30.3.06

"gosto do gosto da mesma rosa de gertrudes"


"estou muito ocupada
tentando entender
o que eles querem dizer
pelo que eles dizem"
(Gertrude Stein)
e se uma rosa é uma rosa e roseta
no rossio róscido do riso rosicler

fazer sempre é só uma questão de
transformar rosas em novas rotas.

e já que não fiz o que queria fazer
fui até ali ver o que o querer fazia.

e fazendo com que o fazer quisesse
fiz aquilo que todo mundo deveria
fazer já que agora de medo estremece
o medo do medo do tremor do vértice
veto do vento volátil que volita ventas
vacina vencida veneno que Rosita roça
russa rosa regaça no reduto do meu rijo
que rosna rasteja arrasta ereto e de resto:

penso em Gertrudes.
seu retrato grisalho.

é só rever seu retrato
grisalho retrato grisalho
cabelo grisalho aparado que
fora tonturas e absurda dor no fígado
me sinto preso e peço se posso sair sozinho
que muito me dói uma questão no caminho:

se você tem uma coisa na sua frente
o nome é apenas o que você dá a ela
mas se devagar você sentir aquilo
que existe dentro da coisa em si
ela passa a não ter mais nome.

isso por mais que você tente transformar
uma rosa em robusta racha de rosto rastro
rugoso de roxa roséola no risco resoluto
e roto do arroto que resta do rótulo ruante
no doce dorso revolto do rosilho sem rota.

29.3.06

"Sutra Girassol" (Allen Ginsberg)


Caminhei nas margens do abandonado cais de lata onde outrora
descarregavam banana e fui sentar na sombra enorme de uma locomotiva lá perto
para olhar e chorar o sol morrendo em ladeiras sobre as casas todas iguais.
Jack amigo Kerouac sentou-se ao lado no ferro de um mastro roto partido
e a gente caiu na maior fossa do mundo, os dois ilhados, dois contidos
na rede das raízes de aço,
e eu e Jack pensando os mesmos pensamentos da alma.
No rio a correnteza de óleo refletia o céu rubro, o sol caía
pelas alturas finais de San Francisco, sem que houvesse
peixe nessas águas, sem que houvesse um ermitão nas montanhas, só a gente
com olhos de ressaca e remela, feito vagabundos, cheios de astúcia e cansaço.
Olha só um girassol, Jack então disse, e havia o vulto inerte e cinzento
seco, do tamanho de um homem, recostado
num monte milenar de serragem.
- Eu pulei de alegria e era o primeiro girassol de minha vida, eram memórias
de Blake - essas visões - o Harlem
e os rios do inferno-leste, sanduíches indigestos trotando
um ranger de pontes, carrinhos de bebê encalhados, esquecidos
pneus de bojo negro careca, penicos
& camisas-de-vênus, o poema da margem, canivetes, nada inox, só o mofo
o lixo de tantas coisas cortantes cujo fio passava
para o passado -
e o cinzento girassol se equilibrando ao sol-posto,
desmanchando-se abatido na invasão da fuligem, da fumaça, do pó
de velhas locomotivas no olho -
corola e também coroa com as pontas amassadas virando, com sementes
despencando do rosto, rompendo em breves dentes um dia
claro, raios de sol grudando em seu cabelo riscado
como uma exangue teia de aranha de arame;
caule com braços-folhas jogados, os gestos da raiz de serragem,
pedaços de reboco minando nos galinhos queimados
e uma mosca estagnada no ouvido,
você de fato era uma incrível coisa imprestável, ó meu girassol minha
alma, e como eu te amei então!
sujeira não era parte do homem, era a parte da morte e das locomotivas
humanas,
simples roupa empoeirada, o simples véu da pele férrea, a cara
da fumaça, as pálpebras da escura miséria, a mão
ou falo ou tumor mortiço do imundo motor moderno industrificial disso
tudo, o bafo da civilização poluindo
tua coroa muito louca de ouro -
esses turvos pensamentos de morte, a grande falta
de amor em fins e olhos tapados, raízes abafadas em areia
e serragem, os dólares raspantes elásticos, o couro das máquinas, as
tripas enroscadas de um carente carro que tosse, as solitárias
latas baratas com línguas rotas de fora, e o que mais seja, a cinza
que escorre pela boca na ereção de um charuto, a boceta
de um carrinho de mão, ou os seios acesos de viaturas lácteas, o rabo gasto
que as cadeiras expelem, o esfíncter dos dínamos - tudo
isso embolado nas raízes-múmias-
e você aí de pé na minha na tarde da minha
frente, a sua glória em sua forma!
beleza perfeita, um girassol! uma tranqüila e girassol existência
excelente e perfeita! um olho doce natural para a melancolia da lua
nova, desperto vivo excitado
sacando no crepúsculo sombra a brisa mensual de ouro aurora!
enquanto você lançava blasfêmias
para o céu da via férrea e sua própria floralma,
quantas moscas zumbiram na sua extrema imundície
sem ligar para nada?
Quando, flormortapobre, você esqueceu que é uma flor?
quando olhou sua pele e decidiu que era a velha
suja locomotiva impotente? o fantasma de uma
locomotiva? o espectro e sombra de uma já poderosa
locomotiva americana maluca?
não, girassol, você não foi locomotiva nunca, você foi sempre um girassol!
você, locomotiva, você é o motivo louco de sempre, a locomotiva!
pensando isso peguei o grosso girassol esqueleto e o finquei a meu lado
como um cetro
fiz o meu sermão à minha alma, e também à de Jack, e tambérn à de todos
que ainda queiram ouvir:
Não somos a sujeira da pele, não somos nossa locomotiva medonha triste
poeirenta com ausência de imagem, nós somos todos uns lindos girassóis
por dentro, somos sagrados por nossas próprias sementes &
peludos pelados dourados corpos de ação virando girassóis ao crepúsculo
loucos girassóis formais e negros que esses olhos espiam
na sombra da locomotiva maluca margem beira
San ladeiras Francisco
tarde de lata
sol-posto sentar-se vision.

*tradução Leonardo Fróes

28.3.06

“parati”

se te visto com meus olhos você diz que é errado, mesmo assim li teu texto, não com os olhos mas com a boca, pouco antes de por causa da falta, de mãe me doeu você ter me mandado embora daquela maneira mesmo que eu tenha engolido teu texto assim como hoje engulo este porque neste pensamos ao mesmo tempo no mesmo poeta percevejo das horas vadias vazias que se foram para sempre deixando para trás apenas meu resto e teu rastro na ferrugem da banheira que secava momentos durante os quais passeávamos juntos no parque e contávamos mentiras baixinho deitados sobre o lençol velho e fajuto, você vomitava gomos de cacau enquanto eu forjava seriedade castradora até que você me soprava música numa língua inventada pela minha orelha sem pensar em nada a não ser dois sendo um mesmo e andávamos sem as mãos dadas porque éramos fortes o suficiente ou pensávamos enquanto esquecíamos o quanto era injusto ficarmos juntos precisando tanto cada um de si mesmo enquanto olhávamos casais de braços dados, com seus semblantes tranqüilos e desesperados, e ríamos porque eles eram tão assustadoramente assustados quanto nós mas nós preferíamos ficar sozinhos juntos porque assim o susto dava mais frio no bucho cheio de barulhos quando deitava minha cabeça no teu estômago frágil e dormia e sonhava que estava sonhando um sonho rápido como a vida já que no fundo mesmo sonhando não era capaz de sonhar pois não sobrava o tempo que já tinha gasto pensando no que fazer contigo ali do meu lado sendo que eu estava tão longe que esquecia do sonho sonhado dentro do sonho, como disse uma vez Edgar Allan Poe com relação à ilusão vital dos homens, quando por fim eu acordava e percebia que o homem que era eu e que estava te vendo dormir ao meu lado no fundo era mais um sonho medonho dentro do sonho no sonho da vida porque de olhos abertos não era possível te ver dormir já que “fui embora, tenha uma boa tarde, para sempre” melhor que o sonho bom e portanto esquecido como nos esquecemos de repente de nos dar bom dia e os beijos mordiam a palidez dos rostos na forma de dias nublados que foram ficando maduros e duros e escuros porque afinal esperávamos pelo futuro sem tempo de perder tempo passado juntos porque afinal lá fora o mundo é curto e enorme e pode quem sabe te escolher como trunfo ou arrancar teu pé, mas tardes que agora tardam as tardes saíram do armário caro e, claro, não é do final do sol que se vive, como o sol que apagou quando pensei no mesmo poeta enquanto comia uma folha de alface, quem diria eu, comendo alface, mas não se preocupe porque o alface não tinha o sal que você pensou sem o sol na caneca debaixo do braço no momento em que pensei nos teus pés tortos perto da minha boca miúda medrosa engolindo pequenas pedras plantadas por cactos sem água quando lágrimas se ocupam da culpa por molhar a fronte falsa da tristeza e olhos púrpuras já não maquilam mais tuas certezas já que não são o bastante para manter a diferença próxima, mas tuas pupilas me lembro que as via da cor daquela rosa de plástico quebrada como as rosas que estavam no poema em que pensamos juntos, tão longe você de mim, tão para sempre ou talvez fosse apenas um ventre, sim, era mesmo um ventre preso por cordas e havia a palavra “lasso”, a ridícula palavra “lasso”, e talvez o poeta e o poema que eram teus apesar de meus – não fossem, os dois, escravos do oposto do posto que ocupas no meu intestino – fossem para outro projeto de pantufas lado a lado na beira da cama e é claro que isso importa mas não tanto a ponto de te perguntar por que aquelas rugas na testa do violão solista que corta notas enquanto escrevo no branco com o ponteiro das horas, “depois de ti não aprendi mais nada”, ainda espero ansiosamente por tuas curvas calamitosas, por mais que tua espera não seja por mim, por mais que tua lembrança tenha me reinventado no esquecimento, imagino porque estou vivo – ou isso é a morte? – mas se ainda consigo escrever quer dizer que talvez esteja mesmo morto pois só os mortos para a vida conseguem escrever sobre ela como um fantasma que vigia de cima dos telhados manchados da tua lembrança em tantas garrafas de vinho de mesa que misturado ao meu sangue ralo me faz passar vergonha quando lembro que você me negou uma só vez para sempre – coisa que nem Pedro fez com Cristo! – e disse em seguida para arrombar ferida que eu jamais seria capaz de amar alguém e, com toda razão, sem porém, jogou pela janela uma pomba branca depenada sem asas que até então atendia por “meu coração” e caiu bem perto de um homem negro de terno sem uma perna no ponto de ônibus das almas vagas como o poeta que no poema, momentaneamente, como num pesadelo disfarçado de sonho no som do sino pensou contigo e comigo através de mágica, e estamos tão longe um do outro e presos neste momento gruta em que o céu se me nega porque só vejo o erro do teu reflexo me dando língua e eu precisava tanto te dizer que não sei o que você precisa ouvir por isso digo tudo e não digo nada porque de fato sei da dificuldade de ser o mesmo quando as coisas não saem como queriam os outros que me diferem de mim mesmo e se eu pudesse estar em vários lugares ao mesmo tempo sem ser visto em nenhum lugar estaria agora te vendo escondido entre teus cabelos e tua nuca e teu cheiro avinagrado de coragem por mais que agora, enquanto escrevo esta bobagem pensando que pensamos juntos por um tempo no mesmo tempo do fim das horas do mesmo poeta e na mesma tristeza, por mais que essa tristeza já estivesse chumbada em mim desde o dia em que você veio e foi, por mais que tua mão na minha imagem seja não mais que mais tarde parte tua de mim do que antes cedo era nem meu mesmo ainda, mesmo assim gostei de saber que andas lendo coisas boas e que ainda pensas na morte da mesma forma carinhosa que eu.

26.3.06

“réquiem para minha caneta”

meu mundo são esses passos firmes no assoalho
sobrados em fila mudam as cores dos telhados
porque palavras esquecidas na dúvida das asmas
tropeçam fúnebres e fundam estrume de passado morto
mas de cor viva e desejos nítidos malditos e explicados
mortos doces com os quais você se lambuzou de mim.

e se é uma busca injusta
desculpas não servem
justifique as trevas:
que seja desvairada!

é triste o modo como morre uma caneta
é bem mais triste que a morte humana
é triste quem não repara no fim da tinta
mas complicado
antes que eu me esqueça
é se apegar às cores
do desejo assassinado pelas linhas.

porque sou uma caneta seca e cínica
que cospe fôlego quente na pele das mesas
sou vida alheia tingida de tudo que falha a tinta
do sonho xucro de uma civilização anônima
doentia estimativa de furor de gênio.

mas a noite escorre e vaza cômica
no cartucho sujo do meu lamento
para o fim da carga que carrega pus
palavra filha abortada de olhos lentos
arrancada do leite materno vaga idéia
da tinta cinza no meu sonho azul anil.

e enquanto morre minha caneta
velha caneta que eu uso agora
e que escreve ainda absurdos
e pigarra e sofre como eu

um homem grita lá fora:

“pamonha! cural! tem pamonha!
tem pinha! tem gostosa!
tapioca com recheio de coco!
gostosa! gostosa é a pamonha!”

e então me esqueço da caneta
esquecimento explicação para a dor
eu pobre ingrato que não teve sorte
presentear tua boca com essas palavras frias.

caneta boca linguajar vergonha.

me dou nos pêlos e você está aqui
entre meus dedos e meus sonhos
cuspindo e rindo vertiginosamente
tuberculose entranhada no cérebro.

te mato portanto
sem adeus ou pranto
te mato no mar sem ar caneta
mas te deixo bendita no fio do risco
porque sou tão ou mais barato que você.

24.3.06

os malditos não choram
ou
elegia ao pão de cada dia
Dedicado a John Coltrane e Tia Mulata
pão beijo na boca padaria madrugada café na cama ereção matinal namorada filé com fritas tédio fugidio declínio a cama levita uivo desejo pálido cópula evita destino trágica relação mutante orgulho cálido ovulação borbulhante de pus sangue escárnio casamento.

pão bebum no ralo da sinuca bafo de pinga punho escarro fétido na cara tapa de quem parece tua própria cara lavada amarga verniz da morte acalentada acende desfiladeiro armas e corações partidos copos de vidro mesas onde brindávamos olhos fechados todos até o fim da noite amizade.

pão passo firme soalho ímpeto de mãos vazias aos prantos pavor pecado bafo frio cigarro meias longas unhas curvas túmulos dos teus desejos medonhos sonhos cultivados sempre para serem corroídos ombros em contrações latentes do teu sorriso sujo guardado junto do teu contato em esponjas no sol da luz do banho sob o olhar preguiça que guarda costas até a noite quando sinais repetem sonhos que se repetem hoje quando sou inútil sem tuas sardas no meu travesseiro.

pão que trás e leva esconde pecado perdão diário de dó de ló de nossas mentiras feitas de alho no ritmo do vai e vem do nó da aureola sobre a viga pulsante recente mácula a cada pão que sopra o hálito do diabo nas orelhas maltratadas por razões entranhas estranhas ao próprio diabo que é você mesmo camisa esgarçada calças cofrinho com saco de pão nas mãos voltando pela madrugada sozinho cara lavada perfume para outra até cair nos braços da mesma maior pecadora aceita e recolhe os cacos da fatia de amor que sobra da devassidão.
pão eterno cúmplice único a quem não precisamos jamais perdoar por seus farelos ou pedir perdão pelos sacos escuros onde os guardamos à noite quando só as formigas se mexem para sempre abandonados nos ganchos chumbados em parede frias capachos da dor para cuja cura muitos murmuram destinos pecados mentiras.

23.3.06

"Poesia" (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

“doce veneno escondido na morte inicial”

a poesia indecisa
é uma mentira
retinta
(doce)

que contada disfarça
buracos com bolotas
de algodão
(veneno)

o poeta é um morto
que morto pode ver
sobreviventes
(escondido)

mas ao ver bolotas
nos devidos buracos
as arranca com raiva
descobre ódio enterrado
assusta a morte desatenta
enfia as bolotas nas narinas
onde por fim e de fato elas
bolotas poesias indistintas
deveriam ficar para sempre

até o próximo poema buraco
até a próxima mentira passada
a limpo que sobrevive
(na morte inicial).

"Mendigo pede trocado para Rufus, O Lenhador"

*fonte: Pasquim














- Oi, tio, você me dá um trocado?

- Você vai comprar maconha, que eu sei.

- Então, vai dizer que você também não gosta...

- Tem razão. Vamos logo, antes que nos reconheçam.

21.3.06

"Julie London"

Da última vez foi de tirar sangue: uma pena na cueca. Quem era a galinha? Dois dedos de uísque na garrafa. Agressões verbais, seguidas de hematomas no pescoço, intercalados com gritos lancinantes de ódio e paixão. Ele voltou um mês depois. Estava mais magro, tinha sujado a camisa com gordura numa pastelaria chinesa. Viu a pastelaria sendo lavada, um cheiro terrível adocicado, ficou lilás. Correu até a casa dela. Tanto tempo que o porteiro já não reconhecia.

A porta entreaberta. A mesma luz vermelha. A casa escura com exceção de um caleidoscópio de papel reciclado, que iluminava uma mariposa minúscula no teto do quarto. O gato na cama emaranhado nas cobertas. Gato odioso, ele o adorava. Pôs a cabeça de fora e começou a miar mostrando os dentes para a mariposa, que se mantinha indiferente no teto. De início, aos dois novos estranhos, ver a mariposa e falar com o gato: saída mais natural e constrangedora. Logo depois um se levantou da cama, o outro sentou na poltrona, depois outro desencontro, então finalmente se abraçaram. O abraço dele durou mais que o dela. Mas ela permaneceu em seus braços feito uma marionete oriental sem luxo. Depois se largaram. Ele passou então a bater o pé no chão. Os dois sempre riram juntos dessa mania dele de bater com o pé no chão quando não sabia o que fazer. Mas dessa vez não teve risada. Ele tinha vindo atrás de perdão, orgulhoso demais para pedir, burro demais para entender que a questão não era de perdão, era de perda. Mas ele precisava dizer qualquer coisa, que não fosse mais sobre a mariposa. Não disse nada, tirou os sapatos. Então ela sugeriu que tomassem uma cerveja, assim, bruscamente, como na primeira vez em que se encontraram. Fazia dias que ele estava com hipersensibilidade do cólon, o que significava cagar sem parar. Pensou nisso quando aceitou a cerveja, forjando o brilho nos olhos, então respirou fundo:

- O gato cagou aqui.

Então se agachou debaixo da cama e gritou:

- Três cagalhões!

Voltou à poltrona sorrindo, e ela simplesmente coçou o nariz e foi até o banheiro. Apanhou um punhado de papel higiênico e recolheu a merda do gato. Uma bosta seca sobrou, grudada na fenda de uma tábua de taco. Ele disse:

- Ficou uma aqui.

Ela voltou e apanhou com a mão. Deu a descarga. Ele ouviu passos no taco rachado. Ela voltou para o quarto com duas latas de cerveja na mão.

Nada foi dito com muita clareza ou firmeza. Ele tentou um pouco de franqueza. Ela falou que não estava preparada. Precisava secar as lágrimas. Um silêncio imperial estourava as veias das suas mãos sobre o joelho. Ele levantou para trocar as latas pensando em reumatismo. Quando voltou, disse a ela que se arrependia talvez do teor, mas não do conteúdo da última discussão. Mas estavam ambos exaustos. Ela bocejou sem força e foi até a janela ver a lua. Ele, sem saber mais para que continuar andando, enxugou as latas num instante e trouxe de uma vez outras duas. Então ficou concentrado no caleidoscópio. Tocava uma música brega dos anos oitenta no rádio:

- Você gosta disso? – ele perguntou de repente, com o pescoço enterrado, mas delicadamente.

- É... Eu tenho mesmo cara de quem gosta dessa merda – ela disse sem disfarçar o sorriso, um velho charme.

Dessa vez não funcionou. Eram dois pombos de asa quebrada numa arena de tourada. Ela se levantou da cama e foi até a prateleira, onde ficavam os livros e o rádio. Pegou um livro. A rádio saiu de sintonia e começou a chiar.

- Essa porra dessa antena mal colocada – ela disse inexpressivamente. – Esse livro é teu.

A Gorda do Tiki Bar, do Trevisan.

- Você gostou? – ele perguntou forjando interesse, não era dia para verdades.

- Não é meu tipo de leitura.

- Mas gostou mais do que do outro...

- Muito mais.

...

- Você quer que eu vá embora?

- Daqui a pouco, quero sim.

Ele levantou, levou as mãos às próprias ancas e permaneceu assim, de pé diante das costas da mulher. O insuportável barulho das folhas xingadas pelo vento lá fora. A mariposa também o tinha abandonado. A mulher virou meia cabeça. Estava apoiada na janela. Uma nuvem tinha transformado a lua num conto de Allan Poe.

- Você não quer mais uma cerveja? – ela disse.

- Você não quer que eu vá embora? – ele errou.

- Eu disse que quero, daqui a pouco – ela gostou.

- Pouco pra mim não é nada pra você – ele foi embora...

...Até a cozinha e pegou a última lata. Engoliu seco, a testa suada, e cuspiu na pia. Encheu os copos e sentou outra vez no sofá. Tomaram a cerveja em silêncio. Ela bebia como um bem-te-vi. Ele tomou de talagada e começou a amarrar os sapatos logo em seguida. Demorou mais do que o normal. O contato de um cadarço com o outro a irritava profundamente. Tudo nele de repente havia se tornado mecânico e irritantemente previsível. Ele mesmo sabia disso. Mas não sabia o que dizer sobre isso. Era apenas a verdade. Não havia mais o que se dizer além de: “o tempo anda corrido, muito corrido”.

Então ficaram os dois, ainda por um tempo, procurando seus pedaços no chão do quarto. Depois ele se levantou e foi no banheiro. Seu mijo virou uma catarata na latrina. Para ele era sangue, queria que fosse sangue. No quarto ela chorava em silêncio porque no rádio tocava you don’t have to be a baby to cry. O gato havia dormido com a língua de fora na cama.

- Acho que a gente se vê por aí então – ela disse quando ele apanhou a mochila.

Se despediram cordialmente na porta, com muita distância e educação, quando ela segurou a mão dele:

- Não me procure mais – disse o cérebro. – Fica com deus – disse a boca.

- Prefiro ele fora dessa.
Desceu as escadas amuado, sozinho como sempre, irritado e palpitante. O coração com vergonha do peito. Nem tudo era tão mal só porque, no rádio, Julie London cantava nice girls don’t stay for breakfast. Ele assobiou enquanto as lágrimas não vinham. A música terminou e elas não vieram.

20.3.06

"escadaria"

por que continuo me perguntando coisas?
meu passo torto na direção do fundo fosco
olha abaixo para imaginar o que existe acima
desse zunido no ouvido que dispara uma sirene
e eu já cansei dele o mesmo tanto que ele de mim
e vi gente muito melhor do que eu perder nesse jogo
no qual entrei por acaso quando guardei deus no bolso
naquele dia em que tropecei na igreja e escarneci afrescos
no lugar do céu que nunca mais foi palheta de cores infinitas
questões que jamais consegui encontrar em olhos e livros senão
não perderia tempo no quarto rasgando fotos e organizando poeira
ao som de latidos dentro da minha cabeça durante um sonho molhado
no qual uma barriga roxa de nove meses dá à luz uma criança enrugada
que olha meu rosto sem olhos e não me lembro de nada que aconteceu antes
como se eu mesmo fosse aquele bebê diante da primeira luz que cega para sempre
e a luz fosse o espanto da descoberta de que meu futuro brilhante desce essa escadaria.

14.3.06

"o silvo antes do tiro"

não adianta enrolar cachos e abrir a boca
olhando para as formigas que fazem fila
na fenda azulejada da parede encardida.

aquilo no que você não suporta pensar
vai vir e vai se instalar naquele espaço...
...espaço vazio entre o que você não tem
e aquilo que você não sabe dar a ninguém
aquele espaço antigo, pequeno e traiçoeiro
que nega teu reflexo diante do véu espelho.

mas mesmo sabendo que não adianta
foge tu de ti dali para debaixo da cama
como numa antiga cantiga de ciranda
lá embaixo, sem deus, não tem medo
e pensa nos espaços que já foram cheios
cheios de risos, dentes, silêncios, cheiros
tão só teus suores e sons que eram meios
de te manter livre e distante de ti mesmo.

agora é esse vento que não venta cabelo
essa alma lavada água sanitária sem cor
agora que sentes como se mil espelhos
te perseguissem pelas sombras da casa
enquanto foges do que te leva às janelas
que um dia abriram e disseram: é tudo teu
mas agora fecham e dizem: sei o que pensas.

sabes que não adianta ouvir janelas então fica
mais um pouco comigo na cama desarrumada
ah como minha alma é parecida com tua cama!
mas para mim é tão vergonhoso falar em alma
quando ela não passa de um pássaro sem graça
que pousou num fio, soltou seu sino macio silvo
até que - PÁ! - não viu nem de onde veio o tiro
apenas penas se deitam no que resta da carniça.

10.3.06

"O Tamanho do Pobrema"


O dinheiro de quem não dá
é o trabalho de quem não tem
(Berimbau; Vinicius de Moraes e Baden Powell)
Há uma semana que os jornais repetem manchetes como “Toque de Recolher”, “Rio de Janeiro cercado pelo exército”, “Ainda não encontraram os dez fuzis”, “Bandidos atiram em tropas à luz do dia”, e não se fala mais nas mortes dos garotos que iam andando aos Cieps e ficaram sem cabeça, ninguém parece preocupado em saber quem matou aquele menino que esperava no ponto de ônibus – até porque é óbvio quem o matou. Essas pessoas são obrigadas a se refugiar nas próprias casas, a maioria gente muito mais honesta do que as que jantam no Gero e tomam o café matinal no Garcia & Rodrigues, antes de saírem com seus amantes para jogar tênis e faturar em ações da bolsa de Tóquio.

Aos que não têm voz, resta recolher os corpos. Não há um jornal com coragem para atacar essa ação absurda, que é a tomada das ruas da cidade pelo exército federal, o que, obviamente, deveria ser responsabilidade do governo estadual e não do exército nacional. Por quê? Muito simples. Porque 90% dos compradores do Globo são compostos justamente de pessoas que se tranqüilizam com a “grandiosa ação das nossas destemidas tropas”. Porque querem voltar a andar nas ruas tranqüilamente com o Rolex e com o sapato Prada que roubaram de quem não tem nada, indiretamente, através de maracutaias de sonegação de imposto e evasão de divisas.

E do que sobrevivem os jornais? Para quem eles são escritos? Não para a mãe do menino que é obrigada a chorar em frente a uma gaveta de cemitério que mais parece uma caixa de sapato. Nem para o dono de bar que é obrigado a fechar cedo para não morrer com uma “bala perdida” na cabeça. Muito menos para os velhos senis que morrem em casa porque não podem se arrastar por entre as balas até um hospital. Não, os jornais servem para massagear as classe abastadas, as mesmas que os produzem irresponsavelmente. Servem para dizer ao possível investidor que tudo vai se resolver logo, que recuperaremos a dignidade desta cidade, que, portanto, podem assinar os cheques. Que podem ficar despreocupados agora, vamos cercá-los, manteremos esses bichos nos seus cativeiros. E ninguém diz o óbvio: o combate do exército só seria eficaz se fosse feito nas fronteiras de onde vêm as drogas e boa parte das armas. Mas é justamente ali que os nossos melhores pracinhas fazem seu ganha pão, com vista grossa para o que entra e sai. Ali está a questão complexa que nenhuma entidade ordeira parece querer abordar. Preferem brincar de soldadinho nas favelas. Assim montam uma boa imagem com os poderosos ociosos e maquiam as primeiras páginas.

Lula toma chá e sorri como uma criança pobre numa carruagem ao lado da Rainha da Inglaterra, enquanto seu país escorre pelo ralo. Garotinho tem lá os seus crentes, não precisa se meter com mais doença social. César Maia prefere Nova Iorque. Prefere maquiar o Largo do São Francisco para o casamento do filho almofadinha com a filha daquele outro bandido, o Francamente Moreira Franco.

O caso é que o exército está nas ruas para recuperar dez fuzis que o próprio exército, membros influentes dele, negociou diretamente com os traficantes, como sempre aconteceu. Não existe nenhuma notícia em “10 fuzis desaparecem de uma unidade militar”. Apenas agora, por uma questão de logística (talvez tenham consultado o Duda), os pracinhas mudaram de conduta. Resolveram fazer o povo de cobaia. Botaram as manguinhas de fora para impressionar a sociedade alienada louca pelos seus cocos à beira-mar. Cercaram a bandidagem jogando gente pobre, honesta e trabalhadora (equação comum) no mesmo balaio.

Sei que é exaustivo falar nesse assunto. Normalmente não uso este espaço para isso. Mas é que hoje conversava com a Suely, que trabalha aqui em casa, dia sim, dia não, sobre como achava absurda a ação do exército federal nas favelas. E ela, com a calma dos desiludidos, cabeça baixa e sorriso infernal, me disse:

- Ali no Gardênia agora tá muito pior.

- Ali onde você mora?

- É.

- Você quer dizer, a relação com o tráfico é pior?

- Lá tem tráfico não, que os homem da Mineira não deixa, não. Quem trafica droga morre. É pior.

- Então qual é o problema?

Ela me contou a seguinte história. Na favela da Gardênia Azul, onde ela mora, na Zona Oeste, perto da Cidade de Deus, que virou filme apenas para ser esquecida, conforme se esperava depois do fracasso no Oscar, os bandidos são sensíveis com as mães de crianças na faixa dos seis anos. Eles aparecem em incríveis carrões niquelados (carro de rico, em suma), levam meninos e meninas saudáveis na faixa dos seis anos que estejam indo para a escola, arrancam todas as suas tripas e abandonam os corpos em valões comuns, ocos por dentro, ao lado do seguinte bilhete escrito à mão: “Mamãe, não doeu nada”, junto a um cheque de mil reais, “para os custos do funeral”. Os órgãos saudáveis são aproveitados e, muito provavelmente, a julgar pelo rabecão niquelado que ronda as ruelas, vão parar nas entranhas de filhinhos de papai – que, claro, não têm a menor culpa, as crianças – no exterior ou quem sabe até na Vieira Souto. Desesperada, porque tem um filhinho, Lucas, de seis anos, Suely me disse:

- Se pegam o Lucas é melhor logo eu me matar de uma vez. De casa ele já não sai. Ontem mesmo acharam um bebê no lixão. As vizinha chamaram pra ver, mas eu não fui, não. Não consegui ver, não.

E isso não aparece nos jornais, porque quem compra quer só saber quando vai poder usar a bolsa Louis Vuitton que é a última moda em Paris.

ps1: almoçando com meu pai, raposa velha de jornal, um tanto cético por costume de profissão, enquanto Suely nos observava debruçada na pia, ouvi ele me dizer que essa história de tráfico de órgãos em favela é um mito, o que ele chamou de “lenda urbana”. Eu argumentei que é mais fácil chegar num lugar desses, falar com duas, três pessoas, e desistir de uma investigação mais profunda, porque isso não venderia jornal. Ele disse que eu estava completamente equivocado, que isso é capa de qualquer jornal e que ele, inclusive, já tentou emplacar essa matéria, quando era editor de um impresso, e não deu em nada. “Mas a Suely disse que tinha ontem um monte de gente em volta do corpo de uma criancinha estripada”, eu falei. “Você viu?”, ele perguntou a ela, e ela disse que não, que não conseguiu ver. “Conhece alguém que perdeu o filho assim?”, ele continuou. “Não...”, ela disse. “Mas certamente conhece alguém que viu...”, concluiu a velha raposa. Ela apenas baixou a cabeça. “Um monte de gente... ontem... indo até o lixão ver...”. “Infelizmente, uma criança aberta ao meio não é mais notícia”, ele disse. E com voz cortante, Suely falou: “Se for o meu filho, é a pior notícia”. Sem se abalar, meu velho se levantou para escovar os dentes e ir a uma reunião. Eu fiquei na mesa porque não sabia no que acreditar: se numa mãe ou numa notícia.
ps2: no exato momento em que estava escrevendo o texto principal, antes do almoço, ouvi o barulho de três fortes estalos vindo de fora. Corri até a sala e disse ao meu pai, que assistia ao Animal Planet na televisão: “Isso é tiro”. Pela janela da sala, vi dois sujeitos no chão. Dois negros, um engravatado de camisa branca com mangas curtas, sapato encerado marrom claro, calça de linho com cinto afivelado. O outro com uma camisa de mangas curtas xadrez esfarrapada, calça de brim preta e tênis branco, ambos de cabeça raspada. Havia um táxi parado ao lado e alguns policias que, com os dois sujeitos de bruços no chão, pisavam nas suas costas e conversavam enquanto curiosos se aglomeravam e o camburão não chegava. Pelo que entendi, os dois tinham entrado no táxi, renderam o taxista que, espertamente, quando passou pela casa de um velho marechal do exército que mora na esquina da minha rua e tem uma guarita policial particular, pulou fora do carro e saiu correndo, sabendo que os policiais iriam agir rapidamente. O camburão levou horas. O sujeito de gravata argumentava sem parar, com as mãos para cima. Do outro, mais esfarrapado, eu apenas via os dentes brancos trincados de dor. Tinha levado um balaço no calcanhar e estava com a cara colada no chão. Antes de entrarem no carro da polícia, ainda levaram uns tapas na cabeça, como se fossem filhos rebeldes de pais integralistas.

8.3.06

"Pulem este hoje"

Hoje
quando não consegui olhar pela janela
porque os olhos teimavam para dentro
quando as cortinas me xingaram nomes
e foram torturadas pela inveja do vento
quando ouvi o parto de uma índia
nas badaladas do meu coração árido
quando me lembrei daquele lindo dia
em que comemos pela primeira vez
bobó de camarão e eu assobiei Vinicius
quando disse tantas vezes ontem que
tudo bem, vai tudo muito bem...
hoje percebi que sinto falta do teu abraço
mesmo sem saber mais quem é você
e muito menos quem é esse buraco negro
que eu chamo de eu.

7.3.06

"Sem entender Genet parei num pesadelo com Lucila"

O calor terrível e um bloco carnavalesco com microfonia, em frente ao edifício branco e azul feito de ladrilhos, me enjoaram a ponto de me levar à cama cedo. No quarto as cobertas e até mesmo o lençol pareciam se grudar ao meu corpo como plástico queimado. Eu suava e fedia e tinha acabado de tomar um banho gelado. Tomei outro, saí da toalha escorrendo. Resmungando, arrastei um colchão velho, maltratado por percevejos e outras pragas, para o chão da sala, e nele me deitei, desistindo em seguida do colchão velho para ficar deitado diretamente no chão da sala, o que ainda assim foi inútil. Me restava então ler um pouco para, no mínimo, me imaginar como um sujeito inteligente e dedicado que, romanticamente, sofre de insônia por pensar demais.

Abri o diário do Jean Genet, com o qual vinha lutando covardemente na última semana, me esgueirando por dobras de páginas. Suas frases pareciam todas desconexas para mim – talvez por culpa da tradução de 1968 – e sua poesia homossexual me era inalcançável, talvez porque fosse violenta e escatológica demais e eu imaginasse a poesia homossexual como algo delicado e urgente, como em Whitman e Ginsberg, por exemplo. Mas é inegável que algumas frases de Genet, como “Só os que não vivem podem escrever” ou “Se o herói combate a noite e a vence, que nele permaneçam farrapos”, me deixaram pensando que talvez ele fosse grande demais para mim. De qualquer modo, assumi que talvez não fosse minha hora ainda e tentei prestar atenção no meu dedão do pé. Até que ele perdeu o foco.

Não sei se o trovão vinha da minha cabeça ou da janela, mas acordei suado e espumante de um pesadelo medonho. Toda vez que tinha um pesadelo, acordava espantado com a força de algumas imagens, mas imediatamente tudo se apagava da minha cabeça. Ontem acordei como se já estivesse morto e lembrasse de tudo.

Começava numa festa, numa casa estranha. E eu estava escutando o barulho da festa – podia ver pessoas circulando na sala – mas estava trancado dentro de um quarto com uma mulher que me amava, disso eu tenho certeza. E só.

Na minha visão da sala, apesar de deitado e enroscado nas pernas de Lucila – chamemos o amor de Lucila – numa cama desfeita e muito confortável, eu via muitas mulheres circulando, mulheres lindas, rindo e bebendo rapidamente. Até que um sujeito muito gordo, forte e alto, negro como piche, aparentando certo grau de retardo mental, entrou acompanhado de um baixinho com feições de mexicano sem cabelo na cabeça, que fazia barulhos desagradáveis com um palito de dente no canto da boca. Apesar de terem arrombado violentamente a porta, foram muito gentis, até que o maior se enfureceu porque a mulher a quem dei o nome de Lucila – e me amava como já disse – tentou impedir que ele a estuprasse. E para espanto de mim mesmo, digo, daquele “eu mesmo” que podia ver tudo de cima, o outro que também era eu, mas estava na cama, não fez nada além de sorrir e pedir delicadamente que os dois compreendessem a situação da moça e que, por favor, se retirassem sem causar tumulto. Ambos me obedeceram imediatamente, como se estivessem hipnotizados, e me cumprimentaram fervorosamente com abraços que me deixaram azul.

Acompanhei os dois senhores até a porta, completamente nu, enquanto Lucila se recuperava dos hematomas no banheiro. Ainda acenei para algumas mulheres, que respondiam com seus copos erguidos e, já perto do elevador, o negro novamente se revoltou. Arrancou o extintor de incêndio da parede e descarregou para cima e para os lados. Tentei controlá-lo da mesma maneira delicada, olhando nos seus olhos, e ele argumentou que só deixaria o prédio depois de depredá-lo. Seu parceiro mexicano achou uma boa idéia, então ficamos acertados assim. Eles quebraram tudo e, depois de gentilmente me cumprimentarem outra vez, foram embora e eu voltei à festa.

Não havia mais ninguém na casa, nem móveis, tudo em volta era branco e Lucila estava nua no meio da sala, sentada no chão. Nos beijamos e decidimos dar um passeio de carro.

Nus, descemos até a garagem, ligamos o carro, saímos e estacionamos no que parecia um pátio de colégio. Havia uma apresentação infantil de alguma tragédia de Shakespeare num pequeno palco pouco mais a frente e, quando dei por mim, estávamos Lucila e eu no palco, juntos com o coro, ela na ala dos sopranos e eu entre os dois protagonistas, com uma cesta de vime nas mãos. Imediatamente uma das crianças me deu um ramo de louro e com um cutucão ordenou que eu a pusesse atrás da orelha. Quase deixei cair a cesta, depois comecei a procurar Lucila pelo palco e descobri que ela tinha abandonado o coro. Estava agora dançando de braços abertos por entre as coxias.

Estranhamente eu sabia exatamente o meu papel na peça e o desempenhei com maestria. Os meninos que dialogavam tinham um forte sotaque britânico, mas falavam em português, porcamente. Parecia uma cena mal adaptada de Júlio César. Brutus oferecia vários tipos de frutas silvestres a César e dizia que se ele provasse todas as frutas não seria esfaqueado. Disfarçadamente perguntei ao figurante ao lado por que os dois não falavam em inglês. A peça parou e todos se viraram para mim sorrindo. Disseram em coro: “Porque essas pobres crianças não entendem Shakespeare”. Ouvi aplausos. Era o fim da peça. Seguimos todos abraçados até a beira do palco e reverenciamos o público, composto por absolutamente ninguém. Saí então à procura de Lucila pelas coxias e encontrei Cinna num canto do palco lhe entregando sua túnica e o seu pior poema. Apertei calorosamente a mão de Cinna e disse: “Não ligue para o que dizem sobre seus poemas”. E me arranquei com Lucila dali.

Lucila parecia embriagada e muito feliz. Eu agora estava dirigindo o carro. A rua cheia de buzinas e pedestres que escorriam pelos bueiros como lava. Os carros em volta todos lotados de misturas de homens e animais, como um sujeito com bico de tucano e outro com um topete e focinho de porco. Aquilo me assustou e eu parei o carro para vomitar. Lucila acendeu um enorme charuto de maconha e tomou a direção do carro. O trânsito começou a andar e Lucila parecia não saber o que estava fazendo. Uma luz vermelha intercalada com uma sirene atrás de nós. “A polícia, querida”, eu disse a Lucila, e ela fechou o carro da polícia.

Um policial se aproximou vagarosamente de nós e levantou seu quepe com uma garrucha, como se fosse uma bicha policial, mas com a cara do policial que Hitchcock usou em Psicose. Lucila abriu a janela e soltou uma longa baforada no rosto do policial, enquanto eu tentava ajeitar as coisas sujando minhas calças. O policial, no entanto, era muito educado e, depois de conversar sobre receitas de doces portugueses com Lucila, nos levou até a delegacia – e durante todo esse trajeto eu apenas pensava, mas não conseguia falar.

Na porta da delegacia minha voz voltou e eu não demorei em argumentar com o policial que o mundo inteiro usava maconha, que seus superiores eram provavelmente os principais responsáveis pelo bom funcionamento do tráfico e que, enfim, não havia motivo para nos levar em cana. Ele me olhou sorrindo e deslizou levemente o dedão pela minha testa. “Vejam só”, ele disse, “esse é do tipo brigão”.

“Sou... p... pacífico”, respondi com a voz entrecortada.

“A testa proeminente. Os traços neandertais. Os neandertais já são adultos com 15 anos”.

Tomei a frase do policial como respeitosa e aceitei visitar a delegacia sem resistir. A delegacia era como a sala de espera de um hospital. Várias pessoas feridas e vendadas riam lá dentro. O desespero subiu pela minha nuca. Procurei Lucila, mas Lucila havia se transformado noutra mulher que eu conheço, mas não reconheço agora que lembro do pesadelo. Mesmo assim essa mulher me acompanhou até que policiais de jaleco, uns cinco deles, me cercaram e um me disse que eu precisava fazer uma bateria de exames. Os outros riram.

Uma porta se abriu no mesmo momento em que a mulher na qual Lucila havia se transformado desapareceu. Um homem de farda militar com uma capa cirúrgica desatada surgiu de dentro de uma névoa grossa com uma enorme seringa na mão e o sorriso emprestado do demônio. Comecei a me debater, mas foi inútil. Me agarraram com toda força, mas sem nenhum esforço, e me arrastaram para dentro de uma antecâmara, de onde ainda podia ouvir risadas estrondosas vindas do lado de fora, misturadas com gritos de pavor e esguichos. Além do homem com a seringa, mais dois sujeitos de maneiras muito polidas me observavam com as pernas cruzadas. Um deles me prendeu a uma estrutura metálica. O outro se levantou e seguiu de costas para mim até uma prateleira. Eu sabia quem era este outro, mas não consigo reconhecê-lo agora.

Ficaram todos por um tempo me observando silenciosamente, enquanto eu gritava por ajuda, por deus, que não queria ser torturado, que não havia necessidade para tanto: outra vez os gritos em vão. O primeiro que tinha se levantado segurou minha cabeça por trás para que ficasse imóvel. O que eu sabia quem era, mas sou incapaz de reconhecer agora, se aproximou de mim vagarosamente com um frasco de soro fisiológico na mão. O homem com a seringa apenas me observava com as pernas cruzadas e um leque bordado com símbolos orientais, que abria e fechava ininterruptamente na frente do nariz. Sabendo que eu o reconhecia, mesmo sem saber dizer quem ele era, o sujeito que havia se aproximado começou a espremer soro para dentro do meu nariz e, quando supliquei que ele parasse, ele apenas disse (quando vi que não tinha olhos): “Você desperdiçou sua vida. Agora vai ser assim”. Então o homem da seringa começou a me espetar violentamente por todo o corpo e, quando ele finalmente ergueu a seringa ensangüentada para dar o golpe final no meu pescoço, eu acordei com um trovão, completamente encharcado pela chuva. As persianas se debatiam assustadas com a noite e Jean Genet conversava com o vento.

Fui correndo até a cozinha e me lancei sobre uma folha de papel que voava pelo chão onde, ainda atordoado e aos garranchos, anotei:
Descobrir quem é Lucila e no que ela se transformou. Descobrir quem é o sujeito que me tortura sorrindo e por que ele não tem olhos.
Fui ao banheiro lavar o rosto. Olhando no espelho, não vi nada. E tive que dar a descarga no meu coração, mesmo sabendo que Lucila ria em algum lugar.

2.3.06

"Sonho e Precipício"

teus olhos pela metade enquanto
imagino deitado o que eles vêem
ao teu lado sobre a cama desfeita
e tu tão tudo que não sei de mim
e muito provavelmente satisfeita
bem distante dos olhos por causa
dos socos e chutes no meu flanco
portanto
me levanto
e vejo uma foto minha de rosto pintado
chorando sozinho sem a parte de baixo
de uma fantasia descolorida de palhaço
e quando volto
ali está você de pé
toda minha e nua da cintura até a nuca
com um copo de iogurte e mel na mão
e na vitrola ouço um homem de cartola
dizer sobre moinhos
esquinas
abismos
sonhos
e então percebo que estou num labirinto
onde não há esquinas – apenas moinhos
todos prestes a me triturar sem piedade
quando vejo que teus olhos pela metade
eram ao mesmo tempo meu sonho
e o meu precipício.