27.11.05

"O Anti-Profeta do Caos"


Impressões e fragmentos de impressões depois de ver “No Direction Home”, documentário de Martin Scorsese sobre a vida de Bob Dylan:

“Louvado seja o homem. Ele existe no leite e vive nos lírios. E ouve-se música do seu violino no leite e no vazio arenoso. Louvado seja a pétala interna da carne não exposta, do pensamento suave. Louvada seja a desilusão, o ondular. Louvado seja o sagrado oceano da eternidade. Louvado seja eu, escrevendo, já morto, e morto outra vez”. (Jack Kerouac)

Dylan respira melhor do que a maioria do resto dos homens. Woody Guthrie atado a uma cadeira de rodas num manicômio de Morristown esperando pela sopa rala de coentro agitado demais para ser aceito num mundo sem vírgulas. Johnny Cash oferece a própria guitarra ao jovem Zimmerman em troca de três acordes. Tocar viola para uma multidão logo após o discurso de Luther King na Marcha para Washington. Eis os momentos inesquecíveis do garoto com voz gralhada de Duluth, Minessota, que tocou seus primeiros acordes por acaso, porque achou um violão velho no porão da sua casa e uma vitrola de 78 rotações. O resto é passagem, caminho sem procedência, lembranças esquecidas na chance das possibilidades de erro e acerto, como em tudo o que se move por paixão...

Como em dezembro desembarcar do subterrâneo direto para a neve grossa na McDougal Street, onde garotinhos bem-nascidos vindos do interior das bochechas gorduchas e rosadas chegam para conferir a cena estranha de formigas humanas apinhadas nas calçadas das aparências profanas em constante mutação. Ou bichas discretas procuram cachecóis cheirosos para poderem chorar pela dor do mundo que está tão longe do seu armário quanto da fé cristã no genocídio. Bem ali no Café Wha? ou no Gaslight, onde você podia ver Ferlinguetti em cuecas recitando com os dedos ou com uma máscara veneziana batendo à maquina um poema sobre um rapaz que pensa ser Tom Sawyer e caça caranguejos no Rio do Bronx, imaginando o Mississipi. E no San Reno – enquanto stalinistas e trotskistas brigam para saber qual o regime que planeja matar menos por trás de uma bandeira de sangue – o escritor James Baldwin flutua como um espectro sonolento do Bronx baforando a fumaça do resto do que sobrou do plano para a humanidade, na vitrola roda o som de uma velha cantiga tradicional irlandesa, pelo que Baldwin escarnece com o punho: “malditos irlandeses!”, e banjos e cítaras e rabecas e homens mascarados pendurados nos lustres e homens praticamente nus recitando poemas em pequenos palanques rangentes e mulheres de tranças cheias de benzedrina e moscatel esperando pelo próximo Arthur Rimbaud.

Dylan, com 20 anos, rouba 400 vinis raros de folk, muito Guthrie e Seeger e Williams e Cisco Houston e Leadbelly e Sonny Terry, de um amigo e depois vem a descobrir que John Wayne era o dono de muitos dos discos. John Wayne, 1 metro e 93 de altura, na frente de Dylan, um fedelho bochechudo, dizendo que vai fazê-lo do avesso se não devolver os discos. Dylan empalidece, não sabe o que fazer, mas não perde a calma, são as regras do velho oeste, então os dois começam a falar sobre Woody Guthrie (sempre a salvação do amor comum), até que Wayne se lembra porque estava ali e todo o drama começa outra vez.

Dêem um jeito de ouvir a letra de “When the ship comes in”, composta por Dylan enquanto ele andava traçando a Joan Baez e ambos eram impedidos de se hospedarem nos hotéis de beira de estrada porque, afinal, ela já era um estouro nacional, seria muito bem-vinda, mas não aquele moleque descabelado com idéias esquisitas.

“Ele era Charlie Chaplin. Era Dylan Thomas. Falava como Woody Guthrie. Estava em constante movimento (...) Não era necessário para ele ser uma pessoa definida. Ele era um receptor. Estava possuído. Articulava o que o resto de nós queria dizer, mas não conseguia”, empolga-se Liam Clancy, um dos Clancy Brothers, quarteto meio-acapela-meio-comuna, com os olhos perdidos cheios d’água, muito vermelho depois de uns 30 pints de cerveja ale no balcão de mogno do bar onde Dylan Thomas tomou sua última dose e onde sobrevive a marca da sua inquietude, de sua notável presença em fuligem, logo após Liam ter recitado em transe o desfecho do Lamento no relho do carneiro de Thomas.

“Aprender todos os elementos já conhecidos expressando abrangentemente e conduzindo um sentimento, era a essência universal do espírito de uma época. Acho que consegui fazer isso”. (Bod Dylan)

Dylan cantava como se estivesse preso, querendo escapar. O que torna suas músicas andantes, verdadeiras epopéias, se você for fundo na sua raiz e esquecer os rótulos musicais. Ele cantava de uma forma muito arcaica temas que jamais tinham sido escutados até então. Tinha a linha do tempo na ponta das idéias.

O trecho abaixo corresponde ao discurso de Bob Dylan na entrega do Freedom Award, um prêmio que recebeu em 1963, aos 21 anos, da União de Emergência Pelas Liberdades Civis, logo após o assassinato de Kennedy, pouco depois da crise dos mísseis em Cuba:

“Não tenho uma guitarra. Mas posso falar. Quero agradecer vocês pelo Tom Paine Award em nome de todos os que foram para Cuba. Primeiro, porque são todos jovens e levei tempo para me tornar jovem e agora me considero jovem, e estou orgulhoso disso. Estou orgulhoso de ser jovem. E gostaria que todos vocês que estão sentados aí esta noite não estivessem aqui, e eu visse todo mundo com cabelos na cabeça e coisas assim, que levassem à juventude. Pessoas velhas, quando perdem os cabelos, devem sair. Olho e vejo as pessoas que estão me governando e fazendo as minhas regras, e não têm cabelos nas cabeças. Fico nervoso com isso. Para mim não há mais preto e branco, direita e esquerda. Há só para baixo e para cima, e para baixo é muito perto do chão. Estou tentando ir pra cima sem pensar sobre coisas triviais, como política”.

Ouçam “Chimes of Freedom”, na versão original de Dylan.

Algumas boas letras de Dylan sobrepõem a melodia, como em “It’s alright, ma (i’m only bleeding)”, por isso acabam se tornando uma espécie de mantra, de ciclo frenético de pensamentos por sobre uma essência poética clássica, o que por conseqüência transforma Dylan numa espécie de Xamã, segundo Allen Ginsberg, o profeta beat, ao analisar a letra de “A hard rain's a-gonna fall”, na verdade os seguintes versos: “And reflect it from the mountain so all souls can see it” (e reflito da montanha para que todas as almas possam ver) e “I'll know my song well before I start singin'” (eu saberei minha canção bem antes de começar a cantar), relacionando-os com a essência zen-budista.

Allen Ginsberg volta para a América depois de incrível jornada: deportado de Cuba, porque uma conversa reservada na qual ele criticava a perseguição castrista dos gays vazou até chegar nas orelhas da ditadura. De Cuba parte para a República Tcheca, onde é condecorado com uma coroa de papel e nomeado Rei de Maio durante a Primavera de Praga, para depois também ser expulso do país porque gostava de garotinhos sem barba. Chegando de volta à América, para quem deu tudo e agora ele era nada, recebe ligação de Dylan, que o convida para acompanhá-lo em turnê. Viajam juntos para Chicago, onde Dylan recebe os Beatles no hotel. Ginsberg fica um pouco deslocado, até se embebedar sentado no braço da poltrona de Dylan, depois do que ele levanta e começa a dançar, então John Lennon olha para ele de esguelha e diz: “Por que não chega mais perto?”, e Ginsberg se dá conta de como, apesar de estarem carregando nas costas todo o fardo de uma cultura em mutação, eles eram ingênuos e novos. Então, no meio de uma pirueta, Ginsberg cai no colo de John e pergunta a ele: “Garoto, você já leu William Blake?”, para o que Lennon replica: “Nunca ouvi falar nele”, com uma voz rabugenta, e sua primeira esposa o desmente em seguida e todos riem e quebram o gelo de uma vez.

“Você não pode amar e ser esperto ao mesmo tempo”. Bob Dylan sobre seu caso com Joan Baez e a mágoa de Joan por Dylan não tê-la chamado ao palco enquanto ele fazia uma turnê pela América e ela se sentia como uma groupie entre alucinados que trepavam nas paredes, quebravam o quarto do hotel e viviam sem parar, enquanto ela mesmo se dizia uma careta, que achava que sexo era errado e drogas era errado e álcool era errado e rock n’ roll era errado, porque afinal ela era famosa e tinha convidado Dylan ao seu palco no festival de Newport pouco tempo antes, e Dylan nem mesmo tinha ainda reinventado o rock n’ roll.

Uma boa para ouvir agora: “Love is just a four-letter word”, que Baez pegou de Dylan sem ele saber.

Bob Dylan, sobre as vaias: “Eu tenho uma opinião sobre as vaias... Porque você tem que entender que pode matar alguém com gentileza também”.

“The house of the risisng sun” – a história é a seguinte: Dylan consegue finalmente uma gravação livre na Columbia Records, principal gravadora de NY, e uma das músicas que ele grava é essa canção com raízes no folk melódico britânico do século XVII, muito tocada por Dave Van Honk nos cafés do Village. Depois de gravada a sessão e prensado o disco, Dylan encontra com Van Honk na rua e pergunta se poderia gravar a música num disco. Van Ronk diz que preferia que não, pois pretendia gravar a música também. Dylan diz “oh-oh...”, e a partir daí Van Ronk é obrigado a parar de tocar a música nas suas apresentações, porque todos o acusam de a ter roubado de Dylan que, mais tarde, para delírio de Van Ronk, também é acusado de ter roubado a música dos Animals, quando Eric Burdon decidiu eternizá-la numa balada gótica.

Nas gravações de “Bringing it all back home”, nas quais os músicos simplesmente tocavam livremente o quanto pudessem – e como Dylan planejava montar uma banda que soubesse tocar o blues, chamou Mike Bloomfield para tocar com ele, porque, afinal, o fenomenal guitarrista havia se apresentado a Dylan dizendo que tinha escutado seus primeiros discos e queria mostrar a ele como se tocava o verdadeiro blues, e de fato, disponível na cena, segundo Dylan, não havia ninguém melhor do que ele –, o engenheiro de som, que era fanático por Dylan, pensou durante a sessão: “Deus em vez de pousar a mão no ombro desse cara, deu um chute no seu rabo. Por isso ele não consegue parar”.

Ouçam, quando quiserem ouvir um folk: “Yes, I see you’ve got your brand-new leopard-skin pill-box hat”.

Dylan nunca foi um cantor temático, ou “de protesto”. Aliás, isso é o mínimo que se espera de um cantor: um tema e um protesto. Do contrário é melhor ele fazer outra coisa, tentar uma carreira na assembléia constituinte por exemplo. Bob Dylan segue por um túnel próprio, nem sempre iluminado, muitas vezes confuso por entre bifucarções suspensas, mas sempre absorve quase osmoticamente o que existe no caminho dentro da sua máquina de processar associações frescas e idéias inusitadas. Toda sua força é marcada pela sua respiração, um sopro sem porto nem paradeiro.

“Um artista precisa se cuidar para nunca chegar a um ponto em que ele acha que já viu tudo. Tem sempre que entender que deve ficar constantemente em transformação, sabe? E enquanto você puder permanecer nesse estado, as coisas vão funcionar”.
(Bob Dylan)

Fica a dica para os interessados em nunca encontrar.

24.11.05

"Lamento" (Dylan Thomas)

Quando eu era um rapaz presunçoso, um fedelho,
Semelhante à cusparada dos paroquianos
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de mulheres),
Andava tímido na ponta dos pés pelo bosque de groselhas,
Onde a áspera coruja gritava qual lendária teta,
Saltava em meu rubor, enquanto as meninas mais velhas
Jogavam boliche nos terrenos baldios dos asnos
E na gangorra das noites dominicais, cortejava
Quem quer que fosse com meus olhos maliciosos,
Tanto quanto toda a lua, podia eu amar e abandonar,
Junto ao arbusto negro como carvão, todas as esposas
Das pequenas núpcias de folhas verdes e deixá-las a sofrer.

Quando eu era um homem tempestuoso, um homem e meio,
A negra besta da congregação dos escaravelhos
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de putas),
Não um rapaz e um fedelho numa lua maliciosa
Que submergia e bêbedo como um bezerro recém-parido,
Assobiava durante toda a noite entre as tortuosas chaminés,
As comadres brotavam nas valas da meia-noite,
E as crepitantes camas da aldeia gritavam: “Depressa!”
Sempre que eu mergulhava num baixio de seios empinados,
Sempre que me enfurecia na colcha bordada de trevos,
O que quer que fizesse na noite negra como carvão,
Ali deixava as trêmulas marcas de meus pés.

Quando me fiz homem, o que chamam de homem,
E tornei-me a negra cruz da casa abençoada
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante das bem-vindas),
Com aguardente e uvas no esplendor de meus verdes anos,
Não um gato de rabo movediço na rubra aldeia escaldante
E como se cada mulher em ebulição fosse o seu rato,
Mas um touro da colina no calor sufocante do verão,
Que alcançara o seu supremo e deleitoso instante
Para os modorrentos e oferecidos rebanhos, disse eu,
Oh, muito tempo fluirá até que o sangue frio se arraste
E eu me recolha ao leito apenas para dormir,
Graças à minh’alma entediada, negra como carvão!

Quando eu era a metade do homem que fui
E merecia então as reprimendas dos padres
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de ruína),
Não um bezerro açoitado nem um gato entre as chamas
Nem um touro da colina sobre a relva leitosa,
Mas uma ovelha negra com chifres enrugados,
Ao fim a alma expulsa de sua falsa toca de rato
Se escondia rabugenta quando vinha o tempo das muletas;
E dei à minh’alma um olho cego, flagelado,
Casca e cartilagem, e uma vida de rugidos,
E empurrei-a até o céu negro como carvão
Para encontrar uma alma de mulher para esposa.

Agora não sou mais homem, não mais o sou,
Apenas uma negra recompensa por uma vida estrondosa
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de estrangeiros),
Asseado e maldito no meu quarto onde arrulham pombas,
Repouso rarefeito e ouço a mandíbula dos bondosos sinos
– Porque, oh, minh’alma encontrou uma esposa dominical
No céu negro como carvão e ela aborrece os anjos!
Rodeiam-me harpias que emergiram de seu ventre!

A castidade reza por mim, a piedade canta,
A inocência adoça o meu negro e derradeiro alento,
A modéstia esconde as minhas coxas em suas asas,
E todas as suas virtudes fatais atormentam a minha morte!

tradução de Ivan Junqueira

23.11.05

"Depois de morto, para Consuelo"

texto de Pedro Henrique Leite

Se há alguma peneira nos teus pensamentos um dos grãos me aturde a alma dos
olhos.
Se há um pouco de licor no assoalho do meu corpo foi a causa-vertigem da minha
fraqueza.
Aos poucos... Se há movimentos de vozes, são falsetes da minha intrínseca
ebriedade.
Cadência de puro peso aos meus joelhos meninos que se escondem entre o meio dos
meus braços.

19.11.05

"Homens Comuns"

Outro dia li em algum lugar
que Eça de Queiroz escrevia de pé.

E Errol Flynn
passava no pau creme de amendoim
antes de trepar.

E Sarah Bernhardt
amputou por conta própria
as duas pernas e disse numa carta
que esse era o dia mais feliz da sua vida.

E Mozart molhava a cabeça com água gelada
antes de começar a compor uma sonata
ou talvez fosse Beethoven.

E Chaplin já velho casou com uma guria de 13
e Poe fez mais ainda: casou com a prima de 13.

Li em algum lugar que Erik Satie
dormia profundamente
com um olho aberto
e um assistente
sempre por perto
media sua temperatura de hora em hora.

E alguém me disse, não me lembro quem nem por que diabo
que nas noites mais frias de inverno
Gertrude Stein passava horas embalando um bebê imaginário.

Soube que Stalin, mesmo depois de anos de ditadura no poder
ainda morava com a mãe numa dacha de quarto e sala no interior
e morreu ali de tanto beber
sem deixar nada
a não ser uma carta de amor
não destinada.

Emily Dickinson tinha mania de conversar com alguém
que as pessoas só conseguiam ouvir na sua imaginação.

Li que o pintor Rafael quase foi nomeado Papa
por conta de suas boas relações com a santíssima trindade
e no seu epitáfio alguém escreveu por bondade:
“Aqui jaz Rafael; enquanto viveu, a Mãe Natureza
temia ser por ele vencida; agora que está morto,
ela receia morrer também”.

Lendo sobre essas pessoas
ou ouvindo suas histórias
chego a conclusão de que
meu tesão por sovacos
não é tão estranho assim.

17.11.05

"A ausente" (Vinicius de Moraes)

para uma que está longe... e tão junto de mim

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...

3.11.05

"Uma certa nostalgia que não é minha"

para meu pai e meu avô

Havia quase 30 anos de diferença entre eles
mas tinham as caras parecidas,
o mais velho, Mario Osório,
costumava levar o mais novo,
Mario Renato, domingo nas corridas,
e às sextas-feiras para jogar botão
no clube Caixeiros Viajantes lá em Viamão.

Mario Osório enchia a cara de cerveja,
apostava as calças e a esposa na biriba,
sempre um pouco antes da última mesa,
dava um jeito de arrumar uma briga.

Mario Renato tinha amiguinhos imaginários,
o jeito de não chorar enquanto o pai apanhava.
depois arrastava o velho até o ponto de ônibus,
apenas uma carcaça cheia de coágulos,
depois que os outros viciados
tinham cansado de lhe chutar a cara.

e Mario Renato jamais esquecia dos conselhos do outro Mario:
“não importa apanhar ou bater, importa é dar o primeiro soco”.
cuspia uma bola de sangue e vez por outra um dente vinha junto.
e Mario Renato prontamente limpava com a manga da sua camisa.

um dia, os dois, nas corridas de cavalo, se perderam
porque Mario Renato ficou vidrado num tordilho
que jogou longe o jóquei ainda na volta de apresentação.
Mario Osório estava num daqueles dias.
mandou às favas o caixa-registrador,
jogou nas raias o radinho de pilha
e foi se embebedar a fiado,
no boteco do Agenor.

chegando em casa, vermelho de cachaça,
Maria Zula, velha companhia, perguntou:
“e quedê o guri, pai?”
Mario Osório gritou, mãos na testa, chute na parede:
“puta merda! esqueci o guri no jóquei!”
quando voltou viu Mario Renato sentado na sala dos achados e perdidos,
entre uma carteira de cigarros de prata e um paletó de linho azul-marinho.
fez o sorriso mais sincero quando viu Mario Osório entrar amuado cuspindo no chão.
gritou com o guri: “e tu, por que foi sumir?”, um tapa na nuca lhe desfez o topete,
voltaram os dois sem dizer palavra no que já era quase de manhã.
tão bonito, no Rio Guaíba, o amanhecer.
e tão feliz estava Mario Renato porque
Mario Osório tinha voltado por sua causa,
que nada mais importava além daquilo.

Havia quase 30 anos de diferença entre eles
e eram tão parecidos que se um comia o outro punha a mesa.
amavam-se cada um do seu jeito.
um não dizia o que o outro sabia.
o outro não sabia se sabia direito.

mas Mario Renato adorava quando,
alta madruga,
Mario Osório deixava um bombom com licor de rum assim que chegava do aeroporto (onde trabalhava no setor de abastecimento enchendo tanques de aviões) ao lado da cabeça do guri em cima do travesseiro.
e ele fingia que estava dormindo,
porque o velho cheirava a puteiro,
sem que nada precisasse ser dito,
nem nada precisasse ser feito.

1.11.05

"Morangos e Vinho"

Foram morangos com vinho, que ela comeu no jantar. Agora no chão na minha frente misturados numa poça de bílis e maresia. Foram morangos com vinho ou era minha alma que ela tinha bebido, agora despedaçada em pequenos coágulos cheirosos pelo chão de tábua corrida. Eu trouxe a vodca, trouxe a vida, mas estou sendo perseguido, não há dúvidas, e quero que ela me ache ali no meio da poça, onde posso ver meu reflexo. Onde posso cobrar a dívida do desejo desperdiçado pelo zelo. O reflexo sorri e eu não. E por quê? Porque foram morangos com vinho. Foi agorinha. Não fiquei surpreso. Abriu a porta, um beijo rápido, sentamos no sofá, pernas sobre pernas, aquele silêncio tão raro, então se virou de lado, de olhos fechados, e tudo ficou bem ali no chão de taco esparramado, meu rosto refletido. Não era como eu, e parecia tão eu mesmo. Agora ela dorme no sofá encardido de filme inglês. Ronca, uma vez baixo, outra vez alto, então se engasga, golfa, engole o ar. Na prateleira “A Convidada”, da Simone Beauvoir e um livro de conversação em francês. Na cozinha sirvo a vodca. Estou aqui, pensando: tantos planos, tantos danos, tantos anos... E foram morangos, tão cheirosos quanto o vômito da vida, de vinho, encarnado, de cor tão viva que só podia estar...

Não, não vou dizer isso ainda. Ou será que não eram morangos? Ou será que não éramos ela e eu e sim mais um começo de mais um adeus. Não. Eram mesmo morangos, mas que importa agora, se antes de começar já perdi a luta, abri a guarda, e nem tenho mais alma, muito menos coração, a não ser por aquela bola de carne gordurosa, que é onde depositamos todas as nossas esperanças e desculpas, porque de fato não existem, ninguém nunca os viu, alma e coração, a não ser em compota. Então dizemos que é ali que está o que não sabemos explicar. O diabo com isso! Estou sozinho escrevendo, não que alguém vá ler um dia, nem me importa. Perguntei a ela assim que ela caiu por detrás da porta, ao me deixar entrar com um sorriso, sobre a poça de bílis: quer que eu vá embora? Não, por favor, fique, disse o mar de Copacabana, durante a noite toda, com suas rajadas de onda. Pois fiquei, indo e vindo da cozinha, atrás da vodca, “termino a garrafa e me jogo pela janela para ficarmos quites”. Mas sentei na janela, sob a luz de uma sobra de vela, e, ah! como quis ficar ali para sempre, ouvindo as vozes do paraíso, observando na marquise o movimento de um pombo sem uma das patas, aqueles olhos alaranjados e indecisos, como os meus que, apesar de não serem laranja, mesmo que ninguém entenda, filtram as coisas em azul-turquesa. E as vozes são do paraíso mesmo, não, agora é Alceu Valença, minto, Elis Regina, que me lembra a mãe que foi embora levando com ela a última esquina.

O pombo sem pata dos olhos laranja na marquise. Um vaso quebrado tombado de flores secas na marquise. O pombo sem pata manca até o vaso de planta. “Pela primeira vez vejo um pombo mancar”, anoto na tarja da garrafa de vinho vazia que ela tomou com morangos no jantar. O pombo manca até o vaso quebrado tombado na marquise. Bica a copa de uma flor seca, na rua barulhenta de Copacabana, que em nada lembra o mar, apesar de ter. Anoto outra vez na mesma tarja da garrafa: “um pombo manco sem pata bicando a copa de uma flor seca num vaso quebrado tombado na marquise de um prédio feito de ladrilhos situado numa rua barulhenta de Copacabana me emociona mais do que 10.000 obras de arte dentro de qualquer museu contemporâneo”.

Largo o caderno. Fadado. Perdido. Sem chances. Os morangos! Com folha de jornal, recolho os morangos do chão, como se fossem as desculpas dos pedaços do meu próprio coração, apesar de ser apenas mais um tiro fatal, dentro de um peito que transborda ressentimento, loucura e paz. Levo o jornal com o que penso serem meus restos mortais, de onde escorre sangue demais, mas eu preciso achar que vinho, que ainda vivo, até a cozinha, onde adivinho a primeira impressão da cadeira de Van Gogh sobre a pia com vazamento e uma voz em holandês – e eu não entendo holandês – me sussurra o quanto pode ser miserável um sorriso por muito tempo, pelo que sorrio, pois, como já disse, não entendo.

Ela dorme e ronca na sala, tão minha de repente que imagino filhos, feridas, facadas. Então troco a rumba por Tchaikovsky, olho a sala no seu redor, vejo a garrafa tombada que me lembra o vaso quebrado tombado de flores secas na marquise, alimento de pombos e da noite dos infelizes, tudo como se morangos tivessem alma e o silêncio cauterizasse as cicatrizes.

Talvez seja sina sabida sozinha cortina cerzida sem sombra de dúvida seria outra vez uma garrafa de Concha y Toro, leio na tarja onde anoto meus sonhos, virada sobre os respingos sobre o telefone analógico azul-senão-seria-cinza. Do outro lado da sala, perto da porta de saída e entrada, entendo por fim a explicação da vela, cuja chama navega em ondas de sombra e luz e dúvidas e mistérios, trazendo em si a distância que separa dois corpos náufragos à deriva, tão juntos, tão suplicantes que, assim como a chama da vela vacila, o que vejo escorre pelos lados do que nem sei se sinto ainda. E acabou a garrafa de vodca. Quando vou dormir.