24.11.11

"Gift" (Leonard Cohen)





You tell me that silence
Is nearer to peace than poems
But if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
You would say
This is not silence
This is another poem

And you would hand it back to me

*** tradução Camila Moura ***

“Dom”

Você me diz que o silêncio
É mais próximo à paz que poemas
Mas se por meu dom
Eu trouxe silêncio a ti
(pois eu sei o silêncio)
Você diria
Isto não é silêncio
Isto é outro poema
E você o estenderia de volta a mim

22.11.11

"pelas manhãs, voltei a correr"

sabe, querida, pelas manhãs voltei a correr.
sinto de novo o amor a me catar pelos pés,
então outra vez eu me lanço e me distancio.
mas corro só um pouco, apenas o suficiente
para transpirar e saber o que de mim escorre
para longe do amor e, é claro, longe de mim.
mas volto sem amor e acendo então o cigarro,
pois no fundo quero a Síndrome de Estocolmo,
ser pego pelo algoz e viver em seus domínios.
outro dia quase fui atropelado por uma dessas
carroças velhas que falam e ela te viu do outro
lado da rua, com o beijo que te mandei no ar,
e então ela disse: “o amor é tal qual a porra”,
e pensei: o que ela fará quando eu for mesmo
atropelado e cair sem forças, atingido por ele
em cheio, te juro que pensei: “o que ela fará?”
virá até mim rodriguianamente, como quem
chora por tudo o que não fez em meus braços,
ou virá tal qual Iago, para dar a facada amiga?

19.11.11

"o talento não pode esperar"

para Julia Mendes

mate minha saudade, ou então mate-me.

apareça desleixada, de calção de futebol,
sorriso e óculos, um doce Rimbaud de rua,
e tire-me da fila do supermercado.

quebre a minha prateleira de livros,
rasgue as minhas páginas,
cuspa com delicadeza as minhas convicções.

quero teus cabelos espetados no meu queixo
e um beijo roubado na loja de conveniência.

quero a pergunta dos teus olhos verdes,
com ou sem vinho, ser teu Baudelaire.

mas venha logo: o talento não pode esperar.

15.11.11

"o axioma de baudelaire"

a bicha é presa
por andar entre bichas.

o dândi não o é
por andar entre putas.

DIÁRIO DE BORDO (Jorge Sousa Braga)

Mãe
hoje abriu-se uma janela pela primeira vez
mas tudo o que pudeste ver foi um pequeno lago de águas
adormecidas,
rodeado por margens de areia brilhante
um pequeno lago alimentado por inúmeros afluentes

Mãe
passou uma semana e o meu minúsculo coração agita já as águas desse
lago
Estou agarrado à margem vejo ao longe uma pequena bóia
mas o medo impede-me de me afastar

Mãe
porque é que andas tão enjoada?
Passas a vida a correr para o quarto de banho
Não toleras o cheiro a fritos nem o after-chave do pai
Espero que não enjoes do cheiro a jasmim

Por favor não me confundam com um girino
Embora não tenha nada contra as rãs
e muito menos contra as libélulas que povoam os outros lagos

Mãe
estou a ficar velho
disseram-me que já deixei de ser embrião
Mediram-me a translucência da nuca
e eu aproveitei para realizar algumas pequenas acrobacias

Hoje fiquei finalmente a saber que tinha ventrículos pulmões
estômago e uma série de coisas mais
incluindo uns grandes lábios que quase pareciam bolsas escrotais
E eu pensava que aquilo que tinha entre as pernas era uma rosa

Mãe
Porque é que meu coração bate tão acelerado?
Por mais que tente não consigo sincronizá-lo com o teu

Mãe
Só conheço a cor do crepúsculo
Estou morto por conhecer as outras cores do arco-íris

Mãe
Hoje surprendi-te quando te olhavas nua ao espelho
as mãos sobre o púbis segurando a barriga enorme

Mãe
Às vezes os dias são um pouco monótonos
de forma que entretive a fazer nós com o cordão umbilical

Mãe
Estás com umas olheiras enormes
Pelos vistos não te deixei dormir
Passei a noite toda a deambular pelos recantos mais sinuosos do teu
útero
a ver se descobria alguma água-marinha

Mãe
Podias ter colocado alguns peixinhos no líquido amniótico
Já agora um beta e alguns escalares
E porque não alguns nenúfares?

Mãe
Apetecia-me uma bebida diferente
que não a minha dose diária de urina

Mãe
Esta noite tive um pesadelo horrível
Sonhei que te tinham cortado os mamilos
com uma lâmina de bisturi

Mãe
Apetecia-me chorar
mas é difícil chorar assim debaixo de água

Mãe
O que está a acontecer?
O teu útero começou a contrair-se
e as contracções vão-se tornando cada vez mais freqüentes

Mãe
O que é que eu fiz
para me expulsares desta maneira?

Mãe
A distância entre mim e ti
não se mede em centímetros mas em lilases

12.11.11

"balada imperdoável"

somos o que podemos ser e não podemos
tempos fechaduras para a chave do medo
asfixiados os corações pelas artérias azuis
correntes literárias em bicicletas mujiques
a palavra prêmio virá do impossível passo
nosso pódio será idílio de anões circenses
taxistas falam nossa doença a vinte pratas
o torcicolo de deus inaugura a paz humana
as impossibilidades fazem crescer os cílios
o amanhã pertence a latas e trilhas extintas
pintaremos quadros com sorrisos de baleia
latem cães na madrugada de meus líquidos
escorrem édipos pelas ventosas do silêncio
tumores desabrocham no ouvido do suspiro
o livro da consciência gera o pelo da fome
roubaram da Terra a sua caixa de temperos
as têmporas embrulham o tifo da vontade
coleciono guimbas no chão de minh’alma.

escorre um western dos meus cotovelos
vejo passar a sorte com cachecol e bafo
sentidos enfraquecem a solução do ânus
penso em ti com tentáculos em febre alta
somos lilases dentro dos olhos da falácia
carinhos sempiternos são apenas difíceis
resta tempo para que não reste mais nada
as testas têm dobras de identidade usual
poemas alicates inflamam sisos de paixão
rodarei já que o amor usa bota ortopédica
há um mambo de trejeitos no osso da paz
com galocha espero a chuva da ocupação
é sair para falar, sentir o sorriso nas costas
a paciência caolha bebe uísque em Dublin
penetramos sem capa a chuva de pus ralo
um charme de esgoto faz a vênia ao cego
gangrenas de orquídeas onde ecoa o hino
ao sul de tua sorte há gânglios de veludo.

7.11.11

"flamenco"

com lâminas na tábua de precisão vermelha,
bocas do intestino apaixonam-se por Carolla.

quadros de Goya ferem minha região pélvica.

gotas de desaparecimento inundam de beleza
o que não está dentro ou fora, mas a caminho.

é rasgar-me na vergonha envelhecida do susto.

graves olheiras do meu destino chulo de ironia,
deixem que eu faça deste lindo pavor uns versos,
ou mesmo que eu morra de amor mais outra vez,
sabendo que não posso mais, outra vez eu morra.

coisa antiga de mim, com o seio perfurado por aço,
deixe que eu fique e durma ainda e mais um pouco,
até um pouco mais tarde seja a selvageria cintilante,
berço triste de artifícios que não me deixam morrer.