31.10.09

"casa na colina"

acho que não devo dizer que as mãos me cansam.
chega dessa conversa rancorosa, desse cânone
que em nós dissolve imensas paredes, escombros.
hoje direi apenas: cansei dos homens, sou mais um
que vai para o alto da colina, onde ocorrem mortes
forçadas por um tiro equivocado e um pouco de pó
que se uso visto os chinelos e desço para a margem
e colho flores de segunda categoria na saída da nova
morada onde estão estrangeiros, famintos e loucos,
e sou um pouco dos três, mas ainda me sinto pálido,
com vontade de sair e conversar com os bombeiros
e saber da mulher que mora à porta ao lado e traz
um bebê no colo e outro no ventre e é linda e tem
um filho de olhos azuis e uma origem que me diz dor
e carrega com vontade um galão de gasolina até ali
e penso “ela poderia muito bem incendiar tudo e eu...”
e eu não sei dar fim à frase quando vejo que de fato
abandonei as coisas retas, com pólos reconhecíveis,
e estou aqui, cá com meus trejeitos de cem frases,
e uma frase arrebatadora poderia dizer muito, Elias,
mas “não são os pensamentos mais profundos aqueles
que por mais tempo influenciam o nosso mundo”.

agora os amigos, espero, surgirão das mangueiras,
e teremos falta de comida, falta de água, melancolia
suficiente para cantarmos sozinhos durante o banho
músicas que não gostamos, e que lembram nossos pais.

27.10.09

“os viciados”

eles já não precisam mais de nós
nem mesmo no Harlem americano.
sedentos e pálidos caminhamos,
cheirando a caramelo, nós os que
se atiram cegos na primeira chance,
e se arriscam por trás de pilastras.
peço a gentileza de atravessarem
em silêncio, em reverência retirem
todos os seus chapéus e escarrem
no chão pela passagem meteórica
dos que suportam a terra nas costas.
não pensem que vieram de longe,
estão nos quartos, cheirando a mofo,
atraídos ainda pela prima vertigem.

"elegia do recife"

faça-me escrever em lágrimas,
recife, e limpe toda a incompreensão
da saudade forçada nas virilhas.

serei agora forte, como tuas ruas
semi-asfaltadas, os paralelepípedos
da tua dor, onde enfiei em sangue
a âncora do meu tesão, nos corais.

"maracaípe"

tem coisas que os olhos vêem,
o coração não pode mais sentir.

que tristeza é ter
a felicidade nos braços
e a síndrome de tempo algum.

existem momentos
em que não existimos,
somos o parado da existência.

e o tempo é só um sem ruído
que regurgita nas entranhas
do esquecimento.

"recife antigo"

sou marinheiro encalhado,
cheguei aqui aos pés da besta.

há anos querendo
voltar para Santos.

sigla comum é L.P.P.:
loira do pentelho preto.

aqui me transformei
num autêntico boquinha de cais.

aqui, enfim, reparei
que só se pode amar
o que for passível de
ser destruído em pó.

7.10.09

"kafka"

Kafka realmente carece de qualquer vaidade de poeta, jamais se gaba, não sabe se gabar. Enxerga-se como sendo pequeno e anda com passos pequenos. Onde quer que pise, sente a insegurança do chão. Ele não nos leva; enquanto estamos com ele, nada nos leva. Assim, ele abre mão da farsa e do ofuscamento dos poetas. Suas próprias palavras perderam seu brilho que ele percebia muito bem. É preciso acompanhá-lo andando a pequenos passos e se tornar modesto. Não existe nada na literatura mais recente que nos torne tão modestos. Ele reduz a presunção de qualquer vida. Tornamo-nos bons quando o lemos, mas sem ter orgulho disso. As prédicas orgulham aquele que se deixa arrebatar; Kafka abre mão das prédicas. Não transmite os mandamentos de seu pai; um estranho bloqueio, seu maior dom, permite que ele interrompa a cadeia de engrenagem dos mandamentos que vão sendo passados de pais para filhos. Ele se priva de sua violência; aquela energia exterior, animal, evapora nele. Em compensação, o seu conteúdo o ocupa tanto mais. Para ele, os mandamentos se tornam dúvidas. Entre todos os poetas, é o único que o poder não contaminou de alguma forma; não existe nenhum poder, não importa a forma, que seja exercido por ele. Kafka despiu Deus dos últimos vestígios de paternidade. O que resta é uma teia densa e indestrutível de dúvidas acerca da própria vida e não acerca das pretensões do criador. Os outros poetas imitam Deus e se comportam como criadores. Kafka, que nunca quer ser um Deus, tampouco é uma criança. O que muitos acham assustador nele e o que também me deixa intranquilo é o seu estado adulto constante. Ele pensa sem mandar, mas também sem brincar.

Diante de algumas figuras do espírito, e são muito poucas, o meu Eu para completamente. Nem são aqueles que mais realizaram; estes, ao contrário, apenas nos estimulam. São antes aqueles que enxergaram por trás de sua realização coisas mais importantes e inalcançáveis, precisando encolher até ela desaparecer.

Entre essas figuras está Kafka, e assim ele tem uma influência mais profunda sobre mim do que Proust, que realizou incomparavelmente mais.

De que te envergonhas tanto ao ler Kafka? - Envergonhas-te de tua força.

Essa interminável autodegradação diante de Kafka:
por estar comendo sem escolher? (nunca me preocupei em saber o que estou comendo)
por me esforçar por uma exatidão da qual sou incapaz? (só conheço a exatidão dos meus exageros)
porque ficou comprovado que posso ser feliz e não me privo disso?
porque sei me comunicar de forma leve e sem reservas, e sinto que isso lhe teria repugnado?
porque não lhe foi permitido dizer de si cobras e lagartos?
porque me deixei contagiar por ele e troquei o meu próprio modo de me odiar pelo seu?

O som que passa em Kafka: como fraqueza sonora. Mas não é fraqueza, é a renúncia ao Além, e o que sobrou foi a sonoridade da renúncia.

das anotações de Elias Canetti.