31.3.15

"tarde"


começo agora tarde demais,
mas o outono é a estação
que perfura a esperança
e ela tem a morte heroica
das belas damas dos filmes
judeus em cinemascope.

nos filmes em preto e branco,
os ternos me parecem todos
maiores que os atores, as mulheres
são lindas e lembram, em geral,
minha primeira madrasta.

mas é tarde demais sempre
quando começo, esgueirando-me
pelas paredes habitualíssimas
mas que assim reagem, rindo
aos estímulos, elos da cadência,
com generosa vulnerabilidade
e toda uma raspa de espírito,
por que não dizer, decadência
fiel ao sopro da nossa espécie.

por hoje desisto do mote justo,
do amor como nostalgia primata.
ergo-me na beira da uma espécie,
mas começo agora tarde demais.

"há uma baleia na sala"


temos processado
excesso de informação
e arquivos danificados
sobre o fato irrefutável
de que há uma baleia na sala
– perceba-se –
que no mais leve mover
de sua cauda,
um mundo novo desaba
e renasce,
porque a baleia é o inventor
de nós mamíferos
e se pudéssemos
jorrar água salgada
para cima não estaríamos
afogados – perceba-se –
há uma baleia que se afoga
pois é mamífero e veja
os pulmões cheios
de velhos testamentos
impostos a todos nós
– os mamíferos –
navegadores inaptos
entre cachalotes e jubartes.

algumas espécies escapam
ao catálogo e o bestiário
inclui novas entradas:
há marujos entre as bestas,
o mar como início, indício
de graves implicações;
o pulmão submerso
que não permite
a total aclimatação.

um dia sentirão falta
dessa vagarosidade,
dessa imensa carga
em seu balé artístico,
e agora cava os tacos
enquanto, abraçados,
ouvimos a promessa
da possível estiagem,
da estação prometida.

como prescindir
das brânquias?
nada há de conferir
maior consciência
pecilotérmica
ao sangue: o sol,
termostato primeiro
do que se deve fazer
com o fato irrefutável
de que há uma baleia
na sala que inunda.

23.3.15

"de máquinas e guerras"


o lar são as lascas do amor,
elas se desprendem dos tubos,
das argamassas e dos cupins
em seu bacanal de madeira,
elas despejam ou bloqueiam
nossa existência encharcada.

faz frio e nos ambientamos
forçosamente a uma condição
de cachecóis e névoa de veludo.      
na ignorância da nossa bondade
e da nossa tentativa, as coisas
começaram a desabar logo cedo.

vesti uma calça cheia de fungos
e fomos, entre os escombros,
providenciar uma continuação
para as montanhas tirolesas
de nossos profundos anseios.

agora compartilhamos as gotas
de uma tempestade ultrapassada.
agora é o fim da noite tenebrosa.

nos procuramos entre os lençóis
nas trincheiras da madrugada.
há entre nós dois montanhas
de penas leves que cheiram
a penas de animais sensíveis.

as noites são guerras silenciosas
com lembranças embaralhadas
e perigosas, você não percebe,
e recorro ao teu corpo para não
deixar soltar por demais o meu.

desejaria que esta manhã cinza
sinalizasse uma pausa em toda
sabedoria maquinal do homem.

as máquinas aqui estão lentas,
meu amor, porque as criamos
para que elas substituíssem
a tão ansiada rapidez em nós.

21.3.15

"a falta"


tenho letra da criança
que não posso mais e
se nascida em nórdico
relembrar de chicote,
seria a mais bela índia:
gola rolê, fundo branco.

não posso mais existir,
escrevo então o poema
que haverá impossível
em si, mas limpa a gana
da goma e não de mais,
porque caguei na calça
e com tesão amei o erro.

não te vejo no que posso,
não te vejo no que basta
a nossa ideia do alcance,
a tristeza da última foto.
quando éramos projeto
da metrópole cossaca.

conta porque hoje de pé
digo com olhos longos
que não podemos partir
o pão que comutamos
na falta do trigo essencial.

sinto que faltem os cílios
para tamanha inauguração.
falta tudo o que é preciso
agora que, objeto do sono,
engulo tudo como notícias.

20.3.15

Doutor Krauss ou o Caso do Chapéu





1.

Porto-me frente ao profissional, ao, digamos, senhor de cabeça branca, pés descalços como se fosse um ator elisabetano aposentado que aderiu ao ópio – aliás, seu consultório no topo da escadaria pública é como uma casa de ópio de uma little tóquio de qualquer destino imaginário – ele me recebe com uma daquelas camisas brancas gastas meio transparentes de tão gastas e com dois botões abertos e frouxa, como quem diz logo de cara sou um homem favorável aos prazeres, frente a ele eu me porto, se não descontraidamente, fartamente afirmativo, concordo com a cabeça com tudo o que ele diz meio como quem está sorrindo por dentro quando diz algo, afinal não é justo discordar das pessoas que sorriem por dentro sem precisar demonstrar tão descaradamente por fora como nós os normais, ou diria vocês, não mais eu, ou talvez sim, por que não eu também, mas não, ele não precisa mostrar os dentes e me pergunta o que eu sei sobre Wilhelm Reich e eu digo acanhadamente sei que era muito cultuado nos anos cinquenta, mas não exatamente pelas pessoas que representavam os padrões de comportamento daquela época, sei também que inventou uma espécie de caixa de orgasmo ou algo assim, e nesse momento eu pensei aqui também deve haver algum padrão, eu também não sou um padrão apenas, quando acordo e penso em não mais existir e sigo a vida numa composição desastrosa e contraditória, não o padrão que eu não posso ser e sou, mas os outros padrões que seriam hipóteses impossíveis, mas elas existem na caixa de abelhas reichianas – e nisso parecemos concordar, o doutor e eu – na impossibilidade de serem o que podemos delas observar, e eu finalmente deixei de concordar com a cabeça quando a questão tornou-se, digamos, econômica, eu me levantei e sentei novamente de modo um pouco brusco e perguntei onde, por acaso, havia deixado meu chapéu, ele apontou para um porta-chapéus no limiar da sala, acertamos um valor inaceitável como cavaleiros e eu vesti minhas botas de uso técnico usada pelos profissionais que trabalham nas ruas esburacadas e sempre em obras, num mundo em obras e com lindas placas indicando como as obras ficarão depois de prontas, e não podia fazer mais nada a não sei descer as escadas e arrumar uma pequena mochila, porque eu não iria a lugar nenhum, mas era preciso arrumar uma pequena mochila naquele momento, três camisas e algumas meias, duas bermudas com flores nos bolsos e talco para prática de esportes, isso tudo era inevitável e um trabalho mudo, então penso, a mochila nas costas, no maquinal das ruas, se, em todos esses anos, algum dia, numa rua, chegamos perto um do outro, eu, que descendo as escadas percebi que aquele não era meu chapéu, que eu nunca tive um chapéu na vida, mas muitas vezes, em situações específicas, havia usado chapéus de outras pessoas, nem todas próximas, inclusive com uma delas eu me envolvi numa troca de socos, apanhei nas costas, fiquei com o chapéu, venci a luta, mas nesse caso era já um sinal de que, possivelmente, mais cedo ou mais tarde, poderíamos, este que usa um chapéu que não é seu e desce as escadarias e aquele que nunca teve um chapéu e nunca usaria um chapéu porque este não mais se move, ele apenas leva o outro aos lugares e cada vez menos, e neste entroncamento eles diriam um ao outro desculpe se desapareço, tenho tido questões horizontais, apertaríamos as mãos um do outro e desse aperto tiraríamos conclusões precipitadas e as únicas honestas, eu oferecia a ele meu chapéu dizendo já foi de outra pessoa, hoje é meu, agora é seu, um chapéu estranho antigo e sem abas e, muitas vezes, enquanto topávamos nas ruas mas cada vez menos com outras pessoas e dizíamos eu não quero ouvir sempre o que você fala, se neste exato instante não estaríamos ainda na ilusão possível de que aquele encontro estaria tão próximo, à distância de um aceno no cemitério verde de uma pequena cidade como a dos livros germânicos que lemos ou do leste europeu sem entender que é impossível ler sobre qualquer outra coisa mais próxima dessa tensão de que a qualquer minuto pode acontecer, no meio da rua, pensando que nosso encontro seria finalmente a coisa mais pura que uniria o que corre parado ao que espera em movimento e rouba chapéus e os passa adiante, mas eram outras pessoas e isso nunca aconteceu, apenas as outras pessoas dizendo coisas que outras pessoas diriam para nós e hoje dizemos a nós mesmos como as outras pessoas que nos tornamos como é possível viver assim ou assado e existe uma forma de dar a volta no sistema e manteríamos, talvez próximos a uma fração de segundo, as bocas abertas e concordaríamos com a cabeça como quem só pode louvar tudo o que não é capaz de entender e tudo é prova de que não era o encontro afinal, eram outras pessoas, mas se fôssemos nós, um de chapéu que não é dele e outro que nunca usaria chapéu a não ser depois de uma briga, se fôssemos improvavelmente nós mesmo assim, em algum espaço urbano ou mesmo na floresta ou perto do mar e do sal, não saberíamos mesmo assim pronunciar o quão improvável seria este encontro e o quanto ele nos absorveria regurgitando os resultado de nossa trituração a outras especialidades inúteis, mas este dia não veio, ele não virá, ou quando vier não caberá a nós mais uma vez captar ou mesmo entender, ou entenderemos cada vez mais, demais, assim como se mata um passarinho estrangulado, ou nada disso e apenas o cansaço da sensação das etapas a serem cumpridas para de fato não consumar o ato.


2.

Entro e saio de consultórios, agora vou até mais um. A vida é bonita no caminho dos consultórios, vou com os bolsos cheios de dinheiro para Herr Doktor, sempre esperando pelo dia do encontro de uma separação escavada em mistérios, ungida pelo esgotamento de não ser alcançável mesmo sendo perseguida para dentro da proximidade constante deste encontro, que espero automaticamente quando pego o chapéu de alguém e visto e penso que não é meu chapéu, que não uso chapéus, apenas em algumas... preparaste, esperaste, dormiste o encontro com tua mão de misérias pródigas, como passaste a esperar e temer as manhãs, saindo e entrando de pequenas e agradáveis salas de consulta, em silêncio auscultando a vida de outras complicações e consultando-se de que nada poderia ser compreendido, com agradáveis e caríssimos homens do seu tempo, onde as coisas têm nome e os remédios impõem respeito, tabu, repetição, a síndrome do primeiro homem, espero algum movimento do nada que sempre se repete do contrário não seria nada para dentro, a explosão de uma bomba – agora sabes, não és o cento do teu próprio universo, agora esperas, esperas o além do outro sentido, a explosão do corpo que se move sem perdão pelas ruas, esperas além pelas ruas, esperas alguém neste encontro, esperas a ti, és imbecil, com o chapéu na mão. Enquanto não ages o centro se desloca novamente e já são necessárias novas armas e já não as tinhas as primeiras e as antecessoras destas. Adiante.


3.

Agora é preciso parar completamente por um instante ou dois e voltar. Eu havia sonhado. Livros na lixeira, urina, eu correndo nu para secar o livro, o único que se havia molhado, com o vento, a lixeira ao lado da privada, a privada aberta. Eu estava diante de uma escadaria com corrimões dourados, não havia o que fazer então apareceu este senhor que parecia um daqueles mágicos de festas infantis, descalço, com a camisa como a de um pintor impressionista levemente embriagado, e tive a impressão de que ele estava mesmo alto, então me sentei e disse a ele meu sonho em que eu acordava apertado e corria até o banheiro, onde urinava uma pilha de livros dentro de uma lixeira branca. Apenas um livro se molhava. Eu salvava este livro correndo nu com suas páginas espalhadas tentando alcançar o vento da noite pela janela. Eu acordo antes de salva-lo. Mas não é possível ainda começar. É preciso ainda de uma frase verdadeira, que venha de um lugar inaugural. Isso já não teremos, compreende? O professor move a cabeça para cima e para baixo com um vagar misterioso, denotando que está dando ao caso uma atenção cuidadosa. Enquanto estou na sua frente e observo o ambiente como uma casa de ópio em little toquio qualquer coisa, tenho subitamente uma estranha impressão. Ali estou eu, tentando com formas suaves e assertivas de espremer os olhos e concordar com os olhos espremidos, com a nítida vontade de conquistar o terapeuta para poder, logo em seguida, estar na condição de abrir mão dele, enquanto ele se comporta como se eu fosse alguém muito famoso que apreciasse o fato de ele me tratar como a qualquer um. Com a diferença de que eu era qualquer um portando-me como alguém muito famoso que aprecia quando lhe tratam de forma modesta e desinibida, discreta e amistosa. Não me ofereceu um chá, o que admiti como leve falha, mas me resignei quando, no meio de uma conversa que já se tornava desinteressante, mencionei onde mesmo deixei meu chapéu? Ergo-me da poltrona, e ele aponta um porta-chapéus bem ao lado da porta. Foi nesse momento que comecei a me aterrorizar com a ideia do encontro. Já não era mais eu saindo da sala de operações psíquicas, dirigindo-me ao limiar da porta. Era eu com um chapéu sem abas, um chapéu-coco sem abas e velho, que ajeitei na cabeça diante do espelho quando deixei o consultório do Doutor Krauss, era esse o nome dele, e desci as escadarias com corrimões dourados em busca do encontro anunciado por aquele repentino abandono de si. Mas não é nada disso. Ainda é preciso a frase sólida da verdade que não vem nunca mas está sempre por perto. O tabu. A repetição à distância. Desço correndo a escadaria. Há muito que fazer e nenhuma prova de que será possível. Seguir adiante, apenas isso. Mas é preciso também se iludir de que não é isso, por exemplo, fazendo alguma coisa bem ou fazendo alguém nascer para passar por problema semelhante. É o fim da escadaria, a manhã livre está de sobreaviso, finalmente a escravidão consentida. Ainda não seria capaz de trabalhar. Preciso encontra-lo novamente e dizer fique aqui com meu chapéu, até aqui era meu, era de outra pessoa, mas agora é seu.



15.3.15

"este homem"


olhem bem para este homem curvo,
percebam bem, é bem visível, não há
nele um gulag ou coito interrompido.

a lobotomia sem corte murcha leve,
mas por pouco há nervos em choque.

tudo se torna vagarosamente rudimentar,
perigoso com a roleta com areia nos pés.

os lindos sorrisos ou gestos espontâneos
derretem-se na fenda dos passos de cera.

porque o sobrevoo deste homem curvo,
agora mesclado e sem saída e louco,
causou o vácuo dos males do acúmulo,
de um tempo que de tão desconhecido
quando aprovado torna-se pai no bolso.

mal aqui me movo nas tais intenções
que me fariam preso de todo modo
e fariam mal aos melhores que eu.

arrastado, cigana, longe do jorro,
percebes que os sapatos de sangue,
os sapatos não são apenas versos.

são lindos versos, mas somos nós,
não são sapatos de algum carinho,
somos nós sem carinho e sapatos,
somos nós essa pétala em verme.

sonho que você cague por inteiro,
e sem papel ou ajuda magistral,
sejamos nossas próprias mãos.

"araruama"

para uma gatinha

terra de nós todos
com suas genitálias,
araras de testículos.
você é um testículo,
a pedra da acerola,
a dor nos ombros.
são vãs as florestas,
o olho, este é o olho,
precisa-se duma pata,
de algum sorriso vil,
dum buraco comum,
para valer a beleza.

7.3.15

"diz-me"


eu sou bom, pai, diz-me,
com teus olhos de cão,
diz-me que sou bom.
não suficientemente,
não com ligeireza,
não com astúcia,
não com pedras,
não na nossa língua,
não com piedade,
ou até com piedade,
mas diz-me sou bom.
ou tudo bem não digas
mas diz em teu sono,
sonhe comigo ainda,
sonhe comigo, pai.
você tem sonhado?
sonho que sou ator,
ensaio o sonho todo,
mas não apresento.
procuro sem olhar
a pele da vala comum.
relembro sem saber
o que nos fez assim.
não morrerei agora,
pai, diz-me isso então,
que não morrerei agora
e diz-me com força,
como se me aplicasses
mais uma de tuas lições.
sabes tanto, pai, e sei
que não sabes muito
do gatilho e da cabeça,
mas sabes o suficiente.
diz-me mais uma vez
que me sabes de mim,
que me gostas de mim
e, ainda mais ainda,
que precisas de mim.
não pelo erro feito,
mas pelo nome dado
da nossa pele comum.

"as baionetas"




hoje a tarde é tua
porque realizei uma obra,
um senhor muito digno
e com problemas familiares
veio aqui e deixou a casa
com fios desencapados
por todos os cantos dessa
que não é minha casa
mas um acúmulo de buracos
onde a tristeza recalcitra,
hoje a tarde é tua porque
se perde tão mais facilmente
o que se ama, hoje a tarde
é tua porque te afliges
com minha repentina
pequena habilidade,
hoje a tarde é tua porque
rasgamos as receitas
da nossa pobre imitação,
hoje a tarde é tua porque
eu não tenho a tarde,
e só pode ser teu
o que eu não tenho,
só pode ser teu
o que é convexo
em minha palheta cinza,
só é teu o que de tão
reconhecido preferes
talvez não instar
já que as palavras
não são muito fora
dos discursos feitos,
hoje sou teu e tu és meu aqui,
nesse miserável instante
enquanto escrevo nu
sobre a mesa que range
e que tu me deste e que fala
rangendo muito mais
do que pudemos um ao outro,
hoje sou teu porque és
minha base de equívoco,
hoje é teu porque
não é mais meu,
 hoje, não ontem, quando
as baionetas da memória
doutra ordem fizeram falar
o que ditadura nenhuma faz
em uníssono, hoje, não ontem,
a raiva pelo zelo amordaçado
com que calamos nossa gratuidade.

5.3.15

"mãos recentes"


eu tenho mãos recentes,
elas tremem pela manhã
então tomo os remédios
e elas param de tremer.

reclamam da morada,
eu as mantenho juntas
sobre o peito antigo,
porque o peito é velho.

as mãos recentes se riem
dos dentes que se batem
na usina dessa orquestra.

é uma orquestra de ossos
de uma sonata recente,
mas não existe aplauso,
as mãos recentes negam
meus apelos tão velhos,
reclamam da morada,
desprezam este velho
(sou eu o velho recente)
como filhos que suplicam
para que os pais deixem
seus corpos nas esquinas
antes de chegar ao colégio.

aqui trocamos os tapetes,
mas a sujeira baila livre
porque as mãos recentes,
elas preferem não fazer
o desempenho da poeira.

dizem poeira é coisa velha,
querem rasgar as costuras
mas digo não há costuras,
somos nós daqui em diante.

é bem difícil convencê-las.
isso é tudo que elas me dão.

4.3.15

"quanto trabalho"


de volta à trilha alquímica
da equanimidade possível,
desperto em mil bytes
os afetos rarefeitos.
os cigarros são amigos
indispostos ao banho
e cuja energia eu sugo
como um mau amigo,
o único,
até que, pós-químicos,
como sansões de alcatrão,
eles caiam exaustos
como quem diz
quanto trabalho
me dá este amigo.
outros amigos têm se escorado
e mantido o sorriso ereto
de coragem assustada,
não entram mais nos
ônibus carros elevadores
infantes espaçonaves,
porque já estamos fora
da estratosfera de nossos âmbitos.
a linda mulher arruma-se
com uma não menos linda
camisa de flores
sem roupa de baixo – está quente
e isso é bom porque
ao suor nos bigodes
compete a química
da equanimidade possível.
espero pelas manhãs que alguém,
amigo, me traga até aqui.
hoje foi essa linda mulher,
que agora se arruma e logo
trabalhará pela vida.
trabalharei eu também,
iremos todos sem capital
para investir em ironia.
acompanho de longe o repuxo
do meu espanto, anoiteço
com um livro agarrado à mão,
àquela mão do fim dos dias
que, como o cigarro,
também diz quanto trabalho
me dá este amigo.