12.7.20

“baby buda”



quero aqui no meio desta
confusão poder aprender
a estar desatento de mim
sem, com isso, me perder.

observo os tipos vaidosos:
o que conta seus ganhos,
o que conta suas perdas,
o que diz como não conta,
o que conta como não diz.

quero ser o que não conta
mas sabe o que não conta
e, sem contar, se esquece
e se esquecendo aprende.

fazer do pequeno, grande
e, do grande, o que passa
sem deixar grande rastro.

olhar para o varal vazio,
tão perfeito de ausência.
não pensar na roupa suja
mas no corpo que cobriu
a roupa suja com sujeira.

derrubar todas as portas,
receber o que sem nome
vive atrás do meu futuro
e morre além do passado
na mata funda da clareira.

participar da grande feira:
os bolsos cheios de nada,
com a fome dos planetas.

arrancar por fim os olhos
e tomar banho no escuro:
escorrer no ralo do nome.

dar migalhas aos filhotes,
deixar sem fazer barulho
o leão dormir com fome.

9.7.20

“estamos sempre enganados aqui”



a coragem é o cuidado dos desesperados,
o amor deve chegar ou então morreremos,
morreremos mesmo que ele não chegue,
mas é preciso saber como nós queremos
que ele chegue a nós: se morto ou vivo,
nós vivos ou mortos, porque mesmo tal
notório genocida, além dos mal-paridos
também são frutos, ainda que amargos,
de um instante de amor, o mesmo amor
produziu todas as guerras e atrocidades,
porque mesmo o mais torpe fomentador
da violência sentou por um instante e viu
sua própria existência, mesmo enganado,
e pensou: eu faço o que faço pelo amor,
ou o que perdeu o amor, perdeu e nunca
mais esquece de pensar nele, como a luz
artificial num quintal de meio-dia, todos
nós sentimos, na pura escuridão da vida,
que nos falta amor, e mesmo os que nunca
mais sentem amor de tanto terem recebido
e por isso desistem, porque não enxergam
o que arrastou seus esqueletos animados
até o ponto em que desistirão de procurar
o caminho de onde se veio e aonde se vai,
mesmo os desistentes inundam seu amor
pela calçada suicida do santo desperdício
e o amor deve chegar, como um gato gris,
como baleia dentro da barriga ou pólvora
que se respira quando estamos por um triz
na trincheira em que dois lados escondem
duas vontades de amor: um amor que seja
contrário de outro amor, sem saber como
dois amores podem estar enganados aqui,
mas estamos sempre enganados aqui, nós
somos o que se enganou em nós do amor,
aquele pássaro inaugural contra a vidraça,
que vinha pulsando de força e vida plenas,
até que o vidro, a luz artificial num quintal
de meio-dia, o sol invernal que interrompe,
parece querer dizer: devagar também seja
a pressa de cada destino que vara o desejo,
a fome também seja o ventre cheio de paz
do medo fecundo em nossas barrigas de luz,
e mesmo assim o amor chegará, como cruz
na fé inanimada por pensamentos de saída,
na vinda de um deus ou da cura provisória,
porque tudo deve ser provisório, mas não
o amor, que virá, como o gelo no focinho
do mamífero ancestral que rumina tempo,
na curva violeta de um colapso epifânico,
ele chegará e vai nos permitir termos feito
tudo que fizemos, ainda sendo os mesmos
ridículos, iluminados, engolidos de medo,
sentados ou de pé, nas filas ou nos retiros,
matando ou morrendo, da raiva dessa lira
que embala todas as dúvidas em uníssono
na fé pelo veneno do adolescente magro,
ou no vulto precioso de uma canção ruim.

1.7.20

“infinitas vinte e quatro horas”


eu preciso salvar apenas um dia,
inventar um deus e não ter vergonha
por estar perdido e por não senti-lo.
criar a matéria da sensação não sentida
e chamar deus mesmo que ele não possa
fazer nada além de ser um tal mistério
que com mão não se toca, com língua
não se fala, com palavra não se pronuncia.
não chorarei agora com a coragem de deus,
este é outro problema: deus não se empresta.

necessito de uma coragem toda e só minha
para poder chorar e viver por este único dia
com a pequena sensação que me foi dada
e sentir o gosto salgado da minha fúria
os sais minerais da minha água própria,
os elementos de pedregulho da minha paz,
que vem do nada e para o nada volta e fico
sem dar nome à a nada com estas palavras.

estas palavras nunca darão conta
da dor que me fazem escrevê-las.
com mãos que nada mais agarram,
eu preciso agora escrevê-las levado
pela dor, mas não escrever contra ela,
pois tudo que agarrei me abandonou,
escorreu pelos meus dedos inchados,
pois eu perdi enquanto comemorava
e ganhei enquanto perdi solenemente.

eu preciso ser bem menos inteligente
para poder ver e me entregar e estar nu
diante do abismo que toda inteligência
abriu diante dos meus pés sem direção.

que existe um deus, ainda que me seja
vergonhoso admiti-lo dentro da fraqueza,
dona do magro dia que preciso salvar.

preciso falar menos sobre o que preciso
falar e sobre o que preciso aqui desejar,
enquanto escrevo menos como um poeta
e mais como alguém que nunca viu nada.
porque a falta de visão me leva ao desejo
e desejo sem visão é como um crocodilo
com a boca fechada e olhos arregalados
de fome silenciosa e paciência de muro
enquanto corro em círculos e tenho pressa.

uma vida inteira sem ficar de pé
agora é uma vida pequena de pé.
de pé como se estivesse deitado,
de pé como se estivesse perdido,
de pé como se impossível agora
sentar para descansar ou sentar
para desistir, ainda que os amigos
existam: eu não sou meus amigos.

chorar com toda força, se ela vier,
pela fraqueza com que pude sorrir.
presentemente, salvar apenas o dia.
sem estética para agradar o que nunca
salvou um dia enquanto eu ganhava
maiúsculos enganos no chapéu das horas.

ser impotente a toda salvação que não
a salvação de um dia e não do outro.
o teto recolhe a ferida aberta do olho
e o segundo em que decidi não pular.
não pulei, não pularei, eu quero sentir
a dor da ferida para gostar da ferida,
agora que a dor é palpável e ela fica
na antessala de lembranças rainhas
sem aquela ânsia de entrar ou de sair,
sem combustível para longas viagens,
agora andar descalço e fazer do choro
a marca na estrada que o vento seca
por isso é bonito chorar de poder sentir
o que não podia sentir para ser igual.

quero sentir o que não quero sentir,
abrir os braços para o carinho sutil
do deus que criei quando me cansei
de ser o deus implacável da minha
contida presença nesta vida surda
e não ser igual e não fechar nunca
os olhos e olhar a parede para dizer:
eu te amo, parede do meu abismo.

transtorno de salvar apenas um dia:
e só por um dia poder estar vivo.
com tudo de pequeno que me cala
e tudo de imenso que me escorre,
pelas calças de um medo sem sono.