27.9.05

"Meu amor mora dentro de uma bolsa"

Chuva forte, calça larga, tosse seca, catarro na palma, na alma sem guarda-chuva. É sempre assim quando você está desarranjado. O que fazer? A primeira entrada do metrô fechada com grades sólidas e enferrujadas como o sistema de classes. Uns vagabundos mordem pontas de cigarros e pigarreiam debaixo do toldo furado. Me indicam a porta certa, que calha também de ser a errada: por motivos de reforma. É sempre assim com informações espontâneas. Corro para a terceira entrada – o curativo no meio do peito arde com as pulsações do sangue escoado na vontade, meu coração, onde foi parar? – mas pingos são mais rápidos que pernas.

Já no subterrâneo, levo a mão ao peito, conversamos um pouco, massageio seu ego ferido. Pergunto o que há, ele diz que tum-tum, tum-tum, numa fala descompassada, de modo que não entendo suas necessidades. Desde guri é assim. O que há, velhinho? Não vai fraquejar agora, aqui no metrô... Isso não é um filme francês. Nenhuma mulher de lábios grossos, olhos amendoados, cachecol e pêlos debaixo dos braços está te esperando com vento no rosto e uma lágrima paralisada sob os cílios. Não é sua hora ainda, meu chapa. Você precisa gritar por mais uns anos. Não vá rouquejar logo agora. Mais 70 anos, como a quiromante leu nas linhas da minha mão, a esquerda, que é a mais torta. E um filho único ainda por cima, mais um, o que deixa de ser único. “E você quase morrerá aos 58... uma linha estranha... vejo aqui... quase-quase”, diz a moça careca com argolas prateadas de baiana nas orelhas, acariciando as próprias mãos, “mas ainda não... bem velhinho só, e muito só, cheio de dinheiro... menos o do ordenado, que vai te sair por 70 mangos, como os anos que ainda te faltam”.

Portanto, avanço, sentido Zona Norte, Cinelândia, ver um filme no cinema. O trem chega por trás dos pensamentos como uma boa surpresa. Não é o meu ainda. Um velho sem cabelo e com um dente aparece na minha frente e pergunta para onde vai o trem. Penso na resposta ideal, algo como “ele vai para nunca mais, amém”, mas digo “vai até Copacabana”. “Siqueira?”, ele pergunta. “Siqueira”, eu faço com a cabeça. Mas ele não entra.

De um cinema para outro. Será que então é isso? Ficar ao lado de centenas de pessoas vazias dividindo emoções aboletadas sobre sacos de pipoca, assobiando e aplaudindo na frente de uma tela enorme, pedindo silêncio mais alto do que o próprio incômodo... A quiromante diz que não. Que o filho será bonito e saudável. “Então será uma mulher bonita”, minhas sobrancelhas concluem. “Não sei dizer isso, mas serão três”, ela morde a bochecha. Um filho... Outro desgraçado, mais três mulheres... Que bela piada! A primeira, a grande paixão. O corte fundo na carne fibrosa. Mas, se não há cura, a ferida cicatriza uma hora, com o tumor dentro. A segunda, boa mulher. Verdadeira dama. “Dá pra saber se será loira? Gosto das Loiras” – a quiromante torce a cara, dobras na careca, quando lhe pergunto. A segunda me dará o filho. Casamento cristão, camas separadas, sexo quinzenal, duas tentativas de suicídio frustradas, uma artista sensível, temperamental. Quase morre no parto, como minha mãe, e morrerá antes de mim, como minha mãe. A terceira, pobrezinha, não terá tanta sorte. Vai viver bastante, como eu. Terei casos por fora e ela vai sofrer com os longos fiapos de cabelo presos nas minhas cuecas, cheia de uísque e pílulas à espera no portão. Outra coisa: depois de velho vou usar cuecas, pois quem é rico se protege para morrer feliz, sem saber que aquele que se protege demais consegue apenas uma morte cuidadosa. Desmoralizada nas rodas de chá, pois a essa altura já serei rico para tomar chá em rodas, tentará dar cabo da vida de forma besta, pulando na frente de uma moto. Uma costela lhe perfurará o pulmão e nunca mais vai falar direito. Pagarei a clínica para birutas até o fim dos seus dias, incluídos os meus. Na clínica tentará outra vez, com uma tesoura. “Um carma”, diz a quiromante, “todo mundo tem o seu”. Meu filho, rapaz solícito, tentará por ela uma terceira vez, não podendo ver o pai tão abatido, com veneno de formaldeído. Péssima escolha, deixará a pobre presa a uma cadeira de rodas com metade do rosto paralisado em tubos de sucção.

De fato, ninguém consegue esperar pelo amor. Eu mesmo, aqui no metrô, estação Largo do Machado, vejo o amor deslizar vagão adentro, eu sedento, ele lento, sem esperar por nada, pois é só quando aparece, como as tias velhas. Vagão quase vazio: o velho sem cabelo e com um dente que pegou o trem errado, eu completamente encharcado e uma guria magra, sem cor nem muita frente, cabelos pretos ralos e escorridos, olhos puxados mas ocidentais, digo, acidentais, melhor assim, bunda mirrada, pente na mão. Me apaixono por ela quando, de costas, se senta, pernas cruzadas, descruza as pernas para apanhar o lenço que escapa da bolsa para o chão. Nunca vi um lenço cair tão devagar, dançar o tango, penso ajeitando os cabelos molhados e enxugando o rosto com mangas de camisa.

Silêncio no vagão. Aquele lenço de seda, o amor que contêm as finas linhas trançadas... Vejo os pés da guria, livres de sapatos, unhas vermelhas descascadas, a do mindinho apenas um fiapo de cálcio, seus calcanhares dançam por baixo do assento.

São os calcanhares mais bonitos que já vi, penso. Ou talvez seja a primeira vez que vejo calcanhares. Isso o amor: que se vê pela primeira vez e para sempre.

Subimos as escadas para o inferno. Já ouço o estalido das cotias penteadas. Ironia subir para baixo. Primeiro eu. Ela atrás, cabeça baixa, parece preocupada, muitos cabelos presos no pente na frente dos olhos. Micose, anemia, alterações tireoideanas, menopausa – mas parece tão nova! –, quimioterapia?

Tenho duas opções: a escada rolante e os degraus. Penso assim: vou pelos degraus, se ela me vir e fizer o mesmo, então é ele mesmo, o amor. Do contrário iria pela escada rolante como todo mundo. Mas pelos degraus, me seguiria como quem diz: estou contigo, querido, para sempre e por onde for. Subo os degraus. Paro no meio. Olho para trás por baixo do fundilho das calças, quando finjo dobrar as bainhas por culpa da chuva lá fora. E lá vem ela, vagarosa como o lenço de seda, ainda com os olhos baixos, a certeza do amor sincero. Morde levemente os lábios – uma lágrima? Vasculha a bolsa. Está procurando meu amor lá dentro, só pode. Como é bom. Me sinto dormente. Na saída beijo a chuva e espero minha recompensa. Não há dúvidas. Passo por um sujeito encharcado de cabelo encaracolado que parece assistir à cena, emocionado. Tudo bem, camarada, entendo você, também estou emocionado. Pode aplaudir se quiser, não me incomodo, divido contigo meu triunfo.

Me viro. A guria entre os braços do sujeito, ambos chorando na chuva, como se doesse. De repente se separam. Vejo de longe. Não sei se choro ou se chuva. Discutem. A chuva escorre de mim para todos os esgotos vazantes da Praça Mahatma Gandhi. Plafp! A luz espanta gotículas dos cachos dele. Um tapa lhe estala a fronte. Vergonha, humilhação, blefe. Ele se vira e vai embora, ofendido, confuso, arrependido, tranqüilo. Ela fica na chuva com o pente na mão, olhos emprestados do satã. Rompimento traumático – ou o trauma somos nós? Eu sozinho na chuva. Sinto esgarçar minha cicatriz no peito. Com meu coração não converso mais. Que fuja enquanto é tempo. A chuva me encharca mas não sei de onde ela vem, mesmo olhando para cima, se sou eu ou se quem chora é o mundo. Pobre guria, nem tão feia, nem tão linda, que tem meu amor guardado na bolsa. Agora para sempre, até o próximo trem – sonho? Ela corre de volta para dentro da terra aos tropicões. Olho em torno e percebo pela primeira vez que pombos também voam em noites chuvosas. Acordo molhado e morto. 70 menos 1.

26.9.05

"Good Olb Buk Pills"


fact


careful poetry
and careful
people
last
only long
enough
to
die
safely.

***

a beginning

when women stop carrying
mirrors with them
everyplace they go
maybe then
they can talk to me
about
liberation.

***

dog

a single dog
walking alone on a hot sidewalk of
summer
appears to have the power
of ten thousand gods.
why is this?

***


i met a genius

I met a genius on the train
today
about 6 years old,
he sat beside me
and as the train
ran down along the coast
we came to the ocean
and then he looked at me
and said,
it's not pretty.
it was the first time I'd
realized
that.

***

oh, yes

there are worse things than
being alone
but it often takes decades
to realize this
and most often
when you do
it's too late
and there's nothing worse
than
too late.

24.9.05

"Nada muito romântico"


A melhor coisa de se mudar é acabar com as bebidas da casa, esvaziar as garrafas. Ana fazia isso e limpava a testa – um gole largo e uma mão na testa; gole, testa... As coisas começaram a se amontoar no meio do quarto-sala no Leblon. Era bom ver aquilo feito. Era ótimo deitar sobre o colchão sem cama, direto no chão, com aquelas bolotinhas maravilhosas de massagem japonesa espantando as dores das costas como moscas na carne podre.

Dependendo de como você deixa suas coisas, elas viram um monte de entulho. Daí bate uma certa vontade de se derreter por alguma coisa grande e dura. Ana esperava a vida bater na porta, olhando pela varanda, cuspindo no toldo encardido do vizinho, jogando baganas nos pombos que trepavam em cima do toldo. E eles trepavam com toda a classe, quietinhos, um em cima do outro, como duas pantufas de inverno. A vida não bateu na porta, mas alguma coisa o fez.

“Toc toc”. Toc toc é o caralho, toca a campainha, porra! Um roupão cor-de-vinho semi-aberto só porque era a bicha do andar de cima. Pelo toc toc dava pra saber que tinha saído uma briga com a outra bicha – o homem bicha da relação. A bicha entrou e ligou a tv. Ana queria romantismo, mas ganhou uma bicha olhando pra tv e reclamando de alguma ardência na rodela do cu, “olha aqui, ó...”, e o negócio do romantismo ficaria pra depois, bem depois. Eram três vinhos, dois pela metade e um de um gole só, já meio enferrujado e com uma colherinha no gargalo para sei lá o quê. A bicha era só rodelas de cu assadas e reclamações conjugais... “Ai, o Armando não pára em casa...” E Ana: “Você também não, porra”. E a bicha: “Mas eu só faço isso porque ele faz primeiro”. E Ana: “Se for assim, ninguém come mais ovos no café da manhã”. E a bicha: “?”.

Eram três vinhos, uma Viborowa pré-outubro-de-1917 na ilusão dos corpos e quem sabe algumas latinhas de cerveja. Dava pro gasto. Dava pra fazer o quarto-sala virar de cabeça pra baixo e dava pra dançar de cabeça pra baixo também, ou escorregar no chuveiro e morrer sentado. Mas não era nada muito romântico, uma bicha sentada na tua cama vendo tv, comendo meleca e roendo as unhas do pé. Era uma bicha careta. Nada de mulheres, JAMAIS! Nunca havia cheirado um bacalhau fresco. Nunca havia ficado com badalhoca presa por uma semana entre as unhas. Jamais tinha olhado um cuzinho liso. Poderia confundir uma vagina com um sovaco. Ou poderia confundir uma vagina com um pau encabulado. Esse tipo de bicha é tão perigoso quanto dois poetas recitando Maiakovski trancados contigo num elevador pra quatro pessoas.

Ana procurou se distrair olhando pra frente e não vendo nada além do reflexo dela e da bicha no vidro da janela. Pouco abaixo, a tv rodava e a bicha ia e vinha do banheiro, andando como um caubói em cima do cavalo, mas sem cavalo. A bicha bebia e falava e Ana bebia. Nos canais eram as mesmas porcarias pra ganhar dinheiro rápido. Risadas perecíveis e caras de nojo dão o maior IBOPE. E a maioria das pessoas “pra valer” calcula tudo em números de audiência. 20% no campo afetivo era algo que dava pra se levar adiante numa boa. Abaixo de 15 a corneta começava a apitar. A bicha tava com uns 13 pontos. Ana não conseguia raciocinar assim e continuava trocando os canais. Um pouco de tesão na bicha ela talvez tivesse, mas a humilhação ao pensar neste tesão acabava prevalecendo, e cansava um pouco. Não era nada mau, um cara encorpado, barba grossa, que poderia arranhar tuas costas enquanto te metesse por trás. E o melhor era pensar em tudo isso e poder ficar pelada na frente da bicha e a bicha na frente dela. O Roupão semi-aberto já estava três quartos aberto. Um peito mostrava a sua comissão de frente como algo vermelho-escuro, grosso, de uma polegada e com um furo no meio. Pra bicha era como se fosse o peito de um senhor gordo e safenado. Ana tinha vontade de abrir as pernas e a bicha permitiu que ela fizesse isso com os olhos. A bicha falava tão alto e gostava tanto do pó branco nas idéias que não dava pra se levar muito a sério. Ana só tinha amigos bichas e amigas fanchonas. Vivia do teatro. O meio teatral mexe demais com a libido das pessoas e quem olha de vez em quando em volta acaba enchendo o saco ou sentido um certo nojo ou sensação de queda do cavalo. Sabe, do tipo Paulo Autran num boquete pro assistente de iluminação antes de entrar numa cena de beijo na boca com a Tônia Carrero, numa adaptação de Samuel Beckett. Você tem que ter os colhões do tamanho de uma bergamota pra se manter intacto. Entrar na onda é para sempre.

Ana não conseguia entender como a bicha falava tanto e tão rápido. E adorava falar das mulheres, mulheres isso, mulheres aquilo, só que ela era como aqueles adolescentes de escolas particulares cheias de mato, filhos de pais ex-bichos-grilo que falam do Dostoievski como se fosse o Zé da esquina. Não valia a pena escutar nem muito menos respeitar alguém que gostava de falar de mulheres, mas não tava a fim de se queimar de vez em quando na caldeira delas. Ficar de castigo antes de cometer o crime, sabe esse negócio?

Tinha um canal de sexo 24 horas pay-per-view. Algo como “Jorrada nas estrelas”. A bicha ficou motivada porque quando você assume que não é uma pessoa classificada como uma pessoa dentro das estatísticas, então você pode despirocar de vez sem grandes problemas. Dr. Sporra lambia uma buceta de cabelos crespíssimos e lábios roxos – uma negra de cabelos alisados até a bunda e olhos com lente de contato azul – e enfiava uma garrafa de champanhe lá dentro. O champanhe estava fechado, graças a deus ou a qualquer outro desocupado. Dois rapazes com roupas exóticas e apertadas entraram e apresentaram seus documentos, fazendo a bicha lembrar do seu próprio e Ana olhar pro lado sem saber se gostava daquilo ou não. Assistir a um filme de sacanagem com uma bicha careta que nunca tinha comido uma mulher na vida, mas adorava falar mal delas, é uma cena engraçada de se imaginar. Ser parte da cena é outro negócio. Pau lá dentro, pau lá fora e a bicha ficou realmente animada. “Ai, Ana, você se incomoda se eu me tocar um pouquinho? Não, né? Tô tão carente... E, afinal, somos amigas, não somos?... Hein mulé?!”. E Ana: “...”

Um creme de massagem para os pés fez o trabalho na parte masculina da bicha. “Olha o tamanho daquele troço!”, ela dizia pra tv e continuava se massageando como se aquilo tudo fosse uma sessão de terapia em conjunto para ninfomaníacos não-ortodoxos. Ana bebia e sentia um pouco de cócegas lá embaixo. Se roçou um pouco na cama, depois foi pro banheiro e usou o chuveirinho do bidê durante uns cinco minutos. Nada muito romântico, uma bicha velha com um pau de 16 centímetros se roendo pelo Dr. Sporra na tua cama, do teu lado, vendo “Jorrada nas estrelas”, usando o teu creme de massagem para os pés no pau e falando mal das mulheres. O filme acabou e a bicha também acabou e seu telefone celular tocou enquanto ela ia se limpar. “Armando!? Tá, tô subindo... Olha, Ana, já vou, tá? Obrigado pelo ombro amigo.” E Ana: “Ombro amigo...”

“Tchau.” “Tchau.” “Smack.” “Smack.” Ana abriu, fechou a porta, voltou pra cama, com os dois bicos do peito em chamas e o tédio comendo pelas beiradas, desenlaçou o roupão, trocou o canal de sexo-pay-per-view por um Cary Grant, que arrasava mais uma loirinha deslumbrada com látex até o cérebro, e Ana se masturbou com uma garrafa vazia de vinho, delicadamente, languidamente, sofregamente, pensando em garanhões alados e cus assados. O lado bom de se mudar...

22.9.05

“in a middle of a room” (e.e. cummings)

in a middle of a room
stands a suicide
sniffing a Paper rose
smiling to a self

"somewhere it is Spring and sometimes
people are in real:imagine
somewhere real flowers,but
I can't imagine real flowers for if I

could,they would somehow
not Be real"
(so he smiles
smiling)"but I will not

everywhere be real to
you in a moment"
The is blond
with small hands

"& everything is easier
than I had guessed everything would
be;even remembering the way who
looked at whom first,anyhow dancing"

(a moon swims out of a cloud
a clock strikes midnight
a finger pulls a trigger
a bird flies into a mirror)

### tradução ###

“no meio de um quarto”

no meio de um quarto
está um suicídio
cheirando um Papel rosa
sorrindo para um ego

“em algum lugar é Primavera e às vezes
as pessoas são reais:imagine
em algum lugar flores reais,mas
não posso imaginar flores reais pois se eu

pudesse, elas de algum jeito
não Seriam reais”
(então ele sorri
sorrindo)“mas eu não

serei todo lugar real para
você num instante”
O é loiro
com mãos pequenas

“& tudo é mais fácil
do que eu achava que tudo poderia
ser;até lembrar o jeito que quem
olhou para quem primeiro,de qualquer jeito dançando”

(uma lua nada para fora de uma nuvem
um relógio bate a meia-noite
um dedo puxa um gatilho
um pássaro voa para dentro de um espelho)

20.9.05

Um homem vê uma mulher dormindo ou o azul é apenas uma ilusão noturna

Ela começa quente, redonda, crepitante, fetal, depois não que chegue e se esfriar, apenas estremece, como uma fogueira que vacila no meio da noite. Depois vai ficando incandescente outra vez, mas fria como um cubo de gelo, de uma cor azul amoral que eu procuro até hoje no verso das fotos antigas. Então ela vai se tornando pálida, cristalina, a mais cintilante sensação de ternura teria essa cor, e se agiganta sobre mim, se abaloa, então se encolhe como uma criatura renegada abandonada com fome num sótão, as migalhas de pão num redemoinho causado pelo vento que bate as janelas, os braços de cores vivas e distantes, os traços dementes de pavor do futuro próximo, inevitável como o respiro que antecede o afogamento, o núcleo sôfrego com olhos esticados, perplexos com lacunas de vida, mas intocáveis pela palidez da delicadeza do movimento ondulante, acelerado e completamente indiferente do corpo. Não é de propósito que ela se faz enxergar dessa forma. É por pura indiferença; não se dá pela minha presença. De tão pálida, pega fogo, num fogo choro de coro cristão, um fogaréu azul gelado de um universo engolido pelo buraco na alma das essências primárias. Finalmente, brotando do instante comum ao primeiro nascimento fecundo, o vermelho do seu fogo se esparrama e regressa, tomado de fúria e faíscas, primeiro azuis, depois encarnadas como o sangue que delira o touro na capa do matador, depois laranjas como o grito da primavera, então amarelas como o mofo atrás dos armários: são seus cabelos que me lembram as cores vivas e mortas, sempre depois que variamos durante toda noite entre o céu e o inferno para, no fim, ambos exaustos, ela se entregar ao sono, o enigma da vida, deixando livres seus cabelos para mim, sob a luz da lua, apenas chumbo, nua, miúda, púrpura como a capa do ilusionista do meu último sonho no qual a última caravana atravessava a noite do deserto e todos estavam sedentos e os cavalos arriavam as patas na areia com as línguas estrebuchadas e o ilusionista tirava sua cartola, se agachava com seu lampião, tomava um punhado de areia e comia como se fosse pão, e dizia em seguida ao resto da caravana que tudo aquilo não era um deserto e que não eram montanhas aquilo que estavam subindo e que no final também não era o mar que iriam encontrar; era tudo apenas ilusão, dizia o homem da capa púrpura, tão púrpura quanto as linhas adormecidas do dorso dela virado para o chumbo da lua, e a caravana seguia em frente e do outro lado da montanha encontrava o mar, azul como aquele azul que em vão eu procurava no verso das fotos antigas, e de fato, como dizia o ilusionista de capa púrpura da cor do sono lunar, apenas uma ilusão, o azul é apenas uma ilusão noturna, mas nunca mais fria, no sonho já distante, embaçado, embaralhado com minhas próprias pálpebras, perdendo-se no vendaval dos trigueiros do passado intocável como ela, virada de lado como uma pequena cordilheira de neve e larva, cabelos da cor do ferrugem da primeira oxidação, lambendo meus sonhos enquanto a observo deitada de bruços na cama.

18.9.05

"Conhaque, Bukowski e a Mulher-Lobinho"

1. Morte e Danton

No final da peça Ele não sabia quem era Danton. Saiu um tanto confuso, pensando: “uma hora Danton é covarde... Outra hora é um bêbado... Depois vira uma puta! Outras três putas: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Então, de repente, Danton é um sujeito que diz: ‘hoje estive sentado na pedra do Arpoador fumando um cigarro. Fiquei ali olhando o mar... Pensei que eu não era nem uma gota daquele mar... E quantas gotas tem o mar! E eu me acho tão importante, tão importante... vocês não imaginam o quanto... Nossa que papo ridículo’”. E esse foi o fim da morte de Danton. O começo do movimento da classe artística pelas veias venenosas do teatro do Sesc, Copacabana. Mulheres com muita maquiagem e pouca cor, mais a intensidade dos confusos e nenhum parafuso no lugar certo, o que, parece, sempre serviu às artes e aos psiquiatras para passarem as férias em Positano, bebendo bebidas fumacentas e ouvindo calipso. Mulheres para você se casar com elas e morrer dignamente, diariamente: embriagado, sentado, tendo tido (ou sonhado com) um ataque cardíaco na sua sacada de frente pro mar – numa mão um bilhete de despedida, “simplesmente não agüentei mais... boa sorte” – no apartamento, centro da sala, mais nenhum móvel, apenas uma muda de roupa – na outra mão uma rosa partida – sangue de festim que escorre pelo tapete de corda trançada e isso era tudo o que Ele conseguia pensar olhando aqueles rostos sorridentes que falavam sem parar de inventar emoções para um domingo meio sábado, enquanto subia as escadas do subsolo para o submundo, que apesar de sub, está no nível do mar.

2. Noite de sexta-feira

A rua parecia um cenário mal desmontado. As pessoas não andavam, pareciam escorregar pelas ruas, se escondiam de alguma coisa. Havia homens vendendo lingüiças fritas e corações de galinha feitos na brasa de uma lata de óleo. Não havia sorrisos nos rostos de mais ninguém. Ele e Ela saíram do teatro para a rua e viram que o mundo de verdade era preto e branco, não menos bonito por isso, nem menos complexo, apenas tinha menos cores, as outras fomos nós que inventamos e parece que até hoje insistimos na mesma invenção. Sentaram-se para comer num restaurante mexicano, com uma “comida leve”, segundo Ela, o que a Ele pareceu uma contradição em termos, e ao seu estômago mais ainda. Ela pediu tacos com carne de sol e tomates picados embebidos em azeite. Ele pediu uma cerveja já que uma salvação seria cara demais. Uma amiga estava numa mesa ao lado e acabaram se juntando, os três. A amiga não tinha nada dentro dos olhos. Nem tristeza nem alegria. Nem uma pista. Seus ombros formavam um cabide torto numa armação de metal. Bufava sem parar e acendia um cigarro no outro. Um sujeito tocava Djavan num violão e uma platéia apática devorava seus tacos e suas vidas enquanto ria e olhava para baixo, ou para muitos lugares sem enxergar nenhum.

- Parece que arrancaram o saco desse cara! – disse Ele irritado, batendo a lata de cerveja na mesa e esticando o pescoço, referindo-se ao sujeito que tocava Djavan.

- Estou exausta... Vou pra casa – emendou a amiga entediada.

- Não quer ir dançar com a gente? – disse Ela. – A gente vai no Bukowski.

- O que é isso – disse a amiga como se de fato não fizesse questão nenhuma de saber.

- Uma bodega que toca rock antigo – disse Ela.

Ele ficou pensando como era triste um sujeito que, depois de escrever alguns livros e morrer de leucemia, se torna símbolo de tudo aquilo que mais desprezou em vida.

- Não gosto de bodegas – disse a amiga.

- Você precisa de uma pica, eu acho – disse Ele batendo a lata na mesa ao som de “Flor de Liz”.

- E você precisa de uns tapas – disse a amiga jogando uns trocados na mesa e erguendo-se bruscamente, de modo que tropeçou e caiu de joelhos.

Ela tentou levantá-la mas levou um tapa na cara. “Ei!”, gritou, “o que eu te fiz, cacete?!”. A amiga apenas olhou para os lados, ficou parada um tempo, depois saiu assustada, na mesma hora em que o sujeito que tocava Djavan fez uma pausa para um gargarejo. Ele riu e pagou o que faltava da conta. “Vamos fazer uma pequena pausa agora”, disse o sujeito do violão.

3. Conhaque


Ela tinha na bolsa um cigarro que ainda era ilegal, apesar de todo mundo usar e movimentar a maior parte da economia mundial, que também é ilegal assim como o cigarro, apesar de todo mundo usar também para movimentar suas contas poderosas nas Bahamas e suas instituições filantrópicas no Nepal, que também são ilegais, e poderíamos ficar a noite toda nessa lengalenga até chegar a conclusão de que o ser humano era ilegal e, por conseqüência, também eram as suas leis. Eles decidiram que fumariam metade do cigarro no caminho e outra metade lá dentro do bar. Era uma e meia da manhã. Os olhos não permitiam que o mundo fosse bonito. Caixas empilhadas nas ruas. Mendigos se coçando debaixo de trapos. Grunhidos dos infernos vindo dos cantos mais escuros. O barulho distante mas constante dos ratos mastigando as sobras do mundo. Sacos de lixo virados. Gatos que jamais perdem a classe, mesmo famintos. Fiapos de macarrão. Líquidos escuros, pastosos, pessoas espalhadas pelo chão cheirando cola. Ninguém tem nada a oferecer. Ninguém se olha. Olham por cima dos ombros, para cima, todos precisam de tempo para amar. O problema é que o tempo exige amor demais para que você aprecie seu efeito físico. Pararam na porta de um bar chamado “Bar Virgem Santa”. “Uma virgem que fode os pecadores”, Ele pensou, mas disse “que merda, está fechado”. De fato, a grade estava puxada até em cima. Sobravam para os olhos apenas um espaço aberto de luz, por onde via-se um grande tapete de carne arenosa, pendurado por dois ganchos no teto, e uma fileira de garrafas de vidro com um líquido transparente, em cujo rótulo lia-se “licor de alcaçuz”, em cima de uma prateleira remendada com esparadrapos. Vozes falavam em algum dialeto incompreensível dentro do bar. Ela se aproximou da grade e deu três batidinhas no aço com a mão. As vozes pararam lá dentro.

- Vocês ainda podem vender um conhaque? – disse Ela

- Quem é? – perguntou uma voz.

- Marisa – disse Ela. – Duas doses de Domecq, por favor – e estendeu uma nota de cinco reais na ponta dos pés.

- É três e cinqüenta a dose, Danuza – retorquiu a voz de dentro do bar. Risadinhas.

Ele entregou mais dois reais a Ela, que novamente se esticou para alcançar o espaço aberto da grade, dizendo: “Marisa...”. Duas mãos passaram dois copos de plástico cheios até a metade com um líquido cor de ferrugem, que também calhava ter gosto de ferrugem envelhecida em álcool de cozinha. Eles brindaram antes de beber, mas isso não melhorou o gosto do líquido. Na frente do Bar Bukowski, um homem muito magro, já bem calvo, muito curvado e amarelo, entrava no seu jipe Pajero acompanhado de uma loira imensa, com uns três membros originais dentro do corpo. “Pajero é carro de quem tem pau pequeno”, ele falou e deu um gole, no que precisou enrugar o cenho.

4. Intimidade

Ele falava para Ela sobre a amiga entediada que tinha se sentado com eles no mexicano.

- Isso é muito estranho. Num dia você chupa o cu da mulher. No outro ela te trata cheia de formalidade... O que é a intimidade?

- É isso...

- Isso o quê?

- Você dizer esses absurdos e eu ter que ouvir. Isso é intimidade.

Brindaram. Como os copos eram de plástico, fizeram um barulho meio plect quando se chocaram e um deles rachou.

5. Crianças

Na porta do bar estavam dois seguranças, ambos massas exageradas e quadradas, um de bigode e sem cabelo, outro de cabelo e sem bigode, os dois com os pés escorados, cada um de um lado, com as mãos enfiadas nos bolsos. Ele e Ela observavam um pouco afastados, ouvindo as músicas que tocavam lá dentro, nada muito prometedor: Franz Ferdinand, Blur, Cure, Nine Inch Nails, em suma, nada que um velho safado fosse gostar de ouvir. Ele olhou para Ela.

- Essa música é uma merda... Esse DJ é uma merda. Acho que vou me apresentar ao dono quando entrarmos... Posso escolher músicas melhor do que esse cara.

Mais um brutamontes saiu pela porta de entrada e se juntou aos outros dois. Este, um sujeito de camisa preta muito apertada, do tipo que de longe parece forte, mas é pura banha. Um taxista estacionou o carro na frente da entrada e saiu do carro, se juntando aos três. Começou então uma conversa amigável entre os quatro, quando a massa de bigode perguntou ao gordo que pode parecer forte à certa distância se ele já não tinha usado essa mesma camisa preta na noite anterior. O gordo hesitou e os outros imediatamente começam a rir e se bater uns nos peitos dos outros. As risadas eram risadas infantis, do tipo que você não imagina um senhor de bigode dando. Em sua defesa, rindo, o gordo deu um tremendo tapa na nuca da massa de bigode e este olhou para ele com a língua entre os dentes, o segurou pelas duas pernas e os dois foram ao chão, rindo muito, mas vermelhos de trago e de tapa. Os outros dois ficaram assobiando e batendo palmas, enquanto os amigos descarregavam sua energia rolando no chão sujo às 2 da madrugada. Ela olhou para Ele.

- Parecem duas crianças.

- Coloque 4 homens juntos e você tem uma guerra ou muitas risadas – disse Ele. – Coloque 4 idiotas juntos e você tem um jardim de infância ou um manicômio.

6. Mentira

Logo na entrada, Ele e Ela viram que o bar estava vazio e isso sim, parecia bem real. Eles subiram então ao segundo piso e encontraram muitas mesas e cadeiras vazias e uma menina de cabelo laranja sentada com a cara mergulhada numa poça de saliva. No balcão estavam o dono do estabelecimento, um garotão loiro com cara de assustado e as sobrancelhas muito juntas, olhos levemente envesgados, mais a mulher do garotão, uns dez anos mais velha que ele, loira também, sem muito tempero mas com muito decote, os peitos murchos mas uns belos olhos, e com os cabelos engordurados puxados para trás, além de um sujeito já bastante embriagado que se apoiava no balcão com as duas mãos e enfiava a cabeça quase na cara dos seus interlocutores para lhes falar algo sobre a empresa de desodorizadores da qual era sócio-proprietário, e que vinha crescendo no mercado. O sujeito gritava sem necessidade e falava cuspindo. O garotão raramente dizia palavra e, quando dizia, dizia olhando para cima, como um suspiro. A mulher do garotão era com quem um cliente deveria falar e era ela quem conversava sobre desodorizadores com o bêbado. O bêbado tinha um aerosol na mão.

- Bom Ar é concorrente! – gritava. – Vocês tem que usar o Gleid, que é onde trabalho... Esse sim, neutraliza primeiro, depois dá o toque de lavanda, baunilha, flores do campo... Sabe, estamos crescendo no mercado...

Ele pegou o cardápio. Nada era muito barato. Nada como Ele imaginava que seria na Los Angeles dos anos 50. No final do cardápio aparecia escrito: “Para os Bukowskianos”. Ele deu uma checada: “vodca, rum, tequila, conhaque, uísque, vinho e suco de tomate”. Ela chegou perto Dele.

- Nossa! Alguém bebe isso e consegue fica em pé depois?

- Não. É mentira...

7. Coisa Rara

Voltaram ao andar de baixo. Ele se dirigiu ao balcão e Ela foi dançar. No balcão estava um sujeito que sempre esteve ali no balcão. Um sujeito muito forte da cintura para cima, mas com pernas de vareta, o que mostra que na verdade ele não é forte, mas sim um balão moldado. Você mede a força de um homem pelo tamanho do seu antebraço, pela circunferência do seu pescoço e, claro, olhando para suas pernas e para seus olhos. Os muito fortes, normalmente, têm pernas finas e olhos pequenos, porque usam esteróides mas trabalham apenas braços, costas e peitoral, abandonando as pernas às portas da verdade. Era o caso do grandalhão do balcão. No entanto, ele usava uma camisa clara muito colada ao corpo, que dava asfixia só de olhar, além dos cabelos empapados em gel, num topete infame. Em frente a ele havia um casal, no lado externo do balcão. Um outro sujeito do mesmo feitio, bem forte nos braços, ombros e peitoral, portanto, com uma camisa muito apertada, mas mirrado da cintura para baixo, com gel nos cabelos para cima. O que diferenciava o segundo forte do primeiro forte eram apenas duas enormes costeletas. A mulher ao lado do de costeletas era muito bonita, cheirosa, cabelos alisados, brilhosa, sobrancelhas milimétricas, e não havia nada nela que pudesse despertar qualquer interesse, pois não havia nada nela que você já não tivesse se cansado de ver nas revistas. Ainda por cima mascava chiclete de boca aberta e só olhava para cima e para o forte número 1, do lado de dentro do balcão. Ele achou a cena muito estranha: a mulher olhava pro de camisa apertada, dentro do balcão, estando acompanhada pelo de costeletas, do lado de fora, enquanto que o de costeletas também olhava pro de camisa apertada no lado de dentro do balcão, falando um com o outro com muita intimidade. Ele reparou que o do lado de dentro alisava com os dedos discretamente o braço do sujeito acompanhado pela mulher perfeita e sem graça. A mulher tentava seduzir o do lado de dentro, porque isso era mais arriscado, afinal não era o seu homem, mas este, por sua vez, não dava a menor trela. Então ela tentava seduzir seu próprio homem, o que não tinha lá muita graça, mas era mais certo. Entretanto, ele também não dava a menor trela e continuava conversando e sendo alisado pelo de camisa apertada por detrás do balcão. O mais ridículo era que os dois faziam isso tudo de maneira muito séria e máscula, num estilo YMCA defasado, ou seja, eram bibas mas não podiam afrescalhar. Ele concluiu que era raro dois homens conseguirem enganar uma mulher daquela maneira descarada, mas depois viu que aquela não era uma mulher em que se pudesse basear para nada.

8. Mulher-Lobinho

No meio da noite, depois de algumas caipirinhas quentes, feitas por um sujeito que já tinha saído no tapa com dois clientes naquela noite, Ele se perdeu Dela e ficou encostado na parede, flertando. A clientela era composta basicamente por bêbados retirados dos contos do escritor que dava nome ao bar, bichas enrustidas, sapatas assumidas, e era basicamente isso mesmo. O bar já tinha enchido e rapidamente, de modo que não demorou muito para que uma menina se encostasse ao seu lado, com uma cerveja na mão. Ele a olhou rapidamente, mas naquela escuridão qualquer olhar seria um erro analítico. Ficaram assim, virados para frente, mamando suas latas de cerveja, encostados na parede. Uma hora a lata Dele terminou, então Ele a jogou no chão e a amassou com a sola do pé. A menina prontamente lhe entregou sua lata, sem dizer nada, e continuou olhando para frente como um boneco de marionete japonês. Ele deu um grande gole na cerveja e se virou para ela, que não olhou para Ele. Tinha os cabelos escuros e lambidos, usava um vestido meio fora de estação e um chapeuzinho desses de festa de aniversário para crianças, feito de cartolina, com uma língua de sogra na boca. Parecia resignada ou completamente biruta, ou os dois, combinação bastante comum. Ele achava que beberia a lata inteira sem que ela desse por nada quando, de repente, ela o pegou pela mão e o arrastou até o balcão do bar. Chegando ali, se virou para Ele e lhe deu um beijo na boca, muito melado e com cheiro de vômito velho. Não se olharam imediatamente depois.

- É seu aniversário – Ele perguntou depois de um minuto ou dois sem falarem nada.

- Um amigo...

- E então, você vai fazer alguma coisa daqui? Não parece que tá se divertindo muito...

- Na verdade não vim pelo aniversário. Vim porque queria comer alguém.

Ele sorriu. A menina parecia decidida, apesar de indisposta. Então viu através da luz de néon do balcão do bar que ela tinha as gengivas muito grossas, lhe cobrindo os dentes. Servia de qualquer forma.

- Serve eu? – disse Ele.

- Claro – disse ela. E foram para casa dele.

Quando deitaram na cama, ela parecia desacordada. Ele já tinha achado estranho seu comportamento no caminho, parando de posto de gasolina em posto de gasolina “para fazer pipi” e voltando com uma nova garrafa de cerveja. Fumava demais. Viu que era gorda como um pernil. Não havia mais o que fazer a não ser continuar em frente e terminar o mais rápido possível, de preferência sem escoriações. Mas quando Ele viu toda aquela carne esparramada na sua cama, com os olhos fechados e um sorriso suicida, pensou “onde diabos fui me meter”, então viu que era seu próprio quarto, apesar de não reconhecê-lo imediatamente. As paredes dançavam. Ou talvez fosse sua cabeça. A menina não cheirava nada bem, reparou. Nem sabia muito bem o que fazer. Apenas permanecia esparramada com os olhos fechados e aquele barrigão fofo para cima. Arrancou o vestido da moça com certa violência, para ver se isso estimulava nela qualquer reação voluntária. Nada aconteceu. Passou então à calcinha, uma rede de pescar caranguejos. Mãe de todos os deuses, o cheiro que sentiu! Sempre pensando que não havia o que fazer a não ser seguir em frente, arriou a calcinha, prendeu a respiração e deu de cara com um absorvente coagulado de sangue. Foi quando a menina deu por si e puxou com muita força a calcinha de volta até a cintura.

- Você devia ter me dito – Ele disse. – Mas não tem problema.

- EU é que sei se tem ou não tem problema – ela disse num tom professoral, ou de uma puta cara.

- Tudo bem... Deixa eu ver... Você joga gamão?

Foi então que ela começou a chorar e a chutar a cama, com as perninhas roliças soltas no ar. Ele a segurou com força e ela parou, mas seus olhos continuaram como se fossem independentes do resto do corpo.

- Ei, era uma brincadeira... Se acalma aí!

Imediatamente ela ficou carinhosa, mas de forma pouco convencional, de modo que se grudou ao corpo Dele, lhe entrelaçou as costas com as pernas numa chave e quase lhe arrancou a orelha com os dentes. Talvez porque estivesse muito bêbado, Ele ficou excitado. Abriu as pernas da mulher e arrancou sua calcinha com força. Foi quando tudo ficou escuro e apenas se ouviam os murmúrios de choro da mulher: um choro de humilhação. Tentando não se abalar com aquilo, apesar de já bastante nauseado, Ele começou a apalpar a buceta dela, mas não encontrou nenhum espaço para entrar ali. “Então era isso o tempo todo”, Ele pensou. Os pêlos muito negros e enrolados da buceta se ligavam aos da virilha e cheiravam muito mal, esquecidos pelo tempo em desuso. Depois de alguns minutos com a mão ali, finalmente encontrou os grandes lábios que, como reparou, eram grandes mesmo. Mas a essa altura já estava com o pau flácido como uma centopéia. Dormiu sobre a mulher. Acordou no dia seguinte, com o pai da moça aos gritos no telefone celular. “Pai... Não, pai! Pai... Eu tô aqui na Cíntia, pai”, dizia a moça, com um sorriso desesperado. “VOCÊ NÃO MINTA PARA MIM!”, gritava o pai do outro lado, com a voz parecida com a de um âncora de telejornal. Ao fundo ainda era possível ouvir os berros da mãe, que chorava muito alto com a voz esganiçada. “Então é dali que vem esse choro insuportável”, Ele pensou calado. “EU LIGUEI PRA CÍNTIA JÁ... E JÁ LIGUEI PRO IML INCLUSIVE, VOCÊ SABIA?! E O QUE PENSA VOCÊ DISSO?”, disse o pai sem deixá-la responder. A cama estava molhada e o cheiro lembrava morte, mesmo que Ele não soubesse como poderia fazer tal associação, já que nunca havia morrido. Depois de desligar o telefone, Ele acompanhou a moça até o elevador. O elevador chegou e Ele lhe deu um beijo na testa, como querendo dizer “tudo bem, não se preocupe”. Ela entendeu o recado e soltou mais algumas lágrimas, como querendo dizer “perdão”.
Semanas depois, Ele cruzou com a mulher num bar, acompanhada de várias amigas. Olhou para ela mas, antes que pudesse acenar, ela virou a cara e saiu de lado, puxando as amigas, que riam como maritacas no cio. Mais um caso de amor desperdiçado... E Ele ficou contando palitos de dente e pensando no caso e no amor – nada lhe vindo à cabeça a não ser o desperdício das vidas solitárias – enquanto pedia mais uma dose barata de morte líquida e reciclável.

16.9.05

"Bebendo Sozinho"

eu pego minha jarra de vinho do meio das flores
para beber sozinho, sem amigos.

eu ergo meu caneco para seduzir a lua.
ela, e a minha sombra, nos fazem três.

mas a lua não bebe,
e minha sombra silenciosamente segue.

eu vou viajar com lua e sombra,
feliz até o fim da primavera.

quando eu canto, a lua dança.
quando eu danço, minha sombra dança também.

nós dividimos as coisas boas da vida quando sóbrios.
bêbados, cada um vai para um lado diferente.

amigos constantes, ainda que à deriva,
nos encontraremos de novo na Via Láctea.

(Li T'ai-po)
*trad. Leonardo Marona

13.9.05

Henry Miller, 1940, extraído de “Dias de Clichy”



“Saber falar sobre coisa alguma
é uma qualidade talvez superior
a falar pouco com grande inteligência.
Na verdade, essa habilidade
parece-me de primeira ordem.
Contribui para a alegria da vida,
enquanto que a conversa extremamente culta
contribui para diminuir a nossa força de enfrentar a vida,
tornando estéril, fútil e sem sentido prático aquilo que é simples”.

11.9.05

“La Bohème para Nice numa Limonaire Fournier”

Nice chega para a sessão das 4 no Cine Palácio.
Nice tem 67 anos e há quinze é viúva.
Depois do filme, um Buster Keaton,
ela passeia pelo jardim do Palácio do Catete,
em meio a gansos, marrecos, merda de gato,
crianças que a fazem lembrar de que não lembra de mais nada.

Ela passa cinco minutos assobiando La Bohème numa ponte sozinha.
Mais outros tantos numa roda onde velhos e novos tocam chorinho.
Uma velha cantora lírica recebe aplausos de mais umas dez velhas.
Um rapaz magro e de óculo no cavaquinho chorando sozinho.
Uma linda menina de chinelos tocando flauta transversa.

Nice segue pensando que poderia se apaixonar por Buster Keaton.
Por seu ar desajeitado, por sua figura trágica, pelos seus olhos.
Depois lembra que o filme era de 1928.
Ainda faltavam 10 anos para ela nascer.

Então uma melancolia profunda ataca Nice.
Por causa dos dez anos que faltaram.
Por causa dos 67 que vieram.
Por causa dos poucos que
ainda faltam
sem nada.

Ela cruza o portal do Palácio.
Muitas crianças,
muitas velhas,
pipoqueiro.

É quando Nice ouve o som de uma melodia.
Uma música cheia de vida embutida,
tocada numa caixa de música
acionada por uma manivela,
onde lê-se na madeira:
“Limonaire Fournier”.

O homem que gira a manivela tem um forte sotaque francês,
cerca de 67 anos, poucos cabelos brancos,
um bigode muito fino e bem aparado,
uma boina e um colete de veludo,
naquele calor todo sem suar.

“Nossa, um francês legítimo!”, suspira Nice.

Do lado do homem há um garoto mestiço
que bate palmas a cada fim de música.
E o francês anuncia para as velhas:
“Esse é meu filho, senhoritas.
Foi isso... Não teve jeito:
caí por uma mulata”.

As velhas se aglomeram a sua volta alvoroçadas.
O francês se chama Pierre Janou,
Nice tinha ouvido alguém dizer.

Então ela se junta às outras velhas:
Uma gorda com duas Lulus de colo,
Uma outra magra com olheiras.
Nice se acomoda ao lado.
Metade envergonhada.
Metade hipnotizada.

Pierre Janou gira a manivela da sua Limonaire Fournier.
Nice sabe muito bem do que se trata:
“La Mer, 1938!”, ela grita bem alto.
Pierre lhe abre um sorriso delicado,
lhe inclina a cabeça
e Nice se apaixona.

Fica ali e ouve várias:
Petit Vin Blanc,
Ça c’est Paris,
Domino,
Pigale.

Nice dança quando toca Frou Frou.
Chora com La vie en rose.

A gorda das duas Lulus se encosta no seu lado e diz:
“Me diz uma coisa, esse homem é argentino?”.
Nice se afasta sem esconder o desprezo.
“Como argentino?”, ela pensa.
“Com que sotaque?”
“Com que charme?”
“Com que voz?”

No intervalo de uma música para outra,
ela se aproxima de Pierre Janou.
Joga R$ 5 dentro de uma caixa.
“Toca La Bohème pra mim”,
diz ao homem que,
com sorriso largo,
acende um cigarro,
aperta a bochecha de Nice,
que estremece e senta ao seu lado.

Cada um tem de volta seu passado.
Pierre começa a girar a manivela.
Algumas velhas dançam.
Outras batem palma.
Charles Aznavour,
com La Bohème.

Velhas suam saudades.
Crianças correm descalças.
Pombos por todos os cantos.
O sol derretendo ainda quente.
O pipoqueiro injuriado com a falta de clientes.
E Nice de olhos fechados ao lado de Pierre em 1928 finalmente.

10.9.05

“The Road not Taken” (de Robert Frost)


Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that, the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
two roads diverged in a wood, and I --
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference. Ouça o poema na voz do Robert Frost

***tradução***

“A estrada não tomada” (trad. Leonardo Marona)

Duas estradas divergem numa mata amarelada,
E lamentando não poder viajar por duas estradas
E ser um viajante, fico um tempo ali de pé
E olho uma delas o mais possivelmente distante
Para onde a mata se curva no horizonte;

Então pego a outra, tão vasta quanto
E talvez um pouco mais atraente,
Porque era cheia de grama e queria ver gente;
Embora os que passaram na frente
Tivessem estragado as duas no mesmo tanto.

E as duas que a manhã deitou igualmente
Em folhas que nenhum passo escureceu de repente
Oh! Eu sigo pela primeira por mais um dia!
Mesmo sabendo como um dia leva a outro dia,
Eu duvido que alguma dia eu volte lá novamente.

Eu deveria dizer isso com um suspiro
Em algum lugar dos anos uma centena:
Duas estradas divergem numa mata amarelada, e eu --
Eu tomo a que foi menos viajada,
E isso faz toda a diferença.

"Até o último apito do cais"


Acabei de estourar uma espinha branca na testa. Estou no elevador sozinho, a cara enfiada no espelho embaçado, coberto pelas rajadas de luz de cada andar. O sangue desce devagar pela testa. O sangue não tem a cor que deveria ter. Giro a chave, entro. O telefone ficou sem tocar a semana inteira. Tudo o que um homem precisa para saber se é um homem é ser deixado sozinho. Acho que não sou um homem na maior parte do tempo. Sento na mesa da cozinha. As formigas rezam numa roda. A toalha é branca e vermelha e xadrez, existem frutas pintadas em potes no pano: cerejas, pêras, laranjas, framboesas. Agora estou olhando para baixo. Minhas coxas muito brancas com pêlos muito negros somente nas partes internas e a toalha xadrez pintada de frutas silvestres, juntas, formam uma cena triste e redentora: uma espécie de constatação. Mas é nessas horas que, em algumas noites, ou inícios de manhãs, quando o céu se aflige de laranja e o mundo faz menos barulho, ou nenhum, quando acordo, ou tento dormir, ou chego atrasado para mim mesmo, pouco importa, posso imaginar pequenas seqüências de vida e morte, e aquilo quase toca meu ombro por trás da toalha xadrez, como se fosse capaz de andar e falar:

Vejo o Quintana comendo arroz com ovo frito num hotel cor-de-rosa pago por um jogador de futebol aposentado. Vejo Hamsun contando os dias como lenhas cortadas só para que os ricos continuem sem ter o que contar. Ali está Beethoven num banheiro, molhado dos pés a cabeça, debaixo da pia, compondo uma serenata para o amor não correspondido da lua. Vinícius, Tom e Baden juntos cantam marchinhas de carnaval com duas garrafas de Stolichnaya vazias e uma de Amarula do meio pro final. Vejo um menino italiano que viria a ser o maior de todos os escritores de seu tempo, sem que ninguém soubesse disso, debaixo de uma ponte matando caranguejos nas pedras da praia com os olhos cheios d'água e a cabeça inchada e as mãos rasgadas por causa das farpas do amor entalado que ele não soube onde escoar a não ser em odes a garotas feitas de papel com olhos pintados e cigarrilhas grudadas no bico dentro do armário das ilusões em preto e branco nas páginas coladas pela ânsia da paixão. Mccullers prende a respiração presa a uma corrente de aço em alto mar dentro de um barquinho de papel que ela chama de solidão final ou cura para uma vida com olheiras. Silvia Plath é linda e nada mais que linda, perdida por um escroto chamado Hughes, com o lápis na ponta da língua antes de escrever sobre mais uma morte na forca da vida. Gide corre da família atrás de Wilde no deserto da Namíbia. Quem sabe Poe sem cuecas de roupão com um quarto de uísque debaixo do braço ateando fogo nas próprias vestimentas e nas ruas de Baltimore em pleno verão com apenas uma metade do bigode raspada. Ou Jack choroso beijando Cassady na boca enquanto o último dorme, ambos tingidos pela luz vermelha de um letreiro de néon onde se lê "Skinny Joe's Barber Shop"; e no banheiro Ginsberg se masturba com um poema de Whitman na mão. Huxley olhando as paredes verdes de néon e ficando cego sozinho na mansão de dez quartos em Wrigwood, chorando pelo suicídio do irmão Trev antes de voltar a tentar David Hume, sem conseguir dar mais um passo. E mrs. Woolf nada quando nada mais é do que nada, um rio gelado de pedras cercado de almas por todos os lados. Dos Passos tira meleca de meia, cueca e sapatos, suspensório esgarçado e sem camisa, enquanto lê o Wall Street Journal em frente a tiras de bacon ressequidas, num jardim com vista para as montanhas rochosas, virando a casaca sobre as antigas questões comunistas.

E são tantas imagens juntas que quase me sinto forte, com uma espécie de norte...

Como quando Rembrandt gastou seus últimos florins por uma puta barata de quem faria um retrato apenas para se lembrar de Sáskia, mas sua Sáskia teria morrido de parto e não voltaria mais. Ou Gauguin como Anthony Quinn dizendo a Van Gogh como Kirk Douglas que é fácil se acomodar no fracasso, ainda mais quando se ganha comida e teto do irmão para isso, pelo que o holandês tentaria matá-lo e, não conseguindo, mataria a si mesmo com deuses e corvos e milhos e cipestres: uma orelha na lata do lixo. E a última imagem poderia ser minha pescando um marlin azul de quatro metros ao lado de um sujeito gordo com uniforme cáqui chamado Ernie, que grita e fuma um charuto sem parar de reclamar do vento e da corrente que vem do sul. Ou do dia em que Miller andou de bicicleta por Clichy pela primeira vez e perdeu o chapéu que Nin encontrou mas que não soube usar. Algo como a última curva de Camus. O prato de macarrão que Rossini comeu depois de terminar o seu “Guilherme Tell”. Dostoievski conhecendo a morte, rindo da cara dela e o governo o mandando esfriar a cabeça na Sibéria. Lampedusa criando a Sicília. Ellroy se embebedando com anti-séptico bucal e murmurando pelas ruas atrás da própria mãe. Dylan Thomas tomando um gole da sua lager numa mesa de mogno, confins de Gales, algo lhe aperta o coração e ele escreve “do not go gentle into that good night”, depois tem um enfarte. Céline toca um realejo bêbado num cais africano com as mãos sujas de sangue. Gertrude na cama por cima da Toklas. Picasso por baixo. Pound coloca Hemingway no chão com um direto de direita. Kafka com as calças molhadas porque mijou na cama. Proust tentando entender um passado sem futuro.

Tem dias que vejo o Leminski numa tarde escura de quimono e chinelos tomando o último gole de conhaque para escrever sobre sua morte. Acima da sua cabeça há um quadro com uma menina loira vestindo uma gravata amarela ajoelhada diante do túmulo do Maiakovski. Lima Barreto toca a campainha do Pinel, muito alinhado, atrás de um quarto para repouso. E Joyce joga a moeda diante da lareira: se der cara queima o Ulisses, se der coroa se queima.

É nessas manhãs escuras ou de noites claras sem alento que um apito ressoa de um cais abandonado muito longe e escorre por dentro dos meus ouvidos e me leva voando para o mar atrás de lembranças nas quais fico por um minuto ou dois, nada mais do que isso, para depois poder desperdiçar tudo aquilo que às vezes chamo de amor - bicho esquisito – por não ter um nome melhor, e que por mais um minuto dá forma ao vômito inevitável da paz. E ali estão eles comigo. Não me pedem nada nem me amam ou são meus amigos. Não falam comigo, não dizem o que devo fazer nem me xingam de nomes. Mas me deixam beber junto deles. Fico quieto como um urso satisfeito. Tímido. Dou meu primeiro gole do vinho – vira vida a bebida.

Ainda estou na cozinha, diante da toalha xadrez, vendo as formigas. Mas nada vai acontecer até que eu tome meu último gole do vinho deles, depois de brindar pelo meu último apito.

7.9.05

"Let Them Alone" ("Deixem Eles Sozinhos")


"Let Them Alone"


If God has been good enough to give you a poet
Then listen to him. But for God's sake let him alone until he is dead;
no prizes, no ceremony,
They kill the man. A poet is one who listens
To nature and his own heart; and if the noise of the world grows up
around him, and if he is tough enough,
He can shake off his enemies, but not his friends.
That is what withered Wordsworth and muffled Tennyson, and would have
killed Keats; that is what makes
Hemingway play the fool and Faulkner forget his art.

*** tradução ***

("Deixem Eles Sozinhos")

Se Deus foi bom o bastante para te dar um poeta
Então escute o poeta. Mas por Deus deixe ele sozinho até morrer;
sem prêmios, sem cerimônias,
Eles matam o homem. Um poeta é aquele que escuta
A natureza e seu próprio coração; e se o barulho do mundo cresce
em torno dele, e se ele for duro o bastante,
Ele pode se livrar dos inimigos, mas não dos amigos.
Isso foi o que definhou Wordsworth e apagou Tennyson, e poderia ter
matado Keats: é isso que faz
Hemingway bancar o babaca e Faulkner esquecer sua arte.

(poema de Robinson Jeffers,
trad. Leonardo Marona,
com ajuda do
Chambers Concise Dictionary,
de uma dose de domecq
e da chuva forte e fria).

"Rádio MEC"



Em si sustenido falecida segunda sonata de Sibelius.
Uma galinha cacarejando no cemitério.
Um tema oitavado que evoca o vazio.
Delírio e morte na mão direita.
Ecos da paixão na mão esquerda.
O maestro entrevistado se abaixa
para apanhar a garrafa de uísque.

Interferência.

Depois o nada com alguma microfonia sem cor.
A voz distante no microfone porque se abaixou.
Violinos, Oboés, Violoncelos.
“Hum... Que interessante”,
Diz o locutor entrevistador.
“É como uma reminiscência”
“O quê?! Nada disso”,
Grita o maestro, bêbado.

Interferência.

4.9.05

Katrina

Me parece um pouco irônico
Milhares de famílias desabrigadas
Com fome amontoadas num estádio de futebol
E a causa daquela cidade fantasma
E o nome de uma russa fatal

3.9.05

“Moonligh Serenade”



onde estava você, Ludwig Van?
quando a lua chorou de dor e dali, disseram, se fez o amor e
a espingarda da Terra atirou salmos de prata na sua carne e
o Danúbio se espreguiçou numa colcha d’água suave e
era o espelho do mundo ali, enquanto você derretia e
todas as suas tentativas desaguavam em nada...
as folhas do outono cobriram seus sonhos de primavera.
você estava amando quando o tiro sangrou a lua e o mundo escorreu prata?
você achou o sonho da noite passada em alguma casa de chá?
se você sempre soube quem e quando, então onde, me fala!
existe serenata sem sacada?

o que estava fazendo ali, Ludwig Van?
alta madrugada fechada e
você de cabeça encharcada.
por que dói tanto, meu camarada,
e como você faz para dizer na risca
o quanto dói sem dizer palavra?

aceita um gole de vinho, Ludwig Van?
pois quero dele a cor emprestada,
para agarrar quando fugir o instante,
já que daquele primeiro salmo de prata,
quando olhei minhas mãos vi: era sangue –
ou vinho?
quando olhei o céu escuro vi: era antes –
ou era o fim?

como se ama, Ludwig Van?
já que você, com sua serenata,
deve saber me explicar melhor
do que eu com minhas palavras.

vamos voar, Ludwig Van?
e não me tome por louco agora –
ou melhor, tome e tomemos juntos!
– nem faça de mim pobre chacota.
aceita meu copo, meus olhos, minhas mãos ensangüentadas...
é a vida que se escorre agora
e não posso mais sentir nada,
nem a maravilha dos teus acordes.

minha noite tem lua mas não tem poesia.
tua música é poesia e lua e não tem fim.