27.5.08

"buraco no jornal"

o poema recortado na capa do jornal
foi o poema que passou despercebido
o que falava de estrelas e noite turva
era um poeminha curto, preto e cinza
o poema recortado na capa do jornal
era pálido, era dócil, pedindo ajuda
é claro que o poema falava de morte
dessa morte leve de todas as coisas
a morte pela qual apenas passaremos
crentes nas dores da redenção inapta
e nunca saberemos o doce do sangue.

e flores brotaram das toalhas de mesa
e era uma tristeza ler “casas sem mãe”
o poema recortado na capa do jornal
falava sobre o peso flácido do agora
e da comida caseira dos novos poetas
o poema falava das coisas não vistas
das coisas quando as coisas vão embora
falava do buraco no peito de todos nós
o buraco criado pelo medo do duvidoso
e do movimento vago das coisas surdas
roedores sem dentes na pele das horas.

"o verdadeiro poema recortado"

Da morte

Um dia, não haverá mais estrelas
sem olhos no meio da noite turva

Das borras de café surgirão sombras
capazes de esculpir a ausência dos corpos

Flores brotarão das toalhas das mesas,
das tristes mesas das casas sem mãe

E a poesia escreverá seus poetas,
a mostrar-lhes que a morte é comida caseira,
feita de agoras

*texto de Beatriz Sayad, publicado na vigésima edição do Jornal Plástico Bolha, gerado pelos alunos de Letras da PUC-Rio.

25.5.08

“clint eastwood”

importante esperar pelo último minuto,
pela dor inexplicável que nos fará jus
à cruz que carregamos, invisível ferro,
que gela nas artérias e antecipa o tiro.

importante esperar pelo momento vazio
em que a dor trespassa então por pouco
e já não é mais dor, é tensão do mundo,
enxergar sem rédeas o terreno aberto.

não se colocar entre este e aquele século.
seguir sem nome (pois o nome na pele)
então engolir os séculos, regurgitar mais.

para remexer o caldo fundo sob a terra
aparentemente árida, de cerne difícil,
e só então cuspir fora o sumo – dar o tiro.

22.5.08

“os subterrâneos”

estamos nas pequenas dobraduras
os reféns da mobilidade do amor.
você não nos conhece, passa reto
não entende o nosso riso ambíguo
que nos torna totens apodrecidos.

o mundo urge, não damos conta.
vemos um lugar, estamos noutro.
sem ponderar seguimos vendados
ponta de pé à beira do cadafalso.
colhemos restos e dormimos bem.

vocês bem tentaram a Gioconda
os embriões de cera e a esmola.
vocês fizeram só o que podiam
nos deram a chance de odiá-los.
mas não podemos, não há força.

“nietzsche”

a sina
é que
o equi
líbrio cós
mico não
nos permi
te chegar
perto da
verdade
sem dar
em troca
uma parte
às vezes
grande de
mais da
nossa san
idade.

"o anticristo"

"zelda fitzgerald"

today I feel poetry in my bones
and I’m ashamed.
why poetry only in my bones?

today I feel like talking
to strangers in suspicious alleys.
and, sure, I’m ashamed.
cause streets are full so empty
and poetry fits none.

You that once was poetry itself
And like poetry went on
fire in a restless sanatorium bed.

today I feel like dancing naked
like the once “flapper” Zelda
and I’m complete.
cause shame is nothing more
than reaching poetry.

“Poema”

Um dia ou dois em frente ao poema. Um dia ou dois de negação e paz. Esquecer o poema, jogá-lo sob a carne das idéias. Para sonhá-lo durante as noites sem sono. Não tocá-lo! Vê-lo negro em capuz de prata, a foice longa, a face ossuda, se aproximando lento, arrastando tudo.

Mas ele continuará ali, “a superfície intata”, eu não diria exatamente sorrindo, ele quer te provocar, brincar com a tua paciência, ele quer manchar tua glória, deixar-te fraco, à mercê.

Não te zangues, deixa-o quieto, adula-o se puderes, mas tenhas sempre uma faca à mão.

O poema é afirmação de vida, mostra a vida equivalente à morte. Portanto, observe bem este poema ainda seminu, o lençol sobre as partes, o centro em sangue palpitante, a vergonha rarefeita, e por um dia ou dois veja, observe como dele não vem nada, como é surdo de silêncio o que palpita no cerne exato, pois é puro estado de passagem, a frieza do destino dilacerada em mar aberto.

Jamais será teu ou de qualquer um, por sua essência de promiscuidade e rebelião. Deve ir com qualquer um, cigano, um cigarro na ponta dos lábios, sempre o capuz de prata cobrindo seu verdadeiro mandante. Provavelmente sob chuva fina dessas que nos fazem pensar em filhos. Mas ele teve o ventre arrancado ao nascer, o poema, e ficará olhando, estripado, esperando que o tempo o cubra de terra.

E a chuva passará, haverá decerto algumas escoriações, alguns pássaros mortos cairão das árvores, haverá talvez uma súplica tardia, um tremor pneumônico, quanta tristeza haverá quando o derem como falecido?

Engraçado no fundo não ver o rosto do poema, mas enchê-lo com pás da nossa própria substância, tão certos de sua passagem mítica, e o medo que nos causa, um dia ou dois em frente ao poema, negar tudo e recolher para ficar em paz com o ritmo caótico dessa alegoria em movimento.

Portanto, não esperar dele o que seria possível agarrar com as próprias mãos. Ele é o bobo da corte, seu sexo híbrido, sua risada sórdida, vazante de vinho tinto, ervas e papoulas as correntes de Adão, as costas de vidro e as mentes venezianas, o rosto de ferro. Ele que não será amor, que não será afeto, e quem der a mão o levará, ele que é fácil e injeta nas veias químicas heterodoxas.

Pobre poema, seminu, incompleto, quase roxo de frio, sem poder olhar para os lados de tanto medo, porque antes era pântano, agora é seca, adquire-se dia-a-dia a riqueza frágil dos homens, todos prestes a se matar, e não existem mais espécies, vocês já viram formigas brigarem?

Quando quiser parar me avise, poema, e deixe-me em paz por mais alguns instantes, apenas olhando de fora para dentro, tal que até gosto dessas vírgulas pretensiosas, mas ainda te vejo mistificado e cansado com o peso, a terra dos séculos pobres demais para nós dois.

20.5.08

"Canção dos anjos exaustos" (Nei Duclós)

Para Caio Fernando Abreu


Os anjos exaustos do Continente
com plumas molhadas pelo minuano
desertaram os carnívoros exércitos

Levaram no bolso bulas de silêncio
lenços ciganos, mapas pela metade
essências cifradas em livros de latim

Partiram em desordem pelo vento
todos ao mesmo tempo, como potros
Montados em fogo na busca do mar

Despiram o vidro das esporas
arrancaram palavras dos trilhos
cercaram de conchas o paiol

Seguiram o rumo dos rios mansos
os rios alheios ao rumor das tropas
de margens caladas como baionetas

Sentiam sede os anjos exaustos
sede do sal que não amargasse
da água azul que não fosse covardia

Os passos soavam como porcelanas
as asas eram grandes pincéis
os olhos, bruscas mudanças de lua

Assim aportaram nas praias de sangue
engatilharam flores na fronteira
com o nome riscado por punhais

Os anjos exaustos do Continente
negaram mil vezes os velhos heróis
e cobriram com cinzas as vigílias

Afastaram-se das ordens do clarim
dos olhos torcidos como lençóis
dos cavaleiros reduzidos a leões

Trocaram o torpe destino pelo desatino
puseram a prêmio o frágil rosto de cera
gravaram na pedra seu resoluto caminho

Por isso Deus puniu-os com a eternidade
farto do fatídico desperdício que é ver partir
um filho moço, de olhar encharcado de sonho

13.5.08

"pequeno grande mistério"

não é bem uma dor.
é algo mais estranho,
sorridente quase, ido,
difícil sentir, coágulo,
impossível, literato.

11.5.08

"pérola (meninos de rua)"

existe algo antigo, uma antiga fábula
relacionada a uma pérola clandestina.
de superfície multicor, disforme, nua,
o deus sólido parido pelo homem cru.

pérola esta que desce goela abaixo
de tipos mais afeitos a misticismos
causando uma cicatriz na garganta.

esse ter de calar quando se pensa
nas feridas linhas do rosto virgem,
nas mãos roídas de fome e verme,
no aceno que não diz adeus, pede.

calar e pensar que do lixo excedente
serão paridas novas, frágeis pérolas,
brilhantes quanto mais se quebram.

menos esperadas, dadas como mortas,
elas darão torno à vida, e regressarão
como algo antigo, uma antiga fábula,
para seqüestrar o brilho e calar o não.

6.5.08

"a última morta"

para Vó Zula

você tinha metro e meio e não me deu muito,
mas me deu tudo o que tenho e não agradeço.
tua força italiana ou judia, teus filhos homens.
chocava-me o modo como teu rosto murcho
dizia sem palavras sobre palavras nunca ditas.
fumava escondida, mas sabia bem da tragédia
de não se poder esconder nada do coração nu.
você foi sem adeus ou frangalhos de ausência.
é preciso um poema quadrado para falar de ti.
certamente mais se via nos teus olhos violetas,
na tua mancha fértil de incertezas tão seguras.
você foi minha lava genética, e foi tão pouco.
e quando se arrastava levava de mim o rastro.
você que foi avó, mãe, eu apenas, agora pasto.
um nada cheio, além do que se possa rastrear.
“minha pequena”, eu nunca disse e digo agora.
não agradeço o que não posso, estou em mim,
para lamber teus olhos, dizer o que não se diz,

e então fazer da tua imagem lápide, sem grito.

1.5.08

"não o terás"

sei bem que estás na cadeira à espera de respostas.
esperas do mundo tudo e não sabes o que dizer.
sei que, deste papel branco pautado, esperas algo.

não o terás.

sei bem teus pensamentos turvos, incompletos,
tua chama ardente a perigo, tua fome nauseada,
sei que temes e gostarias de dizer “tenho medo”.
gostarias de estar diante do mundo, arriscar-se,
lançar o corpo sem rédeas em amplas pradarias,
entregar-se à brutalidade do golpe fulminante.

mas não te mexes, teimas ir adiante.

esperar um pouco mais, enxugar o suor doce
sobre a testa herege, gelada, desencapar o fio
da conexão mais próxima de um instante puro.
por um momento deixar-se, respirar o oco pleno
da existência ereta, tão nossa e tão além de nós,
abraçar o golpe rubro-prata, minguar os olhos.

e já não estás mais na cadeira, és seiva pulsando.
o passa-tempo divino, de peito aberto esperas.
mas, do papel, já não mais nada além do branco.

não o terás.