27.7.06

"adeus"

Filhinhos, ainda por um pouco estou convosco.
Procurar-me-eis; e, como eu disse aos judeus,
também a vós o digo agora:
para onde eu vou, não podeis vós ir.
(João, XII, 33)

hoje estou
contando os dias
com a ligeira impressão
de que me cortaram fora
os dedos.

existe um ônibus
me esperando
do outro lado
do pensamento.

ouço seu freio-
motor antecipando
uma curva fechada
onde repousa meu
óleo essencial.

nunca se está
preparado
o suficiente
para andar.

desde bebês
aprendemos
como é isso
com um passo
após o tombo.

pelas curvas
dessa
nova estrada
queria
encontrar
no lugar das
placas
marcas
de pneus gastos
e nas marcas
rastros
do meu amor.

mas ninguém
conhece o que
ama.

ama-se
surpreendentemente

como quem acolhe
um tiro.

26.7.06

"roçam-se os pés”

acho que
todo mundo
um pouco
no fundo
sem saber
quer o amor
que é o fruto
de outro sigilo
secreto sepulcro
mal-estar no outro
sem saber que quer
mesmo sem dúvida
um canto de vírgula
que sirva de túnica
às tardes esquecidas
que curam e ardem
nas noites sem lua
nuas como aquela
silhueta sem foco
que falta na cama
ao lado do cheiro
do beijo de olhos
do fim de semana
herança das traças.

agora é tarde e frio
os cílios se dobram
e existe certo vazio
que só preenchemos
com calor hesitante
e os pés enlaçados
carregam o instante
gelado com gelado
é igual a dois lados
para sempre sólidos
inquebrantáveis que
quando perfuram poros
marcam nossa distância
com hematomas lilases
como flores de inverno
na estampa do lençol.

mas bem lá no fundo
quando a luz falece
todos nós esperamos
alguém que nos ame
como se não soubesse

23.7.06

"Antonin Artaud"


"Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu o diga
Como só eu o sei dizer
e imediatamente
hão de ver meu corpo
atual,
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
diversos.
Um novo corpo
do qual nunca mais
poderão esquecer.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre morto.

Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto
Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.

Eu represento totalmente a minha vida.

Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.

Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria".

"Rita"


talvez fosse a tarde fria e ensolarada
ou os versos de Guillaume Apollinaire
mas desisti por um minuto da estrada
espera entediada na busca de sentido
só para assistir a tua dança do amor.

que lindos versos te trazem
do assobio do primeiro amor
até o grito feroz da tua carne
passando da origem à sensação
sem dar atenção às palavras?

amado lindo
ame-me para sempre
e deixe que para sempre
comece nesta noite...


era o que o vento soprava da
tua caverna de batom vermelho
para mim naquele café cigano
Montevidéu – talvez
não me lembro bem o ano
acho que era 1946...

naquele tempo fui feliz:
os olhos do teu ventre e
o engano das tuas ondas.
me incomoda um pouco
que a película do mundo
tenha feito do teu doce absurdo
faca doce que mata os homens
todos zumbis ocos de amor
pelo teu mar ruivo de abismos
tu – personificação do desejo.

porque o homem que te ama
o faz também – e principalmente
para poder amar a si mesmo.

21.7.06

“velho lê o jornal e pensa no passado”

o vinho me ataca a artrite,
limite que me forma o pus:
essa estranha criatura verde
que me arde a lua dos olhos
por dentro de uma gota cômica.

arde muito um sonho entre ossos.

entretanto não tanto quanto
aquela nossa fuga de Piazzolla.

de que adianta a sabedoria
se existe a bomba atômica?

o que eu te devo são lágrimas.

“o nó assassino da nossa sina”

todo solitário
no fundo se
considera
um artista.

todo solitário
– artista
ou santo –
é um tolo.

a solidão
não passa
de lembrança
inventada.

só os gênios
perduram
mais tempo
que a sua
tortura.

"rock n' roll suicide" (David Bowie)

Time takes a cigarette, puts it in your mouth
You pull on your finger, then another finger, then your cigarette
The wall-to-wall is calling, it lingers, then you forget
Ohhh how how how, you're a rock 'n' roll suicide

You're too old to lose it, too young to choose it
And the clocks waits so patiently on your song
You walk past a cafe but you don't eat when you've lived too long
Oh, no, no, no, you're a rock 'n' roll suicide

Chev brakes are snarling as you stumble across the road
But the day breaks instead so you hurry home
Don't let the sun blast your shadow
Don't let the milk float ride your mind
You're so natural - religiously unkind

Oh no love! you're not alone
You're watching yourself but you're too unfair
You got your head all tangled up but if I could only
make you care
Oh no love! you're not alone
No matter what or who you've been
No matter when or where you've seen
All the knives seem to lacerate your brain
I've had my share, I'll help you with the pain
You're not alone

Just turn on with me and you're not alone
Let's turn on with me and you're not alone (wonderful)
Let's turn on and be not alone (wonderful)
Gimme your hands cause you're wonderful (wonderful)
Gimme your hands cause you're wonderful (wonderful)
Oh gimme your hands.

para ouvir a música, clique aqui

19.7.06

"O pensamento de Orson Welles"

* os trechos compilados abaixo são recortados de uma entrevista que Welles concedeu para a edição de número 87 da Cahiers du Cinemá, em setembro de 1958. Os entrevistadores eram André Bazin, Charles Blitsch e Jean Domarchi.

"A condenação é cerebral. E isso complica-se pelo fato de eu representar o papel dos meus condenados. Agora, irão me dizer que um ator não representa nunca senão o seu prório papel. Quando se representa uma personagem, começa-se por lhe tirar aquilo que não é pessoal, mas nunca se lhe põe algo que não exista. Nenhum ator pode interpretar outra coisa a não ser ele próprio. E assim com certeza, em todas as personagens, acontece sempre Orson Welles. Aí nada posso fazer: é ele que representa, não só fisicamente, mas Orson Welles. Assim, deixo de lado uma parte das minhas crenças políticas, morais, ponho um nariz falso, faço tudo isso, mas fica sempre Orson Welles. Nada a fazer quanto a isso. Ao acreditar muito nas qualidades cavalheirescas, quando represento o papel de alguém que detesto. Esforço-me em ser muito cavalheiresco na minha interpretação”.

(...)

“Espero que haja uma unidade na minha obra, porque se o que fazemos não nos pertence como nossa carne e nosso sangue, então não tem interesse nenhum. Creio que qualquer obra é boa na medida em que exprime o homem que a criou”.

(...)

“Devo dizer que me interessa mais o caráter do que a virtude. Podem chamar a isso uma moral nietzschiana, como eu lhe posso chamar aristocrática, por oposição à burguesa. A moral burguesa sentimental causa-me nojo: prefiro a coragem a todas as outras virtudes”.

(...)

“Não gosto de cinema, salvo quando filmo; então, é preciso saber não ser tímido com a câmera, violentá-la, forçá-la até aos últimos redutos, porque ela é uma vil mecânica. O que importa é a poesia”.

Outras curiosidades:

. o filme preferido de Welles é Vítimas da Tormenta (Sciuscià, 1946), de Vittorio di Sica.
. seu escritor preferido é Montaigne, considerado o inventor do ensaio pessoal.

“cama vazia”

lençóis como paisagens
de falésias subterrâneas
bordadas pela infância
de pedaços de unha com
um pouco de afeto socados
num baú cobrem a falência
com poeira de caspas órfãs
compartilhadas no escuro
por duas singelas figuras
que nunca se encontraram
porque não sabem como ver
de perto porque não podem
fingir que entendem dentro:
o lado vazio que cada um
guarda consigo como relíquia
na tentativa de um abajur que
confunda carneirinhos internos
infundados em pó de vidro e
marcas de travesseiro sobre
um útero reservado a sonhos
liquefeitos nas veias verdes
da solidão muito lisonjeira
vestida num terno cinza
com um charuto na boca
fazendo bolas de fumaça
de sonhos sem referência
no canto vazio da cama.

"Angústia" (Arthur Rimbaud)

Será possível que Ela me faça perdoar as ambições continuamente esmagadas, – que um final feliz compense os anos de indigência, – que um dia de sucesso adormeça sobre o vexame de nossa fatal incompetência.

(Ó aplausos! diamante! – Amor! força! – maiores do que glórias e alegrias! – de qualquer jeito, por toda a parte, – demônio, deus – Juventude deste ser; eu!)

Que os acidentes de feitiços científicos e os movimentos de fraternidade social sejam queridos como a restituição progressiva da sinceridade primeira?...

Mas a Vampira que nos faz gentis nos manda divertir com o que ela deixa, ou então que fiquemos mais malandros.
Rolar até ferir, pelo ar e mar exaustos; até os suplícios, pelo silêncio do ar e das águas mortais; até as torturas que riem, em seu silêncio atrozmente encrespado.
* este poema está em Illuminations (painted plates), com tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça.

17.7.06

"Quando Berrar, Berry Brando"

Mark Binelli: Você foi roqueiro na adolescência. Sua mãe aceitou numa boa?
Johnny Depp: Até que sim. Eu deixei a escola... feito um idiota. A música era tão importante para mim, era um santuário, me dava sensação de segurança absoluta. Na escola, eu não me sentia assim.
M. B.: Algum show se destaca?
J. D.: Abrimos para o Chuck Berry uma vez, em Atlanta. Naquela época, ele não tinha banda fixa. Aparecia na cidade e ali tinha de ter uma banda, uns locais. Acho que ele supôs que éramos a banda dele, então entrou no camarim, largou a guitarra - eu era um idiota, tinha 17 anos. Ele se acomodou, olhou para mim e disse: "O que é que foi, pirralho?". Respondi: "Nada, nada". Não tive coragem de dizer para ele que o camarim ficava no andar de cima. E então ele perguntou se a gente podia afinar a guitarra dele. Pegamos aquela 335 vermelha e a afinamos. Um monte de moleques.
(...)
M. B.: O Marlon Brando foi um mentor para você. Vocês falavam de atuação?
J. D.: Uma vez ele me perguntou: "Quantos filmes você faz por ano?". Eu respondi: "No ano passado, acho que fiz três". E ele disse: "Não faça muitos". Perguntei: "Por que não?". E ele: "Porque temos somente algumas caras no bolso". Já no fim, quando Brando falava sobre seu trabalho, estava displicente. Ele já não via nada demais nisso, sério. Um cara que era chamado de gênio desde 1947. Acho que ele estava infinitamente mais interessado na verdade.
*trecho recortado da entrevista de Johnny Depp à revista Rolling Stone, edição do dia 13 ao dia 27 de julho de 2006.

“síndrome do zangão aferroado”

"todo o homem
de pau duro
almeja ser déspota.”
(Hilda Hilst)

sou um tirano.
acabei de matar uma abelha
com uma dose cavalar de veneno
enquanto ela rodeava o meu doce.

na verdade
ela ainda está ali agonizando,
as asas coladas sobre o concreto
no abismo gelado do basculante.

pobrezinha,
entende ainda menos que eu.
escorrega pelo caminho de vidro
e rola como um sonho de veludo.

por que será
que agora que ela está morta,
nada além de um silêncio listrado,
ainda posso ver mexerem suas patas?

e agora que a matei
posso fugir em paz?

o zangão aferroado
quando morre nasce.

16.7.06

“o vinco afetivo de Virgínia Morse”

duas doses para além do amor perplexo que teve as pernas decepadas, ela espera pelo reflexo da sua própria sorte curtido no fundo falso da cartola sem retorno onde as almas sensíveis desaparecem e retomam o centro catatônico de uma questão aparentemente banal, mas complexa: loira escura, nuca de avelã, gosto de farmácia, unhas dos pés carregadas de pecados incompletos, exame pré-natal garantido por pontas de agulhas filicidas, fios grossos de cabelo espalhados pelo calcanhar descascado de veias. a fatiota do major confinada de ácaros atrás do baú – tomado de cupins por dentro como certos corações infantilizados de desconfiança e rugas que se tornam cinzentos e inchados de pus, tal qual o crânio do major, reconstituído aos pés de tias com unhas de águia e salmos de sobrancelhas e guardado para os vermes dentro da madeira; major mesmo cuja fatiota lhe provoca bolhas de gás no cérebro – impossibilitado de fantasias sonoras. fantasmas proletários sujos de graxa reivindicam outra dose, que sai tremida das lembranças oleosas: um aquário escarninho de prazeres líquidos anis inadequados para a satisfação de cada pétala de pedra, de cada cílio postiço embalado pelo piano mecânico ao fundo do inferno dos percevejos fanáticos. tarde demais para perder, cedo demais para adotar a melhor guilhotina. só as taças vazias marcadas de batom sabem o que significa o sofrimento: esse vinco perturbado de belezas rarefeitas que a faz manequim de veludo.

15.7.06

“suficiente”

procure uma pessoa pelas ruas
no entanto não procure demais
pois periga você se contentar
consigo mesmo.

depois de achar essa pessoa
olhe para ela
(olhe com os olhos
e
não com o umbigo)
e diga para ela:

- gosto muito de ti.

não diga com muita força
ou com muita expectativa
diga suavemente
sílaba a sílaba
derreta as palavras
como quem respira
pausadamente
para não assustar
o vento.

e se isso não for
o suficiente
pode ter certeza
de que nada mais
será.

palavras demais
confundem o
sentimento.

13.7.06

“poema vazio”

um poema como
um canto quieto
à meia luz.

como o rastro lento
de um caramujo
solitário.

como as patas
de uma garça
no lodo.

como a flor
desidratada
dentro do livro
roubado.

um poema à revelia
que através da dúvida
inaugure a fantasia.

um poema como
camisas penduradas
no varal do deserto.

um poema como
uma menina triste
penteando os cabelos
na janela gradeada.

quero um poema
vestido de branco
para dormir de olhos
na cama ao meu lado.

quero um poema
sem nenhum fonema
onde as palavras
possam descansar
do seu significado
sem serem metrificadas.

quero um poema
com a força
de um cuspe.

com a honestidade de
uma folha em branco.

quero um poema sem pranto
um poema sem calamidades.

um poema da cor do vento
que se instale feito sombra
e no fim do dia se apague
para a digestão dos sonhos.

poema que permaneça
docemente no seu
esquecimento afetivo.

um poema com nuvens
no lugar de linhas.
um poema enferrujado
de tanto esperar.

o poema que quero
só pode ser escrito
dentro de cada um.

11.7.06

“da loucura noturna de todos nós”

amarelo de febre – louco
meio-terno, meio-morto
distante, solitário
iluminado, seco
incendiário
esgotado
total.

hoje à noite
me sinto
perdido
na luz.

mas isso não
me causa mal.

por que se assim
acontece comigo

é também assim
que acontece
com o sol.

10.7.06

“metalíngua”

o tempo
é a areia
do homem.
dessa areia
uns poucos
– loucos? –
fazem castelos
onde se perdem
pelos corredores.
a poesia é sempre
a diluição do tempo.
a poesia será sempre
a queda de um castelo.

9.7.06

"When We Are Lost" (de Carson McCullers)


"When We Are Lost"

When we are lost what image tells?
Nothing resembles nothing. Yet nothing
Is not blank. It is configured Hell:
Of noticed clocks on winter afternoons, malignant stars,
Demanding furniture. All unrelated
And with air between.
The terror. Is it of Space, of Time?
Or the joined trickery of both conceptions?
To the lost, transfixed among the self-inflicted ruins,
All that is non-air (if this indeed is not deception)
Is agony immobilized. While Time,
The endless idiot, runs screaming round the world.

*** tradução ***

"Quando Estamos Perdidos"
Quando estamos perdidos o que diz a imagem?
Nada parece nada. Apesar disso nada
Não é vazio. É o Inferno configurado:
De relógios observados em tardes de inverno, estrelas malignas,
Móveis exigentes. Tudo sem relação
E com ar no meio.
O terror. É de Espaço, de Tempo?
Ou a trapaça unificada de ambas as concepções?
Para os perdidos, cravados entre ruínas auto-impostas,
Tudo que é não-ar (se isso de fato não for decepção)
É agonia imobilizada. Enquanto o tempo,
O idiota infinito, corre gritando em volta do mundo.

7.7.06

“aviso da balada do café triste”

dedicado à alma de Carson McCullers

o firme silêncio
de uma carta
sem paixão
foi interrompido
enquanto eu
embebedava
palavras no papel.

CATAPLOFT!

um livro pesado
caiu no chão
como para lembrar
que há tanto perigo
em palavras embriagadas
quanto nas mentiras
de uma carta sem paixão.

"dois poemas para dois poetas"


“poeta russo”

andei
escrevendo
uns poemas
obscuros.

eles me
apanharam.

primeiro tentaram
me ameaçar com
panfletos.

depois me jogaram
atrás de grades
a pão e água.

depois me
escorraçaram.

esfregaram
na minha cara
meu próprio povo.
meus camaradas.

e então
finalmente
me mataram
com um tiro no peito
que dei pelo meu amor.
pelo desespero de perder a
ternura para sempre em meu peito.
e não pelo ódio com o qual
eles tentaram me acusar
enquanto eu punha
a bala no revólver
e o espelho me
fazia rir.
“poeta chinês”

esse negócio
de beber sozinho
depois do século oitavo
não tem mais graça nenhuma.

hoje raspei todos os cabelos
de cima da minha cabeça
enquanto lia seus
poemas.

te encontrei na livraria
parado como um rubi.

e agora estou
tomando um
vinho às tuas.
às nossas
estrelas e luas
e jades egípcios
e vias galácticas...

um brinde ao seu amor!

3.7.06

“a maior carta de todas”

hoje recebi a maior carta de toda a minha vida.
elas sempre chegam à tarde, quando são perfeitas
ou tarde, quando você pensa que é cedo ainda.
eu voltava do comércio, os pés sujos de areia
dentro do bolso um papel arranjado na padaria
onde havia anotado com tinta vermelha:
“os pés revelam tudo que o coração aniquila”.
entrei no prédio depois de ter observado
por um tempo
sua fachada de ladrilhos
que tanto me lembrava
do quanto eu já havia me esquecido.
mas antes de me arrastar até o quarto escuro sem revelação
desconfiado dos meus próprios pés imundos
fui conferir a correspondência.
e ali estava um envelope.
um envelope amarelo gema.
um envelope simples, compacto e amarelo
com o destinatário em letras de forma garrafais:
“AO POETA”.
e dentro do envelope amarelo
como disse há pouco a vocês
a maior carta que recebi na vida
a mais extensa, que me fez pensar longamente
uma carta que dizia tudo que havia para ser dito
que esclarecia todas as minhas dúvidas e dores
uma carta que só não me fez chorar porque
dentro de mim já não havia mais água.
e dentro do envelope não havia carta.
e dentro da carta havia tudo.

"o silêncio só deve desculpas ao tempo"


"O sentido da realidade é uma questão de talento. Para a memória das pessoas falta esse talento, e talvez seja melhor assim".








* Ingrid Bergman, em diálogo com Liv Ullmann (elas são mãe e filha), no filme "Sonata de Outono" (1978 / 92 min.), de Ingmar Bergman.

1.7.06

"ou os meus"

A imaginação é a memória que enlouqueceu
(Mario Quintana)
Não sei se estavam todos mortos ou se respiravam por guelras. Além disso, não saberia dizer se na minha imaginação ou dentro dos meus olhos – e qual seria a diferença? – havia uma praça árida com brinquedos feitos de troncos ou ossos, que se despedaçavam um a um como sonhos, para crianças sem pernas, mas felizes, brincarem.

A praça era filha de uma corredeira com um rio de alma enrijecida. No meio da praça havia uma árvore, retorcida como mão reumática, que era órfã do vento, pelada e seca portanto, tal qual um namibiano. Esta árvore chorava muito de frio, mas a corredeira e o rio roubaram suas lágrimas e a largaram dura na terra batida – os galhos lhe rangendo a alma – como se fosse um vendedor de camelos.

Apareci por entre folhas molhadas de inveja e desejos inapeláveis, sem avisar às estátuas humanas, que por lá circulavam com os olhos costurados, sobre o meu pequeno problema de ordem sentimental. Minhas mãos tinham as pontas de gelo, de modo que meus pés eram ralos ósseos por onde escorriam gotículas de verdades liquefeitas que a mentira, por sua vez, impunemente encerrou numa frase de efeito. E não seria a verdade apenas uma mentira faminta que se cansou de esperar e morreu?

Uma voz ecoou do esconderijo da tristeza e, aparentemente, apesar das sobrancelhas pontiagudas do pasto seco, apenas eu ouvi:

“Lá vêm os almas-de-gato!”

Olhei para cima e, das profundidades do cinza holocáustico, vi formar-se uma nuvem que se parecia muito com a minha própria cabeça, de lado, como esperando uma passagem para seguir em frente entre os montes necessitados de alguma explicação. Fiquei feliz vendo a cena e imaginando coisas irrelevantes, como uma maneira de ser nuvem, até que o barulho de muitas asas se batendo, como palmas para Maria Callas, ensurdeceu as folhas que murcharam imediatamente e rodopiaram pelo chão como em desespero ou valsa trágica. Os almas-de-gato haviam chegado, me disse um velho ruivo que, por causa do mato moribundo e do cheiro suicida ao redor, me lembrou Van Gogh, depois um avô alcoólatra de olhos inexplicáveis que cantava Lupicinio Rodrigues, depois uma fogueira com vício em cinzas.

“Quem são eles?”, perguntei ao velho.

Ele se virou como se me reconhecesse e não gostasse muito disso.

“Eles são você”, disse, “só que muito melhores...”

“Eles voam?”, continuei, intrigado.

“Garoto”, ele disse irritado, “e por acaso você nunca viu uma alma?”

“Nunca vi”, disse comigo mesmo, esperando para cima. “Elas voam então...”

O velho saiu de perto e se acocorou sobre uma pedra. Sacou um pincel imaginário e começou a traçá-lo no ar, sem tinta ou tela. Fiquei olhando aquilo, convencido de que aquele velho era mesmo Van Gogh, ou maluco, ou estava salvo. Eu sempre soube de histórias nas quais grandes personalidades ressurgiam em momentos de pouco movimento, para pessoas especiais. Mas não me convenci imediatamente de que eu pudesse ser uma dessas pessoas.

Portanto me aproximei do velho mais uma vez. Ele continuou traçando no vazio.

“Desculpe, mas preciso te perguntar...”

Ele se levantou imediatamente, sem me olhar, e subiu na árvore seca que tinha sido assaltada pela corredeira e pelo rio, seus próprios pais, como num plágio de Shakespeare. Subiu até a copa vazia muito rapidamente, a princípio sem a ajuda dos pés, como se flutuasse, e ali se aboletou feito um monge e continuou a traçar o ar com seu pincel inimaginável.

Aquilo não era possível. Me aproximei da árvore. Balancei a cabeça. Nada mudou. As palmas das asas aumentavam gradativamente de intensidade e, assustado, me joguei no chão, mesmo que não quisesse fazer isso. Alguma coisa me levou ao chão. Alguma coisa mais forte. Na verdade, o chão parecia ter se desnivelado subitamente, o que me derrubou. Olhei para cima com o rosto sujo de terra. Ali estava o velho com seu pincel fantástico, a árvore aleijada que agora parecia sorrir, o céu pequeno-burguês com um charuto na boca, as folhas dançando a mazurca. Olhei para os lados, quase surdo com o barulho que vinha de dentro do absurdo primordial. Todos os mortos haviam desaparecido. Restavam apenas ossadas de peixe, espalhadas pelo chão feito de veias furtivas. Gritei:

“Ei, velho! Quem é você? E o que está pintando aí em cima?”

Ele ria como se esperasse pelo que já soubesse. Continuou de pernas cruzadas, a barba ruiva como uma labareda fanática. Olhou para baixo depois de mastigar seu pincel delicadamente e lamber dedo por dedo.

“O problema de vocês é que não sabem esperar por nada”, disse por trás de um sorrisinho sórdido. “Por isso nunca vão reconhecer a mágica”.

“O problema é que não vejo nada”, eu disse.

“Isso porque você fala demais”, ele disse enquanto limpava a terra dos joelhos.

Desceu da árvore como subiu, fez o movimento de como se estivesse recolhendo sua palheta e sua tela do chão – mesmo que não houvesse nada ali –, olhou para mim com seus olhos de orquídeas temperamentais, tristes na sua caixa de ossos, mas tão límpidos, tão brilhantes e cheios de vida, tão nus que me pareceram mortos. Ou feitos a tinta. Ou parte de algum sonho amarelecido.

Ficamos assim por um tempo: narizes colados. Então ele apontou com o dedo para cima, ainda sorrindo como quem bebeu demais. Com a outra mão tirou o chapéu em reverência.

“Você deveria saber”, ele me disse, “que é quando se esquece que se sabe mais”.

Então uma revoada de pássaros brancos, em movimento sincrônico, surgiu do vão entre as nuvens, fez sorrir as pedras e aterrissou sobre os galhos secos da árvore deserdada. Esticaram suas asas ao mesmo tempo, para se espreguiçar, e depois se transformaram em bolinhas de algodão. A árvore seca ficou toda branca. Exatamente como a foto que um dia se apagou da minha memória sépia. E era como se eu a tivesse recuperado ali, naquele instante, por entre a hesitação do vento e a desolação dos grilos. Bem ali, no delicioso mistério das rugas do velho ruivo de olhos bonitos. Como se ontem amanhã já tivesse sido. No momento exato em que, dentro de mim, algo vago e firme se mexeu. Algo que havia adormecido na cegueira dos pedidos escritos nas linhas do medo.

O velho abriu a boca com o dedo em riste, sorriu mais uma vez, dessa vez um sorriso de dever cumprido por estar incompleto, vestiu seu chapéu de feltro e desapareceu na neblina que o acompanhava, não sem antes dizer:

“Preste menos atenção e verá tudo”.

No que senti algo me molhar os ossos, enquanto a sincronia dos pássaros enviesava os olhos do romance perdido. Depois decolaram como os garranchos do absurdo, que insistimos em não ler porque preferimos soletrar com os olhos fechados para dentro.

Andei muito, andei sozinho. Sem saber o que fazer com aquelas imagens. Sem saber onde guardá-las. Minha inclinação era anotá-las, por insegurança. Mas palavras nunca são suficientes quando se trata de olhos. Pensava se de fato alguma coisa poderia ser feita daquilo, ou de mim, ou se não passávamos da redundância de coisas não feitas. Pensava também em tudo o que havia para ser visto, em tudo o que me havia passado despercebido, porque eu tinha falado, tinha falado quando precisava escutar, tinha falado demais sobre o que me calava fundo, por medo do silêncio das coisas inauditas, que comandam os erros e as paixões. Lágrimas me rolavam pelo rosto, caudalosas e grossas como pinceladas impressionistas. Não entendia porque chorava. Não sabia para onde estava indo. Nem as lágrimas. Sentia falta delas, mal me escorriam. Sentia fraqueza, vertigem, como se tivesse respirado pela primeira vez, aos borbotões de placenta. Como se o abandono das lágrimas justificasse algo imperdoável. Algo sólido em mim que se havia dissolvido em tudo aquilo que eu não pude desejar com mais força, pela necessidade de ter.

De repente pensei que gostaria de ter sido como aquele velho pintor de fábulas, que apenas coloca o chapéu e parte sorrindo. Procurei por ele. Procurei como se estivesse procurando pela minha memória enlouquecida. Procurei pelos cantos da floresta órfã, pensando no quanto não soube esperar. No quanto palavras haviam enganado meus anseios mais legítimos.

Quando olhei para trás estava tudo cinza como um pedaço de verdade esquecido num quadro dentro de uma gaveta úmida. Havia crianças no parque, nem felizes nem tristes, apenas fadadas. Uma árvore saturada começava a dar as primeiras flores, todas implorando em vão por uma outra chance. Havia um velho de boina pintando um quadro ao pé da árvore.

Corri feito louco até o velho de boina. Era um velho pálido, magro, entrevado, um tanto gótico, com olhos fundos e distantes. Usava suspensórios esgarçados e havia uma garrafa de vinho barato ao seu lado, derrubada no chão. Mordia a língua com a testa retraída. Olhava para a árvore, depois para longe, então tirava medidas com o polegar. Contornei seu espaço para ver o que pintava. Era um menino sentado num banco de pedra. Um menino não muito bonito, mas muito atraente, que chorava lágrimas amarelas. As lágrimas iam dos seus olhos até a copa da árvore.

Olhei em volta, na busca do menino. Em cima de um banco de pedra sujo o encontrei: não tão menino, não tão atraente, parecia mal-tratado pelo tempo, meio trêmulo, com os sapatos desamarrados, as roupas esburacadas fora de estação, cercado por crianças revoltadas, fustigado pelo vento cínico, anotando num papel amarrotado umas mentiras sobre aquilo que foi perdido e que portanto precisava ser reinventado em olhos, para que ele pudesse se esquecer de como havia perdido os seus – ou os meus.