

"Ôooooooooooooooooo... Melhor do mundo!"

"Oléeeeee! Oléeeeee!"

17.10.07

“noite funda, silenciosa”

pensei em ti na madrugada,
ouvindo músicas sem melodia.
pensei na vez em que o dia
era noite dentro do quarto
onde não conseguíamos amar.

pensei enfim no teu sorriso,
no vacilo breve da tua pele,
nos modos do teu precipício,
no riso leve do teu carnaval.

pensei em ti, e não por mal,
não porque me mal querias,
mas pelos beijos de gengiva,
o amor das pernas enlaçadas,
o sim das frases silenciosas.

pensei em ti por sentir próxima
a morte: sinal da última beleza.

15.10.07

"O rosto e a poltrona"

No sonho eu ainda acreditava no amor reconhecido. Sabia disso porque me sentia inseguro, com frio, sem fome, com raiva – no céu da boca o rastro de algum ansiolítico.

Eu andava no sonho, com um velho roupão esfolado. Havia também você no sonho, você visitante, você de passagem, você que não veio, você inviável, você mil caminhos, ali estava você, querida sem rosto: você que sorria.

No sonho fingíamos. Você dizia:

- Ah, querido, que dia lindo faz lá fora, lembra aquele dia perfeito... Vamos sair?

Eu sorria:

- Escuta, preciso da sua ajuda para encontrar um título.

Você não entendia aquilo, do dia estar lindo e eu pensar em títulos. Você, que no sonho era minha ternura perdida, você que se lambuzava sentada à mesa, não sabia o que dizer. Existia algo brusco no meio dos espaços vazios, frágeis, antes ocupados por brigas, por choros incontestáveis, por palavras de desespero, pela vida que se esvai, pelos passeios a contragosto no parque, onde comíamos cacau da árvore, que não era bem árvore de cacau, depois viemos a descobrir.

Havia uma pessoa contigo, uma pessoa com rosto, com as unhas pintadas. Lembro as unhas pintadas, não lembro a cor, não lembro o rosto, mas era bonito. Não tanto quanto o seu, que era rosto sem rosto, sem rosto o meu amor. Que estava magrinho e com os ossos à mostra, como gado faminto, cabelos cortados, mas estava amando, assim de um jeito tão bonito e antiquado, meu amor amassado, amor amando, e eu precisava apenas de um título.

- Eu tenho os textos, mas eles não apresentam nenhuma unidade. Eu preciso de um título que dê aos textos um eixo comum.

Você andava de costas e de lado, maquinando expectativas que eu sabia de cor e pelas quais eu dizia: “Mas como?”

Agora era você com um roupão esfolado, enrolando um tapete, malas na porta, as unhas pintadas eram tuas, ainda sem rosto, sorrindo cansada, e onde estava a amiga? Eu estava tão triste que não podia chorar. Estava agora sem roupa, magro, a luz baixa e a coceira na carne.

- Preciso ir embora.

Impossível saber quem disse a frase.

Eu te acusei, meu amor. Eu te acusei porque tremia de frio e você precisava ir embora, você precisava seguir o ritmo recusado pelas harpas de satã. Eu te acusei porque o amor é um paradoxo perfeito para os que andam pelo quarto – e eu fumava! – à procura de títulos para frases sem eixo, com o roupão esfolado.

- Você é egoísta! Você não me ajuda!

Você desenrolou o tapete e me mostrou títulos bordados nele. Você foi paciente, amor sem povo, você foi indiferente e calma. Das janelas, muitos te olhavam sem saber se você estava morta. E aplaudiam. E apontavam.

- Preste atenção – você dizia segurando o tapete aberto. – Os títulos devem ser simples: “Rei Lear”, “La Chinoise”...

Os títulos bordados no tapete, que você voltou a enrolar. E havia também agora o sol, como um parente indiscreto, quando entrou no quarto acusando um rastro de poeira, tão parecido com a necessidade dos que amam sem saber que nome. Porque a necessidade dos que amam é poeira que entra e sai pela janela.

Eu disse que pularia, que pularia pela janela se você fosse embora. Você me olhou e, quando me olhou daquela forma, tinha no rosto um outro rosto subliminar, um rosto que permanecia em constante mutação, como se fosse todo o desprezo e a pena do mundo, em plena mutação, alguns lances sublimes, em formas guardadas na minha mente que não guarda mais formas.

Você pediu que eu ajudasse com as malas, que levasse tudo até o carro. Eu disse que não levaria coisa nenhuma, mas, como nos sonhos, muitas vezes nos negamos e somos arrastados por forças ainda desconhecidas.

Estávamos num hotel daqueles com carpete vermelho, senhoras falantes de olhos fechados e maçanetas douradas. Os valetes usavam um chapéu coco desses de boneco de ventríloquo. A menina das unhas pintadas, com o rosto bonito de que não me lembro, desceu conosco, e sua presença era um hálito quente na minha nuca, dizendo: “Procure sozinho”.

Lá embaixo, as malas empilhadas, um lenço que pendia esvoaçante no seu pescoço, um pescoço roxo, decaído. Eu gritei, finalmente. Eu gritei barbaridades sobre ausência, egoísmo, ostentação e máscaras. Eu usava uma.

- E de quem é esse carro? – eu gritei.

Havia um carro na porta do hotel.

- Quantos carros você tem? – insisti.

- É do meu namorado – você disse de unhas pintadas. – Ele tem dois, ele é rico, com banco de couro e tudo...

Eu te ofendi, meu amor sem rosto. Eu ainda não tinha um título e você estava feliz, com o pescoço roxo, o lenço caído no chão, voando sozinho no tapete vermelho do hotel com maçanetas douradas, de onde vinham lanças de luz ao sabor do sol. O sol desnudava a poeira mais uma vez, e eu pensava em janelas, em varais de roupas lavadas, nos dias perfeitos que funcionam melhor nas músicas, no que entra e no que sai da vida, no que tínhamos quando nos sentíamos miseráveis, juntos, a contragosto.

Pensava em quando ainda chorava, quando não era ainda tão triste que não podia chorar. Então quis chorar. Me escorreu uma água suja dos olhos, então eu disse:

- Vou procurar sozinho o meu título, não preciso de você, você se tornou alguém desprezível, vá embora com seu banco de couro, com seus tapetes cheios de nove horas, com seu pescoço roxo decaído, não quero você mais aqui, tome seu lenço, e não me procure nunca mais!

- Essa frase fui eu quem disse – você disse – há muitos anos. Quero de volta a poltrona que eu te dei de presente.

E então subimos, pela última vez juntos, eu e meu amor sem rosto, para desmontar a poltrona e trazê-la aos pedaços, uma poltrona enorme, já que inteira ela era insuportável, pesada demais, não daríamos conta sozinhos.

13.10.07

"beleza"

uma mulher já nasce morta,
bustiê lilás, todos a vêem,
mas ela não pode ver ninguém,
a si mesma talvez, ou nem
(misto de pó e defunto)
saber se é num minuto
que um vulto a torna presa,
a alma sempre ao pé da mesa,
dor infinita, sorriso-prótese,
certa porque bem calculada,
desconsolada se acaso rebola,
estátua forjada no prostíbulo,
obrigatório ciclo porque quase
(sem vontade) toda a glória
necessita tanto alcançar a vitória
que se torna incapaz de reconhecer
coisas pequenas e defeituosas,
que urgem às escondidas.

7.10.07

“cocaína”

esta noite seremos os peripatéticos.
cheiraremos as flores de plástico,
daremos, cegos, as mãos aos cães,
cortaremos fora os próprios braços,
beijaremos, nus, falsos espelhos.

nós arrasaremos todos os sorrisos.
criaremos traumas do amor desfeito,
lembraremos metas, mijaremos tinta.

falaremos ao demônio da nossa causa
sem vergonha de ser a parte alheia
da metade insólita que estragou a fruta,
de ser a causa bruta sem eira na beira
assassina que foge à hora da espera
pelo tombo do noivo na porta da igreja,
pelo choro constipado em juras poéticas.

nunca mais a lembrança do instante vago
de ter apagado o rosto da mãe cavilosa.

"a hora máxima"

aos amigos as mãos cortadas
sugerem tardes tenebrosas em que fujo
escavando o vácuo e no asfalto a chuva
cria leve uma fumaça que soa lilás.

ficarão, sim, aqueles corrimões alados,
as onças pintadas pelo esforço do medo.
ficará talvez aquela caprichosa lágrima
mas ninguém saberá o que deve ser feito.

quando enfim a hora máxima se acumula,
o crepúsculo é a alcova do Conde Drácula.
e lá estarão os portadores de boas novas,
ainda lá o tabu das noites, o túnel sem luz,
o piano desdentado, a fome sem teclas.

talvez os cacos de uma delicadeza inerte
tenha enchido de sulcos os traços da face.
quem sabe se a farsa do que não permanece
não será a pedra de pouso dos que passam?

3.10.07

"Um dia pintarei meu quadro de um azul que nunca se viu na Terra"

*adianto que o texto é antigo, e fala de um tempo morto, vivo dentro de mim, em algum lugar desconhecido, que procuro sem saber como.

Lembro que vi todos bêbados e santos em cima de uma pedra-pouso-para-discos-voadores-terrestres ali na Urca. Olhei pro Cris e falei: “Esses babacas estão todos doidões... Olha ali, parece uma seita satânica”. Ele olhou pra mim, estávamos na calçada: “Deixa que a maré tá subindo e vai varrer tudo dali”. O fato de a maré subir e estar sempre subindo, descendo quando você quer que suba, o inverso também. Nunca vai nos respeitar, a maré. Não depende de nós. E o que vi naquela tela, ao passo que dependia de tudo, por vezes senti que escapava do Nós, do Eu, do Meu, que seja do Nosso, e passava a ser independente, não barato nem inconseqüente, apenas independente, como a maré.
Mas todos na pedra de braços cruzados, pulando de uma pedra à outra, rindo, se olhando. A água dando seus últimos avisos. No fundo, um senhor de bengala, um negro pé-de-cacau, dobrava a cara segurando as calças, boca suja de areia e dobras sujas de merda de baratinhas do mar, dormia profundamente o velho, bainhas dobradas, foi até o meio do caminho, acordado pelo fuzuê do trompete com as exaltações incontidas quando se tem tudo de que se precisa muito perto do nariz. Então ficamos meio abobados e beatíficos. Como os anjos, como os santos, como os assassinos. E vem a maré... E o velho do candomblé... Olhei pra ele bem de perto. Saiu de dentro do chão, acendeu gás, lampião, a dor. Olhou em volta e observou o tom de comemoração, cansaço, música rápida, fumo em guardanapos e leitura de Kafka, na base da risada. Viu tudo, piscou os olhos, acendeu sua luz, sua única luz, na mesa de vigas entortadas pelo efeito da corrosão do tempo que cisma em se exibir derrubando coisas no limbo.
“Ei, Cris, vou sair fora daqui... Aquele velho macumbeiro ali tá me deixando tenso”. Ele riu, mas ficou tenso também. E rimos então. Mas eu podia ficar ali em cima sem problemas. Podia ver toda a verdade lá de cima. Olhava pra baixo e via o processo da morte, não como conclusão, talvez um pouco de sorte e, claro, idéias de grande porte e dúvidas ainda maiores.
Filhos da puta, pensei comigo mesmo sorrindo. Agarraram o acaso também e agora eu não posso dizer mais nada.
Tudo aquilo, coisas da sinceridade, meu alimento, minha alfafa: o riso impostado do Alvarenga, suas canções e seus olhos espremidos, sua vontade de voar quando dança, suas mãos se mexendo no ar quando diz a verdade que passa por perto e quando endoida sem parecer besta, quando quer agarrar tudo com seus grandes braços desajeitados e cheios de coisas e vontades que podem me salvar.
As conversas de ombros encolhidos sobre o abraço do mundo que o Cris me dá sempre, o olhar pro outro e sentir uma compaixão solidária, solitária sendo quase conjunta, mas boa, confusa, porque maduro é morte e a solidão nesse caso seria da compreensão de que temos um ao outro.
A leveza do olhar e a profundidade de qualquer chegada de olho ou a frase calma de qualquer mão no ombro do João Duarte, meu inverso igual, seu jeito de ser que, vendo assim, faz babacas como eu duvidarem se aquilo realmente pode ser: minha estúpida limitação, tanta merda não podendo que pode.
E aquele sopro cansado, coado, procurando, desesperado, onde está Chet Baker, ajeitando os óculos, sacudindo a cabeça. Sofro como ele, onde está ele? O sopro cansado na toada fugaz da batida de veias e pulsos no galope incontido da música-maré. Um Maquiavel de boinas com hastes do tipo Dave Brubeck que jazz dentro de si próprio e quer entender também porque tanto ódio, tantas convenções desajustadas, tanto pavor quando tudo é apenas música. Mas dentro dos olhos...
Ah! Dentro dos olhos está o pântano submerso. E dentro do pântano estão ostras nojentas. E dentro das ostras nojentas, gosmas pegajosas. E, por fim, a PÉROLA INTACTA. Estamos juntos ali. Uma pena que amanheça todo dia. E uma pena que eu não saiba falar do amor.
Na pedra agora um discurso:
“Sem vocês isso jamais estaria acontecendo...”
Eu agora estou de volta à pedra. Existem momentos que viram quadros. Se eu pudesse pintá-los seriam os mais lindos quadros. De um azul que não teria fim, que a Terra não conhece, e vocês se espantariam com o meu azul sem fim. Dane-se a arte! Que importa o que já foi pintado? Precisamos viver; e já! Precisamos sinceramente precisar viver já. Como nenhum livro explicará.
Eu pintaria um quadro de vocês, bros, pretty bros, um quadro de um abraço com meias, um quadro de cinzas nos cabelos, um quadro de esculhambação, de dancinhas-Prince-abaitoladas, dos melhores choros, das melhores bundas, dos grandes abandonos compartilhados, dos maiores sonhos, do que não pudemos agarrar nem mesmo tentar explicar, daquilo que passou e deixou um grande peido fedorento e silencioso, tudo o que se misture com as grandes infantilidades e com os brindes de uísques velhos e uísques novos e uísques bons e ruins e conhaques e vazou e lambidas de dedo e sorrisos de meia boca e caras de sacana e todas as palhaçadas e todos os momentos vivos que me possibilitaram. Porque é impossível ter que sentir isso e falar disso ao mesmo tempo sem chorar, porque o choro é sempre pelo impossível, que agora, graças a vocês, acaricia minha cabeça todas as noites antes de dormir. E então não durmo mais, então vejo o dia voltar em azuis violáceos, tantas tonalidades, Álvaro!, são tantas as tonalidades!, são tantas as possibilidades de erros e acertos!, temos tudo!, tudo o que pudermos misturar com o caldo da emoção!
Temos tudo porque podemos sentir a brisa avisar aos marujos: “homens ao mar!”, porque temos o instante, a vontade de voar, apesar dos passa-pernas convencionais, pois nos faltam asas. Mas digo: Na-na... Vocês não podem mais me agarrar! Agora eu tenho o mundo, ou o que dele me convém. Agora eu sou o abraço que tentei dar mas os braços não conseguiam se esticar tanto quanto agora o pranto que me enche os olhos tenta saltar para longe, onde a vida era o mistério e a morte chegava sem avisar, porque a vida é o máximo que a morte pode me dar.

Vocês, seus miseráveis sonhadores e adoráveis, vocês podem chupar o universo de canudinho. Nunca pensem que não. E como que eu posso falar de outra coisa que não seja o amor?

27.9.07

"esfinge"

somos aquilo
que está na crítica
dos que invejamos
silenciosamente
quiçá com abraços.

a abnegação
– ou a sabedoria,
como diriam barbas
– está em conceber
o teu passado morto
naquele que não
te reconhece.

23.9.07

"esboço para uma teoria dos erros fundamentais"

por muito tempo o Homem disse:
“oh, Deus, tenha piedade de nós!”
e matava homens por amor a Deus.

muitos anos depois, o Homem falou:
“oh, Homem, seja piedoso com Deus”!
e matou Deus por trás de um sorriso.

a morte de Deus pelo Homem recria
velhas fábulas de impérios decadentes.

Deus está preso, como o pai mutilado,
entre atmosferas que nem mesmo Dante.

agora o homem tornou-se minúsculo,
e Deus pende da forca num riso canalha.

“os anjos exterminadores – matiné”

os olhos vazios da noite violentada,
o som agudo dos erros nos tímpanos,
a calma dos que não esperam mais nada:
sem contato, saímos todos do cinema.

uma frase do filme, anoto no guardanapo:

“eu sou um berço que balança
no oco da tumba onde faleço”.

jovem francesa possuída pelo diabo,
o sol são garfos de prata nos espelhos.
entregam-me um santinho, agradeço:

“venha também ao Templo do Oriente!
não se deixe enganar por falsas promessas,
venha agora encontrar suas respostas”.

um certo engulho – me apoio num poste.

“seja qual for o seu problema,
o ajudaremos a superá-lo e
não o deixaremos abater-se”.

vejo mulher sem rosto dobrar a rua.
grito por socorro, escorro até os pés.
ela me olha de volta, filha do diabo:

“não precisa dizer nada.
com apenas uma consulta,
eu posso lhe dizer tudo
que você precisa saber”.

"Balada dos Enforcados" (François Villon)

Irmãos humanos que ao redor viveis,
Não nos olheis com duro coração,
Pois se aos pobres de nós absolveis
Também a vós Deus vos dará perdão.
Aqui nos vedes presos, cinco, seis:
Quanto era cara viva que comia
Foi devorado e em pouco apodrecia.
Ficamos, cinza e pó, os ossos, sós.
Que de nossa aflição ninguém se ria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

Se dizemos irmãos, vós não deveis
Sentir desprezo, embora condenados
Tenhamos sido em vida. Bem sabeis:
Nem todos têm os sentidos sentados.
Desculpai-nos, que já estamos gelados,
Perante o filho da Virgem Maria.
Que seu favor não nos falte um só dia
Para livrar-nos do inimigo atroz.
Estamos mortos: que ninguém sorria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

A chuva nos lavou e nos desfez
E o sol nos fez negros e ressecados,
Corvos furaram nossos olhos e eis-
Nos de pêlos e cílios despojados,
Paralíticos, nunca mais parados,
Pra cá, pra lá, como o vento varia,
Ao seu talante, sem cessar, levados,
Mais bicados do que um dedal. A vós
Não ofertamos nossa confraria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

Meu príncipe Jesus, que a tudo vês,
Não nos entregues à soberania
Do Inferno, que só ouvimos tua voz.
Homens, aqui não cabe zombaria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.

tradução Augusto de Campos

15.9.07

"a evolução do anjo"

para Uirá dos Reis

mais forte do que eu,
treme o anjo decaído.
entre gritos e gemidos
vaga lento pelas ruas
arruinado pelo crack.

corre frágil o coração
no fio fácil da navalha.
cheira cola de sapato
com as unhas pintadas:
limparam seus bolsos.

de mãos dadas com outro,
segue o amor, fica o anjo.
rumo à trilha desconhecida
ele tenta voar, ir embora.
anjo dos olhos que dizem:

“mate-me por favor, agora”.

estrelas no sangue escorrem
pela glote do anjo sem vida.
a sigla do abandono é a bílis,
suas tripas fustigadas, horas.
anjo dos olhos que suplicam:

“mate-me por favor, agora”.

13.9.07

"O carro vermelho"

Todos pensavam se aquilo poderia ser apenas passageiro. Ninguém andava ou se mexia. Esperávamos alheios, cada um com seu tipo de loucura. As luzes dos carros iluminavam os mendigos, que se retorciam em caretas indesejáveis. Ela esperava o ônibus enrolando os cabelos crespos muito claros. Muito clara ela também, do queixo proeminente.
Vaga ascendência africana, em pecado era polonesa. Nos cabelos dava em nó um coque, os cabelos soltavam-se gentilmente. Melhor: soltavam-se doucement, como se diz em francês. Neste caso é mais apropriado o francês. Então ela repetia o processo.
Eu tomava um suco e pensava sobre o meu futuro imediato escorado no balcão de uma lanchonete barata onde homens obesos discutiam futebol.

Ela esperava o ônibus, olhava para trás, um coque nos cabelos, olhava para os lados, o coque se desmanchava.De repente se levantou, tênis all-star e calça roxa colada, parou no meio da rua, estabanada, olhou para trás – para mim? – olhou para os lados. Estaria perdida? Seria o destino, mesmo atrasado após tantos equívocos?
Ela parecia perdida, um lado e depois outro, eu estava perdido, ela precisava de ajuda, eu precisava de... Era bela, o destino, serenatas, poemas, quedas d’água...
Cheguei perto: os pés distantes do chão, a calma forjada dos já não mais tão jovens.
- Você precisa de alguma coisa?

Seus olhos brilhavam. Era bela, o destino, um lado e depois outro. Então dobrou a esquina um carro vermelho, abriu-se a porta do carro e aquele era um excelente perfume, que vinha de dentro do carro vermelho. E dentro dele havia também um homem. E dentro do homem um sorriso malicioso. Porque era bela, o destino, e ele também sabia, o homem do carro vermelho, que dobrou a esquina e depois a levou de lá, o queixo proeminente, a culpa polonesa, vagas tribos africanas, o suco no bagaço.

12.9.07

"carta ao além para Jack Kerouac"

Querido Jack,

Hoje, quando andava pela beira da praia e vi uma gaivota se afogar, quer dizer, vi a gaivota mergulhar na água com vigor, mas não vi a gaivota voltar, eu pensei: “essa gaivota é como Jack Kerouac”.

E agora sua voz se repete na minha cabeça, se repete dizendo que nada ou ninguém poderá dizer nada sobre os trapos da nossa velhice. Por que justo hoje eu teria pensado em ti, meu velho amigo, pão pobre amassado, minha impossibilidade?

Na verdade, somos todos em algum momento deuses, quero dizer, todos somos deuses plenos, mas vez em quando reparamos nisso, em lampejos, lá fora as pessoas nas ruas andando do mesmo jeito, os mesmos semblantes, com questões urgentes e assassinas, deslizando sobre a navalha de um planeta aos pigarros, todas pessoas particulares num saco de abandonos, Kerouac, porque na miséria reside a peculiaridade soberana.

Mas essa carta não é para te incomodar com os meus lamentos, se nem bem somos tão amigos ainda, se ambos somos tímidos, porque falamos demais. Mas seríamos parecidos? Veja você: de uma pedra para a outra, enlouquecendo em frente a uma vela, escrevendo de 7 a 8 horas por dia, rindo da própria loucura, ainda criança dizendo: “eles riem de mim porque eu quero ser escritor”.

Agora vejamos eu: vergonha acima de tudo, mentira; vergonha, mentira, hesitação. Trinta exemplares de um livro de contos inacabados, dos quais me resta um, e pelos quais pouco me dediquei. Um pai vivo maravilhoso e todas as portas fechadas, emperradas, precisando óleo. Todos os sorrisos dependurados, abismos monstruosos, mas uma cama confortável, sem sonhos, enlouquecer e bater em disparada a cada vez mais atônita, mas para que lugar?

Mas essa carta não é também uma procura, Kerouac, enquanto ouço sua voz suave ainda falando para mim sobre o mito de uma tarde onde as pessoas riam de verdade e tudo parecia ter entrado nos eixos novamente, quando você podia andar do balcão do bar até a mesa e ter a boa sensação de que te observavam com cuidado, mas, ah, Jack, meu caro, não era nada disso que eu precisava te dizer...

Queria te dizer coisas lindas, coisas sobre âncoras nos mares africanos e olhos brilhantes sujos de fuligem. Queria dizer agora assim da sua forma mas sem te imitar que a forma nada mais é que nossa alma e que portanto o pensamento como reflexo da alma – assim como o corpo – não deve ser interrompido jamais. Deve seguir o fluxo que você observou enquanto olhava a enchente que enregelou os corações de Lowell e arruinou os negócios de seu pai. Porque você me ensinou que o fluxo verdadeiro corre sempre na direção de uma queda vertiginosa inadmissível e atraente, e o que não foi sua vida, Jack Kerouac?

E quem afinal eram aqueles hippies vagabundos exigindo de você uma bandeira? O que significa um passo depois do outro, Kerouac?

Movia-se como um escritor se deve mover. E não adianta eu tentar dizer que jeito de se mover é esse. Você viveu como um escritor, lavando frangos em frigoríficos, lavando pratos em São Francisco, escotilhas em longitudes sórdidas. Mas acima de tudo você escreveu. Quantas vezes o vôo solo não te causou uma estranha sensação de solidão, como se houvesse apenas o sol e nós fôssemos também o sol, agora, indefinidamente, perto de sermos postos em chamas, perto de nos tornarmos outra vez o magma, a localidade perplexa.

Mas e quanto ao ritmo, Kerouac, o que dizer sobre o ritmo? Porque você foi meu trigo e a primeira música real que escutei por horas. E na verdade pouco sabia do que você estava falando. Porque você falava de tudo ao mesmo tempo, da beleza, da pobreza, da tristeza, da anarquia, da triste beleza da pobre anarquia, enfim, você não dizia nada, você despejava seu palavrório louco que era ao mesmo tempo todas as coisas juntas e eu de repente podia imaginar o cais de Tanger, ou ver um lagarto verde-limão no teto de uma casa sem teto. Era pura música, eu lia estalando os dedos, e pensava em casas de chá na Antuérpia, minas na Rússia, bares enfumaçados, a silhueta de Monk, assassinatos no Central Park.

Isso não se faz, Kerouac, assassinar assim a mente e as possibilidades de um garoto. Mas essa carta também não era uma cobrança...

O que foi feito dos teus ossos tão firmes, meu camarada? Quero saber o que você acharia que restou para nós, os alucinados noturnos, os que sonham e não tem álibis, os assustados serenos, o que você me diria sobre os que se matam por ódio, com frases de paz?

Jack Kerouac, meu primeiro autor lido, gostaria que, de onde e sob a forma que estiver, você não pensasse nunca que, mesmo sem talento, eu iria manchar a sua imagem com homenagens difamatórias. O que eu quero de ti é sério, e não cabe a mais ninguém, mesmo que permaneça em silêncio.

O que eu quero saber é o que fazer com o riso que dobrou a esquina, com os dentes sobressalentes, o que fazer com as esquinas de cada sorriso, o que fazer com uma pessoa que, sem lembrar, pensa em sorrisos sem faces? Mas existem coisas acontecendo. Existem coisas acontecendo e todo mundo fala e discute as coisas assim como discutirão tantas outras coisas diferentes, sempre a mesma discussão. Existem coisas acontecendo como o espancamento de uma babá por jovens idiotas com sorte. Existem coisas e eu preciso opinar sobre elas, escrever sobre elas, fazer alguma coisa sobre essas coisas, para me livrar delas. E não há como se livrar das coisas acontecendo porque elas estão acontecendo agora e em toda parte, como se fosse há milênios.

Como escapar dessa vez, meu jovem escritor irrequieto? Como poder dizer “caguei” quando nos tornamos a merda? Quando não mais Gás Light e leituras de poesia zen? O que fazer quando o crime se torna andar na rua despreocupado?

Existe, sim, algo para fazer. Mas pensando no que de fato eu queria te dizer, vejo como liberar as rédeas e deixar fluir acaba se tornando carne para ameba. Eu vejo seus olhos estranhamente em uma parede branca, eu ouço palmas e gargalhadas, escuto Stravinsky e John Coltrane conversando ao pé do seu ouvido, sinto os trovões e sei que eles não passam, no fim, de carne para ameba.

E agora eu finalmente me lembrei porque pensei em ti, meu velho desconhecido. Porque estou agora cometendo um erro, mais um erro de amor, mais um ato incompreendido, porque estou agora sozinho e pálido, não exatamente desnutrido, mas temente a deus, porque enfim pensei outra vez em deus, mas não por deus pensei em ti, pensei em ti porque estou numa casa que não é minha, alimentando um gato que não é meu – já que os gatos não são de ninguém – pedi cerveja no bar da esquina e na falta de carinho estou ouvindo Stravinsky, o que não deixa de ser uma boa pedida para quem não tem nada, e nem mesmo sabe conjugar o verbo ter. Mas acho que, assim como você um dia, estou mentindo porque, no fundo, pensei em ti porque lembrei de uma guria.

Mas por que, Jack? Por que você não parou e se tornou um velho gordo e faceiro? Porque sua questão era outra e veja só no que deu. Eu que te amo e te li um bocado não tenho bolas o suficiente para admitir o erro da paixão, não tenho crises tão graves a ponto de me manter sóbrio, mais um fígado de vidro flagelado e uma leve hipersensibilidade no cólon do intestino. Entendo tua lira e me arrepio, sei que é preciso navegar apesar de tudo, e sinto que estamos tão longe mas tão juntos, porque sei que a solidão tem olhos sorridentes, mas no fundo temo porque a mesma solidão, quando abre a boca, mostra seus dentes podres que, apesar do sorriso de olhos, não podemos simplesmente dizer “é a vida”. Você me ensinou que não se diz “é a vida”. Você procurou a lápide até encontrá-la. Você jogou a lápide fora. Ajude-me por deus a encontrá-la outra vez.
Leonardo Marona
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2007

9.9.07

“Um instante para Zé Ramalho”

roubando castanhas
de um pote vulgar
no que amanhecem
morangos na toalha
em dadaísmo tardio.

e o pano sujo
do fim da festa
lembra a frase
daquela música
e um pouco mais,
além e para o lado
misterioso do nosso
conhecimento. é tarde.

“baby, nossa relação
acaba assim, assim...
conte para as amigas”

aquelas simpáticas,
aquelas prestativas,
aquelas ordinárias...

“conte para as amigas
que tudo, tudo foi mal”

conte que no vão
dos novos sentimentos
pousa a escuridão
como enxame violento
sobre o couro das horas.

talvez que antes
de sepultada a beleza
estivesse num sorriso
rasgado de silêncios.

novas palavras,
como gárgulas,
salivando rosas.

"A velhice pede desculpas" (Cecília Meireles)

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

1958

24.8.07

"Carta" (Carlos Drummond de Andrade)

Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

"não vão"

não
tome tanto cuidado
com as coisas que passam.
não antecipe o cuidado
dos tombos logo a frente.
elas passarão, as coisas
– e mesmo sem cuidado.
nós ficaremos e as coisas
essas, sem nós, passarão.
até que nós passaremos
e veremos no final
das coisas as coisas
rindo do nosso esforço
vão.

"a cidade nova"

estou seco, amor, você me ouve?
estou triste, raso, dos pés calosos.
sei que não há tempo para perdão e flores,
mas um cacto, amor, não custa os olhos.

e haverá afinal algo que ainda pulse pálido
sem ar além do ar salino na terra frígida
abafada de vícios em retinas-cornucópias.
haverá sol no fundo de algo que ainda sinta
cotovelos secos que se esbarram em ruas novas,
onde há morte e fome, amor e mito, correria,
algo à procura da sombra de um coqueiro-memória,
existe sim qualquer coisa de gris por trás da esquina,
mais por dentro da pele, algo que talvez alcance,
se eu mergulhasse fundo e não sangrasse tanto
do sangue da vergonha do sangue ante-sofrido,
talvez do mergulho desavisado viesse o ovo
primordial de que tanto falam nossos queridos
caios carlos clarices césares concretos corvos
que por ti por nós o alimento escasso digerido
nas bocas cortadas de preâmbulos e escorbuto,
além de tudo o que das mãos me escorre frágil
e de mim não se fez, mas me segue nas ruas
em passadas largas de “prestes ao interrogatório”.

se fundo eu apenas mergulhasse – como descendo
pela espessa avenida e cruzando entroncamentos,
ultrapassando dunas que tanto mais eu subo descem
– nas feridas abertas como em córregos coléricos,
tracejando crises brandas em copos mal-lavados,
surpreso passo a passo, e a cada segundo,
pelo segundo surpreso de cada passo eu cavo
incríveis e silenciosas atrocidades do coração.

e que ainda há flores no deserto, eu lhe direi.
e colheremos nem que seja a terra íntima das unhas,
e carregaremos nossos corpos quem sabe até o mar,
onde as ondas não vacilam e a solidão abandona o corpo
comido da bicheira, talvez nesses momentos, talvez agora,
poderíamos dar-nos todos as mãos, enfim silenciosos,
e abandonar de vez os poemas que são pingos ralos
de nós quando já tarda o senso e se atrasam os sinos
- quando não há mais diferença entre o corpo e o chão.

Fortaleza, agosto de 2007.

"Bruma" (Moreira Campos)

Chovia.
A pequena estação.
Meu acanhamento adolescente
diante do mal que consumia meu pai.
Quase como se pedisse desculpas,
me escusasse diante dos olhos curiosos
que lhe surpreendiam e seguiam a ruína.
Os grandes ossos a furar-lhe o paletó de brim,
a devastação da face,
o brilho febril de suas órbitas profundas.
O acesso de tosse,
a sua ânsia,
o lenço,
possivelmente manchado de vermelho.
A lembrança sobretudo do seu pobre e inútil guarda-chuva.
Deixava-o ali para a tentativa impossível de uma cura na serra.
Talvez sua mão (sua descarnada mão)
tivesse pousado de leve sobre a minha cabeça.
Sua última imagem se dilui
nas gotas d'água que caíam lentas do beiral da estação
(da pequena estação).
Restou-me de tudo, e para sempre,
a mágoa daquele acanhamento adolescente,
do meu vexame,
do meu quase pedido de desculpas aos curiosos.

Quando chegam as primeiras águas,
fragmento-me no tempo,
e sou bruma.

6.8.07

"agosto"

em agosto
as escadas criam caninos,
os olhos verdes, abutres,
perdem esquinas e mapas.

em agosto
o suor piche das estátuas
é a poça punho do sangue
de quem grita e não existe.

em agosto
as asas punhais do suicídio
cavam um rosto na montanha
– o mar vomita poemas toscos.

em agosto
comparecemos ao velório da noite,
esperando a organização dos erros,
a testa fria da aprovação infame.

em agosto
românticos trazem livros em branco,
ninfetas recortam retratos desbotados,
o buraco se abre, o instante se cala.

"talvez seja o frio, Murilo Mendes"

você estava certo, Murilo Mendes:
o demônio tem mais poder que deus.

o demônio é o poder, a busca repleta,
o medo da imagem da mesma derrota.
o demônio é a morte usando smoking,
enquanto deus é a vida de calças curtas.

o demônio é a vida estabelecida a priori.
são as estátuas nas tabernas, muro-sorrisos.
são precipícios arrasados pela chuva fina.

o demônio é o excedente das palavras,
enquanto deus é a ausência de poder,
enquanto deus é a ausência de palavra.

deus é a glorificação da necessidade,
a incapacidade de estancar o sangue.
deus é a beleza da incapacidade de...

o demônio anda apressado pelas ruas,
o demônio vê as horas e nos dá de comer.
ele paga para, sujo, não se comprometer.

deus erra porque não acredita na maldade,
pior, duvida que é deus e, por humildade,
mata os que, por demônios em cativeiros,
vingam o filho doido que morreu na cruz.

"infância"

apesar de tudo, nada, criança adulta,
até os confins elásticos do relâmpago.
há ainda o lampejo de um trompete,
um terremoto no mover de uma batuta,
um sopro infinito que, calmo, desce
e toca a nuca fria das tuas lembranças.
não te aflige, adulta criança, calma.
corre e diz a todos que há esperança.
a dor mais funda ainda está distante,
o precipício é a cama em que te deitas.
enquanto a fatalidade está à espreita,
chora, criança adulta, te aconchega.
depois dorme enquanto fere o espinho
e deixa tudo o mais para outro dia.
enquanto houver amantes e mentiras,
cala a boca e geme de prazer, pureza.

"Andante Passionate"

Desde que nos conhecemos, comendo coelhos nanicos, ele sempre teve imensas dificuldades em regurgitar os pêlos. Precisava de um pouco de entorpecimento para amar. Beber, fumar, engolir pílulas. Qualquer coisa que lhe pudesse ocupar a parte que diz que estamos enganados e cegos. Que plagia chantagens. Nunca lhe foi natural isso de que sempre se fala, isso que insisto em admitir quando alguém toca no assunto, que é preciso, que é urgente, que é a vida que se esvazia senão, que sem não dá.

A paisagem era um coração enregelado e murcho, insistente. Eu entendia aquilo, por dentro e por fora, mas não poderia descrever jamais, não seria justo, seria traição a uma hipocondria fiel. A cidade pedia menos, bem menos, e ele queria muito, só não sabia como pedir, e isso me deixava nervosa, pensando: amigo, você não é poeta. E, afinal, nada ali me lembrava Mário de Andrade, como quando, nunca tendo estado ali, ele me falava em Mário de Andrade sempre que pensava na cidade. Eu sorria, sim, sorria, mesmo que nada me lembrasse Mário de Andrade ali. Pobre Mário, atrás de amor na Praça Roosevelt.

E no fundo estamos, os vivos, sempre atrás de amor. Não encontramos o amor de que precisamos, porque ele é do tamanho de tudo e somos nada, uma carne exposta mal-falada. E porque não achamos tudo, e somos nada, cheguei à inevitável conclusão de que inventávamos um amor incompleto para nos assegurar de um engano consentido. Esse das novelas dubladas fora de sincronia e dos laudos médicos. Mas eu, sendo nada, pelo menos agora sabia exatamente do que precisava. Eu precisava de tudo.

Sempre nos dávamos um longo abraço, sem jeito ele beijava os meus cabelos, tentando afastá-los desastradamente da orelha. Eu dava risadinhas e olhava para ele um pouco de lado, assim de longe, com as mãos na cintura, então mordia os lábios. Eu não tinha olhos de gato, mas pensava que tinha. E muitas vezes ele viu em mim olhos de gato, de tanto eu pensar, disso tenho certeza. Olhos de gato são olhos que fazem você nunca saber. Toda a cena era muito delicada, destoante da paisagem granulada, e nós sabíamos que ela nunca existiria fora dali. Isso o entristeceu de forma surpreendente. A mim me fez contar pequenas mentiras inofensivas.

Eu não havia feito as unhas e foi com vergonha, foi com vergonha e delicadeza que ele desviou os olhos. Sorriu e entrou tirando o casaco – sempre imitava algum personagem de algum filme quando tinha as mãos úmidas. Olhava para as paredes, tentando me fazer pensar que se interessaria por algum objeto da mobília.

Eu lhe disse que ele estava escrevendo feito mulherzinha. Ele ficou constrangido – sei que não posso com gim - mas sempre aqueles dentes separados e aquela espera silenciosa... Então sorriu, virou-se de lado e disse que era porque vinha lendo Clarice Lispector. Eu nunca consegui ler essa mulher. Sempre disse a ele que não podia com ela, que me fazia mal, bruxaria. Ele nunca entendeu aquilo mas, feito bobo, sorria porque lembrava da sua mãe. Talvez quisesse me avisar de algo.

Mas finjamos que tocava Chet Baker. Finjamos que era um encontro marcado depois de dez, quinze, quanto tempo? Movíamos os membros de forma semelhante, corações sincopados, os olhos inflamados procuravam adjetivos.

Resolvemos sair, dar uma volta, respirar o ar poluído. Eu estava gripada, mas disposta, não estava exatamente de bom-humor.

- Antes – eu disse – preciso vestir uma roupa.

Eu já estava perfeitamente arrumada: blusão de lã colorido e polainas. Sempre tive os pés grandes, as pernas finas e a bunda rígida. Ele pensava nisso quando eu fui até o banheiro, tenho certeza que pensava. Pensava com uma exatidão que o assustava e o deixava tenso. Que o fazia folhear livros sem ler e devolvê-los à estante.

Apareci de volta com uma calça jeans apertada e uma espécie de blusa de chita violeta. Dei a blusa na mão dele e perguntei como estava o cheiro.

- Um cheiro terrível – ele disse.

Então eu pedi que ele se virasse e vesti a blusa. Levantei os cabelos – eram os cabelos que mais lhe chamavam atenção em todas as mulheres que já havia conhecido, mas ele nunca me disse nada, e mesmo assim eu sabia. Certamente ele pensava como foi horrível quando eu cortei a franja, enquanto me dava o laço na blusa de chita. Eu me virei e perguntei: “que tal?” Ele disse que o cheiro estava realmente insuportável. Eu disse com certo orgulho que tinha usado a blusa por três dias seguidos. No final desisti da blusa, quando ele disse que não sairia comigo daquele jeito. Estávamos nos divertindo como crianças.

Depois então eu soltei os cabelos e apareci com um camisão de seda preto, desses de gola larga caindo no ombro, que tias velhas sedutoras usam nos velórios precipitados. Vestia também uma outra calça, de veludo: linda calça de veludo. Ele disse que eu estava parecendo a Patti Smith. Eu gostei.

Vesti sapatos de salto azuis, depois sapatos pretos, depois botas texanas, fiquei descalça – as unhas órfãs – então vesti um tênis. Ele esperava vendo fotos de pessoas desconhecidas que tentavam parecer pessoas familiares. Então eu tirei o tênis, tirei a calça de veludo, ele disse: “é linda a calça de veludo”.

Saí do banheiro com uma calça jeans escura, vesti de novo o tênis, usava agora uma camisa branca. Ele me disse para vestir outra vez a calça de veludo: linda calça de veludo.

Eu disse para ele não me pressionar. Abri o armário e ele viu um terno de lã xadrez bem surrado e disse: “você deveria ir com a calça de veludo preta e o terno xadrez, descalça”. Estalei a língua no céu da boca e ele se calou. Ríamos por dentro e por fora estávamos vazios. Vazios não, tímidos. Com quem mais eu poderia conversar sobre calças de veludo e ternos afinal? - eu pensava enquanto descíamos as escadas sem luz.

Subindo pela perimetral. Reparei que por todos os lados havia cemitérios. Cemitérios lotados, ele me disse, onde não cabia mais ninguém.

- E onde enterram os mortos? - eu perguntei.

- Na periferia - ele disse vagamente.

Quem mais eu poderia deixar falar por último assim, deliberadamente? – eu pensei, mas não disse mais nada sobre os cemitérios lotados.

Havia, contudo, uma fileira com bancas de flores para os mortos. Eu lhe contei ofegante que o meu sonho romântico seria que alguém me trouxesse de carro, parasse o carro em fila dupla e fosse a uma dessas floriculturas me comprar flores. Falei isso de olhos baixos, vendada. Andávamos como velhos que já viram demais, entregues, os braços dados como na festa junina, eu pensei. Mas não disse mais nada sobre as flores da morte, porque nós dois tínhamos ainda muito para procurar juntos. Sim, juntos! Então pela primeira vez na noite – quem será a vagabunda, meu deus, quem? – deixei de sorrir e seguimos em silêncio.