31.12.12

"Mário"




saber que certos olhos
espantam nossas amídalas,
e quando me dizem: estás rouco,
sei o quanto olhos já me espantaram
para chegar a este ponto.

a magia das coisas demora
a nos tocar e, quando toca,
notamos, mas já é outra coisa.

ser outra coisa é tudo
que lembramos e com isso,
na lembrança do que deveria
ser estado mas é passagem,
deslizamos em pedras agudas
e realizamos enfim a comunhão
com as amídalas inflamadas,
o coração rouco de imagens,
as cordas do tempo na garganta
feito A Grande Razão possuída.

uma pena ser apenas um proletário
e, mesmo sendo pouco mais bonito,
não poder escrever como Cesariny.

29.12.12

"escrevo agora como quem me dá a mão"




aqui te embalo para sempre em meus sonhos,
a ti, o próprio, fruto de todo prazer indubitável,
a quem ferimos com nomes e histórias de famílias,
mas que está aqui e agora, ainda circulando em peixe
dentro das veias e da pulsação que nos levará à morte,
e estar diante desta inafiançável situação é também
uma fonte de contrapor a essa pobre velha cansada,
a morte, e que respeito tenho por ti, ó morte, agora,
quando me faltam as veias e as batidas do coração,
como à velha mãe faltaram na hora do enterro cego,
é você que guia os passos que não damos, a dor
que sentimos enquanto dizemos “sou eu que sinto”,
mas é mais que outra coisa, é mais que tudo isso,
e seria tão só você pudesse esta mesma coisa louca:
estar ao menos bem vestida quando me cuspisse
seus tenebrosos decassílabos, além do que odeio
o cheiro do seu caviar russo, e antecipo suas cáries.

28.12.12

exercício espiritual (Mário Cesariny)



(1923 - 2006)


É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

"é preciso ir de vez em quando”



Não irá longe aquele que sabe
antecipadamente aonde quer ir
(Napoleão)


no dia em que precisamos ir, precisamos ir.
podemos voltar em muito pouco tempo,
mas teremos ido de uma vez e para sempre.
as benesses do retorno, elas não envolvem
o que podemos dizer a nosso respeito,
porque em geral não podemos dizer muito.
e se fazemos desse modo brusco, apenas ir,
mesmo que seja para voltar em pouco tempo,
é porque o que podemos falar sobre nós
não nos diz respeito e representamos apenas
o que em nós diz é preciso ir, é preciso.
o que se pronuncia silenciosamente em nós
é o que envergonha a frase e aperta o passo.
mas, uma vez de volta ao retorno inadiável,
voltamos a sorrir, a morrer, como todo mundo.

13.12.12

"em tempos de abstinência"


preciso dizer que pouco importa
a cândida, a clamídia, o fluconazol,
e que eu me satisfaço até mesmo
enquanto me masturbo e penso
em um milhão de coisas porque
sei que você estará ali mais tarde
ou no dia seguinte – e digo mais:
pouco importam também os dias
– e pode ser no outro ou no outro,
eu sei, preciso dizer que agora sei
o que nos trouxe até aqui de novo,
e quero te arrastar pelas ruas louco,
quase morrendo por entre os carros,
e quero te mostrar para as pessoas,
porque algo assim não pode ser uso
exclusivo – é preciso que todos saibam.

10.12.12

"A Cena Inédita"


Um casal de adolescentes. Eles andam a passos firmes pela rua lotada. Uma rua lotada de gente pobre, com cheiro agridoce de cabaré e vendedores, de todos os tipos. De longe, mas não de muito longe, observo o casal, como se fosse qualquer outro casal. Mas o passo deles acelera, então penso que talvez aquilo seja uma briga de um casal adolescente e, talvez preocupado porque já não me lembrava mais como era uma briga de um casal adolescente, continuo acompanhando, mais de perto. De imediato reparo como transpiro e desfaleço muito mais do que o casal adolescente que, apesar de quase correr (e, já posso notar, discutir alto), não escorre um pingo. Então, numa freada brusca eles param; acerto em cheio uma velhinha, pois não tenho os mesmos freios de resposta imediata que têm os adolescentes. A velhinha parece contrariada, inicia uma discussão à qual não dou ouvidos. Creio que, inclusive, observando o casal o tempo todo com um dos olhos, tentei informá-la do acontecimento incrível que se passava bem ao nosso lado. “Veja bem, senhora”, digo, “trata-se de uma discussão de um casal adolescente, a senhora por acaso se lembra de como é isso?”. O efeito da frase não sai como esperado, e a senhora me acerta no flanco direito com uma sombrinha. Que espécie de senhora é essa que anda com uma sombrinha quando a temperatura beira os 40 graus centígrados? Não me atenho muito a isso. O casal está de frente, olhos nos olhos. Não distingo o que ouço, porque talvez eu ouça demais, e ouça, além de tudo, alguns sons desconhecidos dentro de mim mesmo. Talvez eu esteja quase me lembrando de algo muito importante que há muito foi esquecido. Ou talvez esteja prestes a inventar tudo outra vez, o que me entristece, mas é bem mais possível. O que importa é que ali está um casal adolescente, um de frente para o outro, uma menina que parece, porque carrega uma garrafinha cor de rosa na mão, muito menos experiente que o menino, que, apesar disso, parece bem mais abalado com tudo. Quase rio e imediatamente me sinto mal ao notar que a menina, apesar da garrafinha cor de rosa e do jeito todo cor de rosa de menina, já dispõe de uma frieza cínica típica das mulheres que, no fundo, sentem-se acuadas. O menino parece prestes a chorar. Num instante, pela postura de frieza cínica antecipada da menina em anos de desilusões que ainda virão e pelo desalento cheio de tamanho e ímpeto e músculos já quase formados do menino, sinto que há certamente um descompasso necessário entre os sexos, e que, se fôssemos compassados, talvez a coisa piorasse ainda mais. Este seria um pensamento estúpido, se não fosse totalmente verdadeiro. Mas muitos pensamentos absolutamente verdadeiros são estúpidos, talvez a maioria. Enquanto divagava na estupidez dos adultos, quase perdia a mais linda cena. O menino finalmente ouve algo que parece um soco no estômago, mas, como é muito forte, apenas se curva, vira lentamente para o lado, dando por alguns segundos as costas para a menina, parece refletir algo, provavelmente fora do contexto, então se vira novamente, estende a mão à menina. O mundo inteiro congela. A menina nega a mão. Ele então retira como um cavaleiro da távola redonda a mochila que leva no ombro e a coloca com suavidade, mas nervosamente, sobre o ombro da menina. A menina se concentra em levar a garrafinha cor de rosa à boca, fazendo barulhos desagradáveis e, na situação do menino, imagino que mais ainda. O menino dá as costas e sai em sua passada marcial, elegante, porém derrotada, como na maioria das vezes é a elegância e, no caso daquele menino, é também uma antecipação em anos de desilusões que ainda virão e que, imperceptivelmente, nos vão dando ares marciais. Neste momento me lembro de algo, que vem como um cuspe na cara. Algo parece recolocado, algo que eu um dia tive e me foi tirado. Demoro a identificá-lo, mas sei que está naquele menino arrasado, andando em passo marcial, olhando para baixo, às vezes gesticulando com o rosto retorcido para o lado. Nesse momento viro-me, preciso ver a menina. Ela segue andando, bem mais devagar, a todo o momento levando a garrafinha cor de rosa à boca, mas não ouço mais seus barulhos: sei que este algo a que me refiro e demoro a identificar está nela também. Sou acometido por uma completa sensação de ridículo, parado entre o casal adolescente que se separa, olhando ora para um, ora para o outro. Repentinamente a menina para. Penso milhares de coisa em um segundo. Terá desistido de tudo? O que fará o menino, se talvez nem ainda possa beber? Será que ela se apaixonou por outro menino, e ele soube agora? Ou talvez o ame de algum modo, mas precise deixá-lo partir, e talvez isso seja uma forma de amar mais comum do que parece... Staccato. Infantilmente, como um gato recém-nascido, a menina esconde-se atrás da mureta de um prédio e, estranhamente, parece muito tranquila. Prova disso é que continua bebendo da sua garrafinha cor de rosa, e já posso ouvir mais uma vez os barulhos desagradáveis. Além disso, posso jurar que vi um meio sorriso em seu rosto, desses de filme de terror barato. Mas tudo muito, extremamente infantil, escavando a essa altura o meu peito em busca de mais informações que ficaram por anos abandonadas. Deixo-a para trás. Ao tornar-se uma criança, automaticamente perde seu encanto adolescente, e de crianças não entendo. Além disso, sinto-me miserável com aquele meio sorriso de Conde Drácula e, acima de tudo, sinto muita pena do menino, mas talvez não acima da pena que sinto de mim mesmo. Ainda assim, por algum motivo, sigo já suando em bicas e vejo, a alguns metros, talvez muitos, o corpo do menino que, feito uma locomotiva cujo piloto se drogou, perde o controle em todo o seu peso de chumbo e fogo. Ainda assim, parecia uma locomotiva, e isso deve ser respeitado. Um homem arrasado torna-se automaticamente um homem atraente, contanto que não seja você mesmo. Mas ele andava rápido demais e eu já me sinto velho e cansado. De todo modo, pude ver quando, ultrapassando o último prédio da quadra, desviando por um fio de um ônibus, cujo motorista xingou um altíssimo palavrão incompreensível, ele girou feito um leão de circo o corpo para trás de uma mureta e, depois de descansar alguns segundos, fechar os olhos e abrir mil vezes, aproximou vagarosamente a cabeça e começou a espiar. Já eram duas crianças brincando de esconder. Eles se encontrariam outra vez, provavelmente em segundos. Senti-me extremamente velho, como que arremessado pela janela de um trem a todo vapor. Para não me sentir pior, decidi eu mesmo correr a toda velocidade, no que teria, aliás, dado um banho no fedelho, e cheguei à residência aos saltos para, desse jeito mesmo, escrever a cena inédita. Porque tem coisas de que precisamos correr para não esquecer jamais.

6.12.12

"Morre Oscar Niemeyer"





Hoje morreu Oscar Niemeyer e, no entanto, aqui escrevo para você. Talvez o fato de ter morrido Oscar Niemeyer, depois de tanto tempo, seja justamente o que me faça escrever para você. Existe uma morte imperiosa que cerca nosso maravilhoso acontecimento. Sinto-me como um homem da capital, que sente “a vida em toda a sua plenitude, em toda a sua fragilidade”. E eu sempre tive uma certa tendência a fogueira, então dá-me palha.

Existem coisas mais absurdas que a morte de Niemeyer, que, aliás, é um dos acontecimentos menos absurdos de que se tem notícia. Eu e você, por exemplo; que absurdo é poder dizer “que absurdo somos eu e você”.

Porque sempre há algo que ensurdece quando o amor é jovem. E ainda somos jovens, eu reparo, veja bem como andamos pelas ruas, deixando escorregar às vezes timidamente as mãos entrelaçadas como quem não é capaz de admitir completamente que é feliz; como você é sempre quase atropelada porque eu ando rápido demais e me enfio entre os carros – ah! existe muita coisa aí, nesse acompanhar uma possível morte a dois entre carros indiferentes – e você vê, meu bem, como todos os carros têm este sombrio propósito de, quase nos acertando em cheio, louvar nosso difícil e renascido encontro a cada esquina.

Desculpe, mas não posso admitir sem gargalhar como um louco. Ainda sou muito novo para ser completo, talvez eu ande como quem está atrasado para algo porque, de fato, eu talvez esteja atrasado para muitas coisas. Se pudesse, pediria que você me ensinasse a passear. Seríamos então uma das curvas das quais é feito o universo curvo de Einstein. Esqueci por completo se um dia tive algum talento, mas ainda não me sinto nem um pouco desesperado, a não ser quando penso que não preciso mais de nada porque tenho você, porque você me tem. Então a coisa fica mesmo apavorante quando me dou conta de que me tornei um tipo capaz de assistir à novela das oito e fazer breves comentários como “ela não deveria ter feito isso” ou “abre logo, seu babaca”. A questão é: apenas no amor existe a mudança. Estou disposto a mudar, ou melhor, me jogar de vez no que relutei em considerar “a verdadeira vida”. Sim, ficaremos apavorados, mas, meu deus, você tem todas as caras, todos os modos sutis e violentos de mexer as mãos e espremer os olhos e abrir sua boca imensa e alisar minhas vontades e me olhar no banco do ônibus enquanto eu finjo que não te vejo. E mais uma vez lembro de supetão que hoje morreu Oscar Niemeyer, o arquiteto. Morreu Niemeyer e eu estou vivo, então decidi escrever para você, justamente porque morreu Niemeyer, às vésperas de completar 105 anos, e eu estou vivo, vivo! Não vamos dar nome algum a isso. Vamos.