28.1.13

"poema de macho"


não lutei boxe na infância
como costumo proclamar.
nem mesmo gosto de boxe,
com exceção da sua dança,
e isso é bem mais um balé,
e, aliás, nem gosto de balé.

não cheguei à faixa verde
do judô aos quatorze anos,
o que talvez fosse o sonho
do meu velho e bom papai
para mim, já que ele mesmo
lutou judô na sua infância,
dizia ele que até muito bem,
mas eu nem mesmo passei
da faixa crua, que era como
garotos mais velhos diziam,
e isso porque sempre odiei
competir e me sentia triste
porque me punham a lutar
com meninos mais velhos,
de faixas avançadas apenas
por eu ser gordo o suficiente
para ser um saco de pancada.

na escolinha de futebol eu era
o antepenúltimo a ser chamado,
o que poderia representar algum
mérito, não fosse o penúltimo
o Gabriel Madalena, que veio
a se tornar maestro, e o último,
um rapaz vesgo que havia sofrido
um gravíssimo acidente de carro,
enxertado um pedaço da bunda
na bochecha e a quem os outros
garotos chamavam calorosamente
cara de bunda, inclusive eu mesmo;
ele andava a maior parte do tempo
em cadeira de rodas e tinha muito
trabalho com as escadas da escola.

mas o meu primeiro amor infantil,
desse eu me lembro, foi o filho
de um caseiro da chácara na qual
morávamos em Brasília quando
eu tinha cinco anos; ele lembrava
um daqueles rapazotes arruaceiros
das mil novelas de Jorge Amado,
e também não curto Jorge Amado.

"Parafernália do Coração"

à extrema direita, Uirá dos Reis, com seu visual Pablo Escobar,
e ao seu lado, Guto Parente, o cineasta mais bonito do Brasil


O que se passa na cabeça de quem faz um filme? No caso do filme a ser tratado, isso parece de suma importância. Fico pensando no que pensaram Uirá e Guto, o que queriam ao realizar Doce Amianto, que, só como título, daria um lindo poema. Mas não é de poesia que tratarei aqui, ou melhor, sempre é, quando é bom tratar de algo. Acho que Uirá e Guto pensaram muito em poesia quando decidiram fazer Doce Amianto. Creio que, na impossibilidade de esgotar tudo o que este título pode gerar de poética, fizeram então um filme. E o filme é um poema épico sobre as nossas vidas, a vida de qualquer um de nós.

Pouco importa que o personagem central, Amianto, mais pareça um travesti ultrassensível. Na verdade, o fato de ele o ser talvez me mostre que, diabos, todo mundo é travestido neste mundo. E aí voltamos à primeira questão: o que justifica um filme, por que fazê-lo? Arrisco dizer que Doce Amianto foi feito porque precisamos recuperar o estado amórfico do amor. Porque precisamos entender de uma vez por todas que estar “aberto para a mágica” é estar travestido e corajoso. Assim são os personagens de Doce Amianto: corajosos, travestidos, coloridos de uma ternura arriscada.

Nada no filme de Uirá dos Reis e Guto Parente é real, nada ali resvala em algum cotidiano reconhecível, no entanto, e isso é um dos méritos do filme, enquanto vemos as cenas oníricas apresentadas de modo jarmaniano pelos diretores e atores e equipe técnica, somos levados a pensar se a dita realidade não seria apenas farelo perto daquilo. O ambiente que o filme cria em nós faz somar à realidade reconhecida alguns pontos que ela deveria ter mais não tem. Ou seja, é um filme que torna a realidade obsoleta, torna não, revela que a realidade é extremamente obsoleta, porque nela falta aquela luz específica, aquelas vozes de outras pessoas em cada um, aqueles voos mágicos de fada, e ficamos babando estáticos, abonados, enfim, da realidade. Nada mais coerente, no entanto, já que amianto é, no fim das contas, uma fibra composta de minerais metamórficos.

Logo no começo, em citação do longo poema de Whitman (que é, não se esqueçam, o libertário, o passador de era), existe uma listagem de coisas, digamos, sem restrições morais, coisas que em geral existem sem que sequer as escolhamos em nossas vidas e então é preciso dizer que não, que essas coisas “não são coisa nenhuma”, são algo, sim, por pior que sejam ou por mais toscas ou belas ou primárias e ternas ou abruptas e miseráveis, é sempre algo, e não aceitaremos mais imposições do que deve ou não deve ser, e nisso há, na minha visão, uma juvenilidade, ainda que melancólica, disposta a forçar sua necessidade orgânica aos trancos e barrancos ainda que não haja nada muito claramente estabelecido na cabeça sobre o que possa substituir ou mesmo coexistir com as antigas e frígidas e calmas pisadas do antigo século dos esconderijos. E foi esse tipo de frescor juvenil que, imediatamente, senti quando li as linhas da citação inicial. E que explica muito da proposta do filme como uma imersão nessa ultrarrealidade mágica, como antídoto ao veneno cotidiano, que é o mesmo veneno do preconceito. E acaba que tudo é comum a todos em Doce Amianto, mas nada é de ninguém. Existe uma espécie de maldade incrustada em todos nós, mas uns se dão conta disso, por isso sofrem e alguns até são canonizados em vida; outros nunca reparam e por isso vencem, mas entediam-se com a vitória e decaem no vazio. A cena que talvez mais bem ilustre esse sentimento seja a recriação de uma crônica de Charles Bukowski, quando o homem, para se curar do “mal do mundo”, precisa usar de alguma violência aleatória, mas no fundo não há possibilidade de sucesso quando duas pontas de equilíbrio juntam-se, e isso fica provado no fim da cena – por sinal, quem leu o conto (ou crônica) imediatamente a reconhece.

Para resumir devo dizer que Doce Amianto cumpre o dever explícito de romper com a realidade. Ou melhor, o filme nega a realidade, suprime-a para tomá-la, em suas próprias ferramentas, como objeto de um mundo ultrarreal, portanto não é bem uma fuga, mas uma chegada inóspita. E, acima de tudo, o filme retoma o que parecia perdido para boa parte dos cineastas veteranos, que é a parafernália do amor. O cinema, como mecânica, é muito facilmente repetitivo em normas, técnicas, ângulos, tempo, e tudo isso é nada diante dos filmes que abordam a parafernália do coração. Doce Amianto ainda vai além, arrastando uma era em elo com outra a ser ainda digerida. O filme usa as mais terríveis ferramentas do cinema de mercado (diálogos estilizados à moda antiga hollywoodiana / dublagem fora de sinc / as cores falsas do cinemascope) para, através de uma catarse e de uma auto deglutição, sublimar justamente a ambivalência e, acima de tudo, o que há de mais importante e fundamental no cinema de todas as épocas: a parafernália do coração.

11.1.13

"A Comédia Soturna"


Duvidar de Deus é crer nele
(Pascal via Balzac)

já fizeram a Comédia de Deus e a Comédia do Homem,
agora basta, é hora de falar a sério.
a risada não deve mais ser um deboche ou uma análise perspicaz.
precisaremos em breve de um meio-termo, ou será o nosso fim.

esse meio-termo é duvidar de tudo,
que é ao mesmo tempo deboche e análise perspicaz,
e não é também nenhum dos dois.

mas para chegar a este equilíbrio perfeito,
já que descambamos para a pastelaria,
é preciso endurecer a risada por uma ou duas gerações.

evitar a comédia é inevitável, somos seus portadores temporais.
mas endurecer é possível, mesmo que achem
– os detentores das risadas anteriores –
que nossos métodos sejam talvez muito truculentos.

ah, certamente eles dirão: como são endurecidos,
como negam os bons momentos, ou, se os aceitam,
como choram sem parar, como não sabem dizer sim.

finalmente é preciso saber de uma vez por todas
que não levam nada os que permitem passar.
estão aqui para isso: endurecer a risada, duvidar de tudo,
arrancar de uma vez as roupas coloridas que nos levaram ao disparate;
colorir a alma, em suma, é sempre mais difícil do que colorir as vestes.

nos chamarão mancha negra da ressurreição, seremos duros, sim,
duvidosos, por nós e contra nós, mas num futuro próximo
os mais aptos que nós escavarão nosso peito tísico de ilusões erradicadas
e lá encontrarão nossa pedra suja e preciosa, e daí surgirá o novo homem,
que fará da Comédia Soturna ao menos uma nova cruz, menos perene,
não uma cruz de lamentos ou devoções, mas uma cruz participativa.

deixaremos os buracos de fechadura e os programas de auditório,
e a cruz rebentará com a leveza insuportável dos que virão depois,
e os sorrisos serão sorrisos finalmente, e os abraços, abraços.
serão felizes os filhos da Comédia Soturna, ao contrário de nós,
e não haverá felicidade maior que ver nossa própria cruz ser destruída
pelos primeiros sorrisos verdadeiramente perpétuos do homem.

10.1.13

"ratos quentes"



entramos no meio de uma guerra,
sobre a qual nos disseram “corra”.
sem saber para onde, inventamos
o amor, chamado corrida parada.
com o amor não nos saímos bem,
ele teima ir a um lado, a um outro,
ele não é, em suma, bom soldado.

com olho roxo enfim entendemos
que o amor criado não é do nosso
respeito e que, conforme disseram,
ele quer também correr para longe.
sem aceitar nem entender paramos
a olhar o deslocamento do criado,
lenço no nariz e sangue nos olhos.

pois quando nos disseram “corra”
nós ainda não sabíamos as pernas
que levariam à força ao combate
todos os inventores doutra guerra.
guerra mais parada essa, disseram,
em que todos morrem e não se dá
um passo sem que se dê suspiros.

eles não souberam nos abandonar,
e agora estamos a correr e nenhum
corte brusco da eletricidade local
ou as teclas frias de uma máquina
da qual viemos para inventar aqui
esse amor que nos deixa porque é
também máquina deitada na rosa,
correndo nós não sabíamos correr,
éramos ali os ratos ainda quentes
da primeira corrida antes de todas,
e na estrada do impulso germinal,
nenhum idiota com carro de luxo
vai nos atropelar, nós morderemos
as canelas dos que puxam a linha
que puxa todo o resto e seremos
ratos ainda quentes com seus rifles,
estaremos todos juntos no coletivo,
diremos ainda na primeira do plural,
pois é preciso sempre mais alguém,
mesmo que muito pouco já se saiba
sobre os ratos que chefiam a tropa.

8.1.13

"a antonin artaud"




I
.
Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
.
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus
……….de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida…..puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito…..eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes…..mais vulneráveis…..da matéria
.
Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
.
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso
……….e cantante» suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem —
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
.
Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse…..realmente…..o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
.

II
.
Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras
.
Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios…..nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe…..ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste…..de martelo na mão
.
Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
.
Haverá
um acordar

.

(Mário Cesariny)

"a palavra"



nos separamos por não mais que duas semanas,
na terceira enlouqueço, mas no começo confesso
que nem sinto falta, agarro-me a expressões inúteis,
agravo-me em dissipações alegres, escudos de bonança,
afundo-me em risos falsos mas muito contagiantes,
mergulho em piruetas acrobáticas de láudano sutil.

engano-me demais e você some por não mais que duas semanas.

vai para bem longe, creio aliviar-me, iludo-me de certo livre-arbítrio,
no entanto você vai, agora mesmo foi, e repare bem no meu estado:
sorrio com firmeza, mas sem as alucinações da pureza serpentina.

sou capaz de dizer que amo, de fazer um brinde ao amor,
mas repare em mim: não sou nada, não sinto nada, sou feliz.

preciso que volte logo, agora digo que preciso imediatamente
ou recorrerei a esferas ainda mais desconhecidas e temerárias,
provavelmente letais porque te chamo coceira púrpura,
cura e beleza pré-histórica, dobra da primeira separação.

por uma ou duas semanas no máximo você se afasta.

e de repente volta quando sinto que estourei entre nós a fina fita
e perdi o que não se pode recuperar, mas você volta,
e é quando penso numa espécie de divindade sinistra
e imediatamente quero que você vá novamente e me deixe,
mas eu simplesmente minto e me atiro em resoluções revoltosas
contra as benesses do deus solar das nossas peles.

clamo que volte e decepcione-me ainda uma última vez,
eu grito no que explodo em fragmentos de mil meteoros
e aqui está você, brilhando, luzindo, e já não me satisfaz.