22.3.11

"sobre a boa amizade"

estarei aqui quando os concretos se virarem
e vierem nos cobrar as cinzas da beleza,
estarei aqui, com os olhos costurados,
mas você escutará, a cada morto desabado,
meu coração pigarrear e meus dedos amarelos
suplicarem por esse silêncio de cidade grande
dividido com os únicos ombros firmes,
dessa viscosa irmandade que justifica
sermos fúteis o suficiente para lustrar
a vergonha úmida de nossos cílios fosforescentes
e derramar o sangue como balas doces cocaína
porque nossa queda de joelhos será a liberdade
não reconhecida nos pequenos túneis funéreos
e que são nada, meu amor, nada além do escuro
frágil com o qual nos acostumamos a amar sem aspas.

16.3.11

"what they want" ou "aprenda com quem sabe"

por Henry Charles Bukowski Jr.






Vallejo writing about
loneliness while starving to
death;
Van Gogh's ear rejected by a
whore;
Rimbaud running off to Africa
to look for gold and finding
an incurable case of syphilis;
Beethoven gone deaf;
Pound dragged through the streets
in a cage;
Chatterton taking rat poison;
Hemingway's brains dropping into
the orange juice;
Pascal cutting his wrists
in the bathtub;
Artaud locked up with the mad;
Dostoevsky stood up against a wall;
Crane jumping into a boat propeller;
Lorca shot in the road by Spanish
troops;
Berryman jumping off a bridge;
Burroughs shooting his wife;
Mailer knifing his.
--- that's what they want:
a God damned show
a lit billboard
in the middle of hell.
that's what they want,
that bunch of
dull
inarticulate
safe
dreary
admirers of
carnivals.


*** tradução ***


"o que eles querem"

Vallejo escrevendo sobre
solidão enquanto morria de
fome;
a orelha de Van Gogh rejeitada por

uma puta;
Rimbaud correndo para a África
em busca de ouro e encontrando
um caso incurável de sífilis;
Beethoven ficando surdo;
Pound arrastado pelas ruas
numa gaiola;
Chatterton tomando veneno de rato;
os miolos de Hemingway pingando
no suco de laranja;
Pascal cortando os pulsos na banheira;
Artaud trancado com os loucos;
Dostoiévski de pé contra um muro;
Crane pulando na hélice de um barco;
Lorca baleado na estrada pelo exército
espanhol;
Berryman pulando de uma ponte;
Burroughs atirando na mulher;
Mailer esfaqueando a sua;
--- é isso que eles querem
uma porra de um show
um outdoor aceso
no meio do inferno.
é isso que eles querem,
esse bando de
estúpidos
inarticulados
seguros
sombrios
admiradores de
carnavais.

9.3.11

"Leonardo Gandolfi"




Arma de Vingança

Digamos que você saiba o meu nome
e o nome do meu cachorro. Digamos que
você tenha razão, errei bastante, fui precipitado.
Digamos que se trate disso, exatamente disso,
não porque eu tivesse a mesma coragem que você
para negociatas cujo fim fosse alguns trocados
sujos que não mudariam a vida de ninguém
nem mesmo a de um professor quase sempre
sem emprego. Digamos que seja isso, isso mesmo,
só porque mais ou menos reproduz o caminho
sem volta que um ou outro têm trilhado, alegrias
e vexames que quase sempre terminam em portas
que, quando não estão fechadas, nós mesmos
fazemos questão de fechá-las. Agora uma suposição,
digamos que você saiba apenas o nome do cachorro
e que esse cachorro não seja exatamente o meu.


Cronologia

Tecnicamente não sou lá boa pessoa.
Amei e fui amado sem ter visto nisso
amor ou o que quer que seja. Em segredo
traí amigos mulheres e a memória alheia.
Cultivei a mentira o medo a covardia,
tudo em seu registro menos assertivo,
e só mais tarde fui aprender que ao melhor mal
coube a mim apenas a melhor resposta.
Pois se houve bem no mal do qual fiz parte
foi o de ver que as pedras que tenho no bolso
também estão no bolso daqueles que não
abracei nem dei a mão. Nossa canção
embora solitária e cheia de paz
é uma só canção e, cante o que cantar,
ouviremos apenas os ruídos deste
que tem sido apesar de tudo o nosso tempo.


*Saiu este belo livro, A Morte de Tony Bennett, obra um tanto instigante e inusitada do carioca Leonardo Gandolfi. Os dois poemas acima, se é que é assim que devemos chamá-los, apenas poemas, estão neste lançamento da Lumme Editor.

8.3.11

"breviário de uma puta aposentada"

a orgia virou cinza à luz da enxaqueca –
choro porque dentro de mim há um surdo
e este surdo representa a cor do meu erro,
que de tanto cometer aprendi a amar lúcido
como o pai distante ama o filho enforcado,
e as trombetas se encolhem nos corações
encharcados de tanta fuga e tantos em fuga,
e, na verdade, é uma festa pagã, mas que é
a festa pagã se é também um tempo pagão?

olho minhas unhas pintadas, que de roídas
tornaram-se as unhas de uma prostituta velha.

não haverá ninguém nos esperando, doçura,
quando saltarmos para esse estranho infinito.

as flores, nós teremos que levá-las no bolso,
amanhã estaremos assombrosamente perto,
é devido não amassar com mãos trêmulas
as flores do medo que levamos nos bolsos,
é devido também, se possível, evitar tocá-las,
fundamental referência se vê melhor ao longe,
agora que, à luz da enxaqueca, cinza, a orgia
se apresenta com as mil línguas infectadas,
refratárias da beleza com a visão em brasa.

1.3.11

"mandelstam"




"os garotos perdidos cantam para Mandelstam"

pintávamos com liquid paper as unhas e amarrávamos
elásticos em torno dos braços para que nos saltassem
as veias como as dos que imaginávamos ser
os Jeans Genets das penitenciárias da infância,
e as veias explodiam como a vida explodia, mas nós
traçávamos as saliências das veias intumescidas
com caneta bic e, por vários dias, reforçávamos
o traço e conhecíamos o nosso corpo nos intervalos
das aulas de francês de Madamme Albinou, e no mais
havia as marcenarias de nossa primeira química
e os quartos mofados dos nossos hormônios.
nós então sabíamos que o antigo torna-se brinquedo,
sabíamos como sabem os fascínoras e os papas,
apenas que em nós a violência era ainda sem pecado,
mas as costas da revolução nos costuraram os olhos
e hoje não passamos de contra-revolucionários cegos.


O POEMA ABAIXO FOI ESCRITO POR MANDELSTAM EM "HOMENAGEM" A STÁLIN, O DITATOR COM DENTES PODRES, QUE, EM AGRADECIMENTO AO PRESENTE, MANDOU MANDELSTAM PARA MORRER DE FRIO NA SIBÉRIA, EM 1939:



Vivemos sem sentir o chão nos pés

Vivemos sem sentir o chão nos pés,
A dez passos não se ouve a nossa voz.

Uma palavra a mais e o montanhez
Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.

Seus dedos grossos são vermes obesos.
Suas palavras caem como pesos.

Baratas, seus bigodes dão risotas.
Brilham como um espelho as suas botas.

Cercado de um magote subserviente,
Brinca de gato com essa subgente.

Um mia, outro assobia, um outro geme,
Somente ele troveja e tudo treme.

Forja decretos como ferraduras:
Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras!

Frui as sentenças como framboesas.
O amigo Urso abraça suas presas.*



*A tradução literal desta última linha equivale a: "O largo peito do essétio" (cidadão de Ossétia, da Geórgia, região de origem de Stálin). Variante literal: "Um abraço de Ossétia às suas presas".