28.4.10

"rimbaud"


a criança podia apenas acreditar
nos órfãos e nos seres selvagens.
“Napoleão III merece a navalha”,
você gritava nos bares, agarrado
ao professor pederasta que dava
livros impróprios à criança rude:
Rabellais, Villon, Hugo, margem
que te daria o inferno exemplar.
todos no vilarejo te reconheciam
pelo riso fino e as mãos operárias,
o lábio semi-leporino, e as novas
pretensões ruminantes de sentido.
hoje sabemos apenas dos cabelos,
dos teus braços curtos para flores,
mas acima de tudo os teus cabelos
formados pelo ar gelado da longa
partida sem volta que melhor seria
perder de uma vez a perna, rasgar
de cabo a rabo o senso de perigo,
coisa que dói o estômago e incha
os olhos deslumbrados, sensação
aterradora de liberdade, quando,
firmes, as mãos nos bolsos vazios
nos levam facilmente até o cume,
onde viramos adultos e morremos.

"duas musas"



eu vejo vocês passando por baixo das escadas,
pelo concreto interminável da gigante cidade.
eu vejo vocês nas dobras das portas rangentes,
que nunca abri porque o que range não se abre.
eu vejo vocês sorrindo no frio, os dentes roxos,
fumando cigarros de loucas marcas, ou mesmo
cigarros comuns como os que sempre serviram.
e vocês estão maravilhosas, e parecem seguras,
apontando paredes pichadas e, vez em quando,
tomadas de repleto silêncio, pois são as damas,
as que vieram e foram e de alguma forma estão.
eu vejo vocês indo para longe, mas a distância
já não significa mais nada: o coração é caminho.

"maria teresa horta"


ah essas ancas magras, ruas mortas!
e por que ruas, Maria Teresa Horta,
poder-te-ia eu, ao te estender a mão,
levar teu suco raro, tua boca-poema?

"longfellow"


os dedos dos pés com largas cascas de pele morta,
as duas mulheres mortas, por azar e por incêndio,
seguindo o dedo mais rígido, logo acima, um não
muito largo, mas fundo, manancial de pus recente,
todo em estado cor de rosa por rápida cicatrização,
e seguindo o nosso pobre diabo pelas duas pernas,
depara-se com duas crostas duras, em cada joelho,
crostas duras sobre duras crostas, de certo o local
mais avariado, mas já tudo tão antigo, fossilizado,
placas tectônicas das súplicas do amor animalesco,
e subindo mais um pouco, a coxa estirada, por não
suportar a corrida, além de tudo, no meio do tórax,
a porta fechada com linha para um câncer – já este
não voltará mais – e no lombo direito, duas marcas,
dois dentinhos de gato, marcas frescas e inflamadas
como a noite do primeiro tombo, quando ainda não
sabíamos: deve-se bastar-se, eis tudo que nos resta,
e drogar-se um pouco, talvez, e morrer de incêndio.
foi um anjo que nos trouxe magros e adeptos à dor,
à flecha e à música – depois levou as flores embora.

22.4.10

"hacker na área"

aviso aos meus escassos leitores que um hacker invadiu o espaço para comentários no blog, excluindo alguns. apenas para que saibam que isso é algo que eu jamais faria.

atenciosamente,

klaus kinski.

18.4.10

"Paul Verlaine"



Será mesmo que de todas as rugas plantadas não restará uma gota de seiva bruta? Será mesmo essa pergunta ultra-melancólica? Será culpa da lua cor-de-rosa de Nick Drake ou Nick Ray? Será um pouco de exagero nas ironias de Dorothy Parker? Será que o exagero é real e o resto que cabe à minha percepção está deslocado? É preciso sempre procurar um rosto, uma forma esquecida, algo que talvez permaneça – e não seria esta só mais uma visão romântica de alguém pensando tão somente na verdade absoluta com que vão chorar sua morte?

As crises são leves e às vezes tão banais que se confundem com mau-humor. A necessidade de fazer rodar às pressas um mundo cheio de possibilidades truncadas é tão inconcebível quanto os pêlos que crescem sob as bolsas dos meus olhos e no meu pescoço. Os do pescoço eu arranco como nabos. Os outros se adaptaram melhor ao meu corpo, e parecem ter sempre estado ali.

O pensamento repentino sobre os pêlos sobressalentes só pode querer dizer alguma coisa, pensaria um espertinho alemão, mas não eu. A desocupação é tediosa justamente porque ela nos obriga a ver que nos falta ainda muito para admitir que falta alguma coisa. Por que não abri as janelas hoje? Pêlos grossos, que se avermelham nas pontas, a uma distância de quatro centímetros dos olhos...

Ter comprado a antologia de Paul Verlaine não pode ter sido uma atitude totalmente despretensiosa. Isso me deixa irritado e aflito, como se pudesse esbarrar sem querer em alguém na rua e levar uma facada.

Mas na verdade eu pensava em caninos sobressaltados, roía as unhas e lia nomes repetidos nas placas de rua, porque eu via caninos sobressaltados, mas não sabia se a boca sorria ou chorava. Lembrava de alguém dizendo que os achava charmosos assim, para fora. Na minha cabeça havia um ombro de mulher, mas não havia cor – não era preto-e-branco também, mas era certamente uma mulher, porque tinha cheiro, e eu acordei transpirando, com rumores pubianos. Havia a mulher sem cor e a antologia de Verlaine – digamos assim. Em dado momento as duas, obviamente, se misturavam, como nos sonhos. Mas a substância, que ora era mulher sem cor, ora era antologia de Verlaine, estava bem ali, um pouco mais para fora da prateleira – afastada da cena, quase se jogando sobre mim. Verlaine, nunca lerei.

É preciso ter Verlaine por perto, mas é proibido lê-lo, pois ele é o cão lazarento que não sobreviveu à provação de deus. Estou pálido, um gosto esquisito de resina na boca faz tudo ficar muito óbvio. Existe a necessidade repentina de um tapa-olho, um tiro trêmulo no asfalto, um papagaio sobre o ombro, um horizonte de sol infinito, algo que trema de vida, mas sinto vergonha por querer tanto. Uma luz incide suavemente sobre uma cicatriz feminina. Nunca lerei uma linha, Paul, promessa.

Talvez eu esteja perdendo a guerra também. Essa frase me parece equivocada por dois motivos. Pela guerra e por mim. São duas concepções vagas que de algum modo se unem toda vez que existe um período démodé em minha alma, e me tomo de falsidades e delírios. Talvez eu esteja me dissolvendo, para não precisar admitir uma guerra pré-concebida por outros planetas ou seres com muitos olhos, antes ou além de mim. Talvez meu amigo transcendentalista esteja equivocado quanto à massa única da alma. Mas será a minha guerra suficientemente interessante em algum ponto além das derrotas antecipadas pelo irresistível charme do recomeço depois do susto de quem acorda e ainda é noite? Só sei de duas coisas: uma mulher, não lerei jamais.

17.4.10

"delicado"

eu confesso que no fundo até me orgulho
das minhas feridas, das quedas de combate,
dos joelhos infantis rasgados, das marcas
que cuido e lambo devagar como um gato,
e ali o combatente, o sangue claro como
o das ovelhas em fila para o último abate,
porque são muitos abates, serão milhares
de tombos de corpo inteiro com as mãos
erguidas ao sol em tentativas desesperadas,
e confesso que tudo isso me causa orgulho,
estou inclinado às constâncias mitológicas,
mas não se preocupe, permaneço delicado.

11.4.10

“rasguei a testa quando fui ao banheiro”

chego como quem chega da guerra,
a testa aberta em vermelho explícito
demonstra que se apanha e bate-se,
e é mais ou menos o que resta, fora
a intrépida vontade de se fazer fogo,
e como não há fogo, há chuva, sento
no parapeito da ternura em chamas,
e devo então me embrutecer porque
os ferimentos não são meus, e sem
ternura me agarro à falha milimétrica,
seguro junto ao peito o erro plácido,
me agarro, na casa vazia, às gaiolas
sem pássaros, abertas, enferrujadas,
e não tenho mais os prantos externos,
estou sem divisa tanto quanto carente
da divisa preciosa que se fará farelo,
estou salgado por dentro, os punhos
estão cegos à procura de uma parede,
estou sem música, sem luz, estou só,
sem os movimentos teatrais repletos
de mentira e ódio e amor e safenas,
sem a fricção delicada entre corpos
que não sabem porque seguir acima,
mas seguem porque parados nada
subirá mais uma vez como bomba,
e preciso dessa bomba como aquele
que sabe que, mesmo não querendo,
perderá as pernas, portanto, finca
firme o pé supérfluo na direção crua
do tempo duro no qual as granadas
são apertos de mãos sem malícia,
e devo sentar sob a nona sinfonia
com guelras em vez de estômago,
apenas chuvas e destroços, e nós
não estamos mais ali, não há nós
frágeis a ponto de serem perfeitos.

sobrarão olhos diante das fêmeas
que não vamos jamais tocar e que
nos fazem gritar por nossas mães
em sonho, e nos trazem trêmulos
de volta ao útero seco da primeira
virgem nua que fazemos em reza,
fecundada por uma paz reticente.

6.4.10

"o gênio de lawrence"

(born in England: 1885 - died in France: 1930)


She (Lady Chatterley) went downstairs calmly, with her old demure bearing, at dinner-time. He (Sir Clifford, her cripple husband) was still yellow at his gills: in for one of his liver bouts, when he was really very queer. - He was reading a French book.

"Have you ever read Proust?" he asked.

"I've tried - but he bores me."

"He's really very extraordinary."

"Possibly! But he bores me: all that sophistication! He doesn't have feelings, he only has streams of words about feelings. I'm tired of self-important mentalities."

"Would you prefer self-important animalities?"

"Perhaps! But one might possibly get something that wasn't self-important."

"Well, I like Proust's subtlety and his well-bred anarchy."

"It makes you very dead, really."

"There speaks my evangelical little wife."

They were at it again, at it again! But she couldn't help fighting him. He seemed to sit there like a skeleton, sending out a skeleton's cold grisly will againts her. Almost she could feel the skeleton clutching her and pressing her to its cage of ribs. He too was really up in arms: and she was a little afraid of him.

(Lady Chatterley's Lover, D. H. Lawrence, 1928, pg. 195)

3.4.10

"jesus"

você talvez fosse um daqueles hippies sujos
que vendem miçangas e sorriem melhor que nós.
provavelmente você era olhado pela maioria
como olhamos os mendigos que se arrastam pelas ruas
contando os próprios dedos e com os membros íntimos à mostra,
ou o doido a quem chamam doente e apontam às gargalhadas,
o que foge para cima das colinas desérticas, e ah!
como vejo você causando náuseas na normalidade obesa,
olhado com os olhos de nojo com que nós, os sãos, recebemos
os estranhos maltratados pela própria fé.

e agora aquilo que você talvez tenha dito,
apenas amem uns aos outros e também aos inimigos
e aos fracos e necessitados, suportem a humilhação e a dádiva
com o mesmo sorriso sereno no rosto marcado pela volúpia do poder,
agora tudo isso que você disse, sem ter muito a quem dizer,
talvez seja isso tudo contrário ao que vivemos em seu nome.
e rezamos nossas anedotas diante de um mundo sem espanto,
e nos estabelecemos em seu nome deliberadamente enclausurados
em nossas próprias cruzes, e temos tanto de Judas, de Pilatos,
que não posso admitir que somos filhos do mesmo pai.

você foi o galã canastrão de carreira meteórica,
Chaplin sem o talento disfarçado dos nazistas
– e sem nada nós apenas dizemos amem.

1.4.10

"talvez"

talvez quem sabe houvesse restado algo
da contínua fricção imune entre os corpos,
talvez tivesse ao menos limpado os poros,
se em vez de pouco tivéssemos dado nada,
se não tivéssemos cedido nenhum milímetro,
talvez se a dita “descoberta fatal” não fosse
aquela à qual chegamos por restos de sobra
da fricção temente à deificação do espaço,
com medo do mesmo quarto de estátuas,
da próxima página, do mau-hálito matinal
discriminado por beijos de olhos abertos,
talvez se não tivéssemos feito nada certo,
se não tivesse de fato sido a pior descoberta,
a de que sofremos de amor porque o amor
é sempre solitário no que nunca é completo,
talvez se nós tivéssemos feito tudo diferente
do critério utilizado pelo amor dos inocentes,
eu não estaria agora criando esta saudade
de mim sentindo falta do que não tivemos.