31.3.10

"dois poemas de Roberto Bolaño"





Raro oficio Ir perdiendo el pelo
y los dientes Las antiguas maneras de ser educado
Extraña complacência (El poeta no desea ser más
que los otros) Ni riqueza ni fama ni tan solo
poesia Tal vez ésta sea la única forma
de no tener miedo Instalarse en el miedo
como quien vive dentro de la lentitud
Fantasmas que todos poseemos Simplemente
aguardando a alguien o algo sobre las ruinas


*** tradução ***


Raro ofício Ir perdendo o cabelo
e os dentes As antigas maneiras de ser educado
Estranha complacência (O poeta não deseja ser mais
que os outros) Nem riqueza nem fama nem tampouco
poesia Talvez esta seja a única forma
de não ter medo Instalar-se no medo
como quem vive dentro da lentidão
Fantasmas que todos possuímos Simplesmente
aguardando alguém ou algo sobre as ruínas




No enfermarse nunca Perder todas las batallas
Fumar com los ojos entornados y recitar bardos provenzales
en el solitario ir y venir de las fronteras
Esto puede ser la derrota pero también el mar
y las tabernas El signo que equilibra
tu inmadurez premeditada y las alegorías
Ser uno y débil y moverse


*** tradução ***


Não adoecer nunca Perder todas as batalhas
Fumar com os olhos injetados e recitar bardos provençais
no solitário ir e vir das fronteiras
Esto pode ser a derrota mas também o mar
e as tavernas o signo que equilibra
tua imaturidade premeditada e as alegorias
Ser uno e débil e mover-se

"vinte e oito"

agora desces do ônibus e em poucos segundos
estás encharcado, com a mala de roupas na mão,
mas ainda assim acendes um cigarro e permites
que o cigarro enfrente a chuva contigo, pobre
cigarro, com gotas grossas sobre a brasa frágil,
mas apenas andas lentamente porque a chuva
já não assusta mais, é parte fixa de um presente
ao qual te acostumaste – então chegas por fim
a uma casa que não é a tua casa, não tens casa,
mas tens a chave desta casa, giras a chave, não
falas muito mais agora, acendes outro cigarro,
estás finalmente acostumado com o ritmo vazio
que te faz tremer as pernas, portanto te lanças
ainda molhado, sem nenhum frio, sobre a cama
que não é a tua cama, mas só no que não é teu
és agora capaz de fechar os olhos para revirar
sonhos dos quais não te lembrarás mais no dia
seguinte e pensarás: “não lembrar dos sonhos,
deve ser isso o que se chama envelhecer mal”.

27.3.10

"l. cohen"




uma determinada canção medieval,
explicava com timidez a coisa óbvia:
a distância não tem meios de fazer
o amor compreensível e, afinal, nós
gostamos dessas notas tenebrosas,
dos vacilos emotivos, do ar gitano,
do erro que perdemos nos parques
alienados, de toda essa brincadeira
garcia-lorquiana – mas essas notas
tenebrosas são coisa que não se fala,
constância de cadafalso: nossa arte.

21.3.10

"óculos"

maior maldição é ter bons olhos,
sinal perplexo da carne reconhecida,
memória curta entre os vãos do erro,
seriedade amputada de se ver fundo.

com a face retorcida, olhar então a face,
estupro carinhoso de semblante infantil
com que eternizei a envelhecida carcaça:
os olhos tremem, doem de ver tão perto.

a luz impiedosa da realidade sem arestas
cansa-me de honestidade e falsa poesia.
estamos todos à beira de um dilúvio raso
e esperamos isso na boca de um deserto.

somos pedaços afastados de cada um,
e isso não é nem ao menos autêntico.
deixe-me, suplico, não ver a olho nu
a degradação da ternura, emoldurada.

vendo muito bem, esquecemos rápido
o que se move por dentro dos delírios,
relógios infiltrados na pele suplicante,
fundamental, cabal noção de distância.

18.3.10

DE MOMENTO EM MOMENTO (René Char)




Por que este caminho e não outro? Aonde leva para nos atrair desta forma? Que árvores e amigos estão vivos atrás do horizonte dessas pedras, no distante milagre do calor? Viemos até aqui porque onde estávamos não era mais possível. Éramos atormentados a ponto de ser escravos. Em nossos dias, o mundo é hostil aos Transparentes. Mais uma vez, foi preciso partir... E este caminho, semelhante a um longo esqueleto, nos conduziu a um país que só tinha o próprio sopro para escalar o futuro. Como mostrar sem trair as coisas simples desenhadas entre o crepúsculo e o céu? Pela virtude da vida obstinada, no giro do Tempo artista, entre a morte e a beleza.
do livro O pau da roseira
1983

17.3.10

"trincheiras"

A Transfiguração (1520), de Rafael Sanzio (1483-1520).
Óleo sobre painel 405 x 278 cm. Pinacoteca Apostólica do Vaticano.

os alemães sempre me fizeram
chorar feito criança, mas não vou
chorar na tua frente e, na verdade,
implodido, tenho chorado nas horas
mais patéticas, e queria tanto alguém
reconhecível, para sentir novamente
o abraço – espero de ti a tremedeira
que faz rir sob a nuvem de napalm,
quero sentir as convulsões salutares
no ventre enlouquecido de espasmos
e quero, acima de tudo, caber em ti,
como uma peça de encaixe: eu espero
falar contigo de um certo romantismo
alemão, perdido no nazismo das setas
preciosas – menos um dia, mais um dia,
falarei um absurdo, desculpe: eu queria
sentir o cheiro da tua virilha, e que isso
fosse a coisa mais bela, desde Rafael.

15.3.10

"guinada"

é difícil começar o que já terminou.
é preciso agora empacotar as mágoas
e partir para sempre, suar um novo sol.
levar a baixo as paredes com a cabeça
tornou-se um hábito diário, as cortinas
fechadas demonstram que estás só
e, é claro, há os outros, eles também
estão sozinhos e têm a testa marcada
com as pancadas recebidas pelo hábito
de nutrir o medo com socos trêmulos.
não basta, depois, transbordar os olhos
com pureza maldita, com hinos chulos.
é preciso começar o que já terminou,
lamber feridas como filhos sem cabeça
e amar o que destrói como quem ama
a ponta da agulha, o pai sem perdão.

11.3.10

"última febre"

Sangrar pelos poros é coisa normal, a ardência de expelir impurezas é quase dádiva, mas você, coisa impura, que não consigo expelir e carrego como um paralítico até as grutas da vontade, você é um problema de temperatura, você é doença do suor. Pois muito bem: 40 graus, tremeliques, língua de sogra. Nada vergonhoso. Deve-se morrer como se fôssemos gatos que pulam da janela atrás de borboletas.


Vou deixando pedaços de corpo pelo caminho, é bonito uma relação de troca com o mundo, uma relação física de troca com o mundo, é a única maneira de agradecermos a ele, ao mundo, e reconhecermos ao mesmo tempo a sua inaptidão com o tempo. Os pedaços ficam pelo caminho, unhas, pés, pedaços de mão, de braços e, reparo, é assim com todo mundo. O mundo todo é composto por pessoas amputadas. Veja o floricultor sem dedos, veja a freira sem vagina, veja o presidente sem cérebro, é uma coisa maravilhosa.


Deixo líquidos também, no auge da temperatura, mijo sangue, sorrio porque sei que é para poucos que chega a hora irreversível. Pessoas, sentimentos sobre pessoas, são os líquidos vermelhos, viscosos, que deixamos pelo chão. A sensação precisa tomar forma física, então os líquidos absurdos, os felinos selvagens miando dentro do peito tuberculoso, os gases em momentos impróprios, as rugas de amor, a febre, outra vez, para elevar-nos à potência de Lady Godiva, para nos fazer pegar fogo nos céus, e depois arrefecer em frangalhos – é só para isso que viemos, compreendamos isso todos.


A febre é um orgulho, uma luta injusta contra o corpo, uma forma de paixão irrecuperável. E nunca voltamos da febre, vamos até ela uma só vez, e ela permanecerá ali para sempre, agarrada às nossas marcas e vacilos. A máquina do corpo é feita de fibras, e de que são feitas as fibras? Do modo como aceleramos a máquina do corpo. Andarei pelas ruas, meu amor, prometo, com as mão na cabeça e uma arma na nuca. Assim andarei no ritmo que me será imposto, meu amor, assim não direi mais “meu amor”, direi apenas “todos nós”.


O corpo quer um pouco de circo, mas, grande erro, o coração é um palhaço sem calças, que chora ao som de Satie. Ah, mas andarei mesmo sem corpo, é para isso que vim ao mundo. Serei um espectro de ternura na noite chuvosa. Serei os clichês que, somados, trarão o arco-íris ao pote de ouro. Não tenho mais forças, mais pés, mais quadris, andarei feito gás etéreo.


Vou cair, sinto que se aproxima o momento da queda. Vou cair, é lógico, é o que acontece com quem não pensa e não pára de andar. Vou cair e, com licença, meu amor, pensarei e ti quando estender as mãos por ajuda, e ninguém aparecerá para ajudar. Sempre que não houver ninguém, pensarei em ti, meu amor. Sempre que houver alguém, compararei esse alguém a ti. Devíamos falar menos com as palavras, dizer mais coisas com os pés, com o sexo, com a língua por dentro da garganta. Assim diríamos as coisas mais lindas, fortes, as coisas sem maldade ou bondade, enfim, as coisas como elas devem ser.


Agora já estou no chão, os órgãos murchos escorrem suas últimas sonatas pelos poros. Ah, estou quase morto, como é bom! Quase morto, penso ainda, que maravilha, que pertenço ao limite máximo de ternura da vontade! Penso em ti, minha Coney Island Baby, minha Lady Chatterley, minha Maria Callas, minha Edith Piaf, minha imagem desmanchada em tantos espelhos trincados... Ajuda, ajuda, estou como um menino, pedindo ao vento coisas que os seres humanos já não podem compreender. Delírio? Dizem que é conseqüência da febre alta – tive febre a vida inteira. Na minha frente, o circo do mundo, o esgoto dos homens. Eles passam como eras violentas que, quando percebemos, não podemos perceber. Agora talvez seja o fim, mas não vou dizer a vocês, quero tanto quanto vocês que o mundo seja um pouco mau, um pouco bom, mas que não seja falsamente bom. Um pouco de maldade explícita derrubaria outra vez os antigos vendilhões. Ah, um pouco de maldade explícita nos faria seres humanos melhores, não seríamos mais tão mentirosos. Pensar que poderíamos ser salvos pela maldade, eis a grande novidade não computada pelos corpos.


Todos passam por mim, estou sangrando em bicas, vomitando hóstias, com o chapéu na mão, com as mãos arrancadas no chão de chuva forte, o chapéu firme agradecendo a passagem, ainda assim. Todos passam com expressões de pena nos rostos, pensando na próxima sessão de cinema ou no amor falido que os espera em quartos quentes de doença. Erguerei o meu chapéu lá no alto para esses transeuntes, eles terão um pouco de ternura enfim, por se apiedarem do que não pede pena e cai com força, sobre os joelhos dobrados, marcado pela fúria do corpo sem arestas, e eu me orgulharei tanto de mim mesmo neste momento, que não será difícil largar o chapéu e segurar com toda força a rosa púrpura que, do fim dom mundo e das explosões fúnebres da terra cansada, salvará a mim e a todos nós.

5.3.10

"estudo sobre poema debulhado"

estou infectado de ti, as sobras do espírito
escorrem pelo mijo turvo, estou agora
te lendo, tua última mensagem antes de partir.
nunca entendi essa tua mania de escrever
em espanhol, imagino que seja algo que te dá
coragem de dizer, então faça, meu bem,
sempre, tua marca latina em minha pele.
mas não entendo parte do que dizes e isso,
talvez, facilite o amor: não entendermos parte
do que se diz, então amamos – não é assim?
chove à cântaros na minha montanha isolada,
faz um silêncio de pós-guerra e, mesmo as folhas
da mangueira choram encabuladas, assobiam
hinos fúnebres ao amor – vai demorar mesmo
muito para eu me desinfetar de ti, estou pensando
agora nisso, vou acender um cigarro e fingir
que tu virás do quarto onde dorme o samurai
aposentado, e tu virás com teu jeito sonolento
de gueixa tenebrosa, e tu encostarás a cabeça
no meu joelho dilacerado e pedirás mais calma.
não, meu amor, não vou contar a ninguém.
a distância que temos é só nossa: percorrerei
o deserto sozinho – ah, se morrer, que seja logo.
quero morrer completo da morte mais antiga.
sem espadas de dupla lâmina ou cordas preciosas,
desempenharei aquela morte que não se ensina,
aquela que não se cobra, e ninguém me entenderá,
como eu não entendo, muitas vezes teu movimento
hesitante de dois, três corpos num só que se mexe
com cuidado e, além de tudo, teu espanhol.
estou infectado de ti, e não quero ajuda –
está aí a doença mais sublime que jamais
alguém compartilhou, e que é nossa muito mais
do que a distância que nos move adiante em rugas,
garras e saltos circenses, sobre as pústulas eternas.

1.3.10

"manoel de barros"

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição do poeta