31.10.14

A enxaqueca de Julio



"Um fato fantástico ocorre uma vez e não se repete; haverá outro, mas aquele mesmo não volta a acontecer".

(Julio Cortázar, em entrevista a Ernesto González Bermejo)




1.
Julio se prepara para atravessar uma rua de Guadalajara. Estou debaixo dos toldos, já tirei meu paletó e sinto calor nas axilas. Tomo algo refrescante e cor de rosa enquanto espero Julio atravessar a rua.

2.
Quando eu era criança minha mãe uma vez me disse que eu nunca mais pararia de crescer. Perguntei a minha mãe se haveria um armário onde coubessem minhas coisas de gigante eterno. Então ela se virou, nunca me esqueço, e disse: Não disse que viveria para sempre, quis dizer que, enquanto vivesse, não pararia jamais de crescer. Depois não disse mais nada.

3.
Agora me trouxeram uma bebida refrescante de outra cor ainda mais refrescante: de um amarelo aguado. Julio hesita, mexe nos bolsos com seus enormes braços de polvo. Apalpa-se, encontra os fósforos. Ali estou eu, do outro lado da rua, sob os toldos, refrescando-me. Ele parece saber da minha presença, mas não de forma intelectual. É capaz de inventar mundos próprios, este Julio que atravessa esta rua de Guadalajara, sob um sol escaldante. Ele hesita outra vez, ajeita a boina, não faz frio, mas ele usa uma boina de lã. Estou com as axilas em chamas, do outro lado da rua.

4.
Sempre fui uma criança muito suscetível, diziam que eu era ingênuo e até mesmo idiota. Sei que era um romântico, e acreditava em todos os absurdos que me rodeavam. Nunca mais pararia de crescer. Era um absurdo muito cruel para mim ter que abandonar deliberadamente o jogo de bola para jantar ou fazer a lição de casa. Lembro-me bem do sentimento de escândalo quando vinham os adultos e diziam: “Muito bem, acabou-se a brincadeira, é hora de comer e deitar”. Parecia uma espécie de atentado: não tínhamos ainda terminado a partida de futebol e nos vinham com essas coisas. Andando cabisbaixo para casa eu via as formigas, as abelhas, as aranhas, as vespas, as libélulas, paradas em sua excelência de vento, e refletia sobre a perfeição de sua passividade sistemática e sua aceitação natural de um fenômeno imutável. A abelha sobre o bolo de Maria Antonieta fazia a mesma coisa que a abelha na lixeira desta rua quente (e eu de boina) em Guadalajara (ou será Paris?). E, no entanto, apesar de toda perfeição observada, não posso me comunicar com nenhuma delas.

5.
A travessia foi tranquila, mas, do outro lado, Julio tirou da cabeça sua boina, de todo deslocada do ambiente, e enxugou a testa do que parecia agora, diante de um sol cru, um velho terminal que ainda tenta manter-se de pé, mas cogita lançar-se ao chão a qualquer momento. Emparelhamos, tentei escorá-lo de modo a dar velocidade ao seu velho corpo para seguir adiante. Ele olhou para o lado como se alguma coisa imensa fosse arrancada pela sua garganta. Engoliu a seco e andamos uma quadra, lado a lado. O sol estava mais ameno agora, entre as árvores da alameda. Era possível ouvir ao longe mariachis enganando turistas muito brancos por dinheiro. Houve um segundo ou dois de paz absoluta, então Julio deu um brusco passo para trás, estacou, virou para a rua invertida e saiu correndo.

6.
Estou muito ofegante, mas preciso registrar. Por descuido saí do hotel sem meu caderninho de cronópios – mas para o inferno com isso! – e estou aqui utilizando um guardanapo timbrado do bar Hermoso Corazón. Não há lugar melhor à vista e preciso registrar o acontecido agora mesmo. Agora, atravessando a rua, tive a mais nítida impressão do meu duplo. Não como um vulto complexo, um vulto compreensível, um duplo internalizado, mas uma figura materializada com as minhas exatas características, bem ao meu lado quando atravessei a rua. Pude apenas, numa fração de segundo em que pensei mil coisas, como o mistério dos subterrâneos, onde, em deslocamento absolutamente passivo, idealizamos mil coisas e acontecimentos em dois minutos que, mesmo em quinze anos, não nos seria possível enumerá-los todos. Penso no metrô quando estou aflito. Procurei por isso a vida inteira, forjando sua aparição em palavras bem cadenciadas, e quando finalmente a coisa me aparece fico paralisado, ou melhor, saio correndo. Agora escrevo com as fortes batidas do meu coração. É urgente pôr as ideias em ordem.

7.
Perdi Julio de vista. Emparelhei com ele para ajudá-lo na travessia, mas ele correu de mim como se topasse com o próprio diabo. Dobrou a esquina, saiu correndo. Sua boina ficou no chão. Talvez fique bem em mim. Preciso encontrar Julio, noutra rua de Guadalajara. Mas talvez ele pense que está em Paris. Numa situação nada convencional, isso pode muito bem acontecer. De todo modo, não me sinto ansioso. Sinto que Julio não pode estar muito longe de mim.

8.
Hoje não poderia ser melhor minha tristeza. Ando pela rua, os pensamentos na Nicarágua, um franco-argentino, mas não é o que pensam as crianças. E de repente esse sujeito emparelha comigo. E, de repente, me vejo correndo em largos passos, virando a esquina, aos tropeções. Um senhor de idade enlouqueceu, devem ter pensado. E agora estou aqui no café. Os garçons me conhecem como alguém que não gostam, mas dá boas gorjetas. Os garçons me conhecem como a um parente rico. Virá ele atrás de mim, o fantasma da minha primeira escolha?

9.
Soube que Julio está no café tal, soube por um desses pequenos negociantes de rua, atentos a tudo. Um café deplorável, o que escolheu como refúgio – e o mesmo pensam os argentinos, sobre Julio: que escolheu um café deplorável como recurso geográfico. Ali está ele. Seu corpo mais magro do que aparece nas fotos. A culpa de um pensamento político onde só há burgueses pobres. Ao lado dele há um chefe de estado. Estamos num café caríssimo. Ali se comem comidas exóticas de lugares longínquos. Guadalajara, mas tenho certeza de que pensam: é Paris. Um chefe de estado me acena de longe, levantando-se e vindo até mim. Corro na direção dele. Ele se levanta olhando para mim como se, com um cuspe, me cumprimentasse. Eu lhe dou um soco no queixo. Todos correm na minha direção. Não vejo mais Julio e o procuro com os olhos em órbita.

10.
Estava comigo mesmo finalmente, dentro do meu foco, ofegante, beliscando meus braços e bochechas, ainda pensando em quem está de fato pensando. Com a certa impressão de que tinha imaginado demais. Então ele entrou, esse perseguidor mítico, e havia outro à sua frente, muito parecido com ele, ou talvez fosse idêntico, a ele que era idêntico a mim, enquanto o que sobrou de mim certamente suava num canto do café. Deram-se com sopapos e eu tomava meu chá inglês. Engolia o chá como se estivesse com sede, mas estava perdido. O rapaz que invadiu o café era magro como eu, mas parecia mais jovem. Trazia algo na mão fechada, um pedaço de pano indefinível. E o rapaz no qual ele bateu era idêntico a mim, apenas um pouco mais gordo e com modos mais rudes. Chamei o garçom como que para saber se ele também se parecia comigo, ou mesmo se era igual a mim. Ele tinha as sobrancelhas unidas e uma timidez latente, reconhecível.

- Você não sou eu também, por acaso – arrisquei.

- O senhor não gostaria de um copo d’água? Parece pálido...

- Sim, eu conheço o senhor, sou seu freguês – eu disse.

- Com licença, senhor, mas estão precisando de mim.

11.
Levei um soco na orelha e outro no meio dos olhos, mesmo assim não perdi Julio de vista. Falava com o garçom – o quê? Nunca saberemos, mas posso imaginar. Veja bem onde estamos, deveria dizer a ele, e quem compõe o ambiente. Deveria levantar-se e xinga-lo,  mas está falando com o garçom. Outra vez vou emparelhar com ele. Quero ver se permanecerá mudo.

12.
- Venha cá, senhor escritor, diga uma coisa: estamos em Paris?

13.
Tudo isso deve ter a ver com a medicação alucinógena receitada contra as fortes enxaquecas que me matam como agulhas fincadas na cabeça. O doutor bem que avisou: coisas estranhas podem acontecer, apenas não se deixe levar. E cá estou eu, pingando em paranoia num café da rua de Rennes, mas já não tenho certeza se estamos em Paris, a fugir de outro igual a mim que emparelhou comigo enquanto eu atravessava a rua, que me roubou de mim por um segundo ou dois, e que agora está aqui outra vez, arrumando confusão, no mesmo café onde entrei, tomei dois cafés duplos de virada, e já me sinto um pouco melhor, menos duplo. Onde está agora aquele que diz: eu não procuro, encontro? E, no entanto, sempre fui ligado à ideia de duplo. Pode parecer engraçado agora, enquanto fujo dessa aparição, dessa traição literária, mas sempre acreditei que Edgar Poe e Baudelaire fossem o duplo um do outro, isso para dar um exemplo notório. Literaturas à parte, experimente arrancar fora o bigode cafajeste de Poe e você terá na sua frente um perfeito Baudelaire, os mesmos olhos vesgos e vidrados, a cabeça desproporcional, a fisionomia doentia inclinada para frente.

14.
Precisei subornar um oficial com cara de castor, mas, pelo menos, expulsaram do café aquele político conservador. Recomponho-me diante do espelho, suo frio como os porcos no matadouro. Penso em minha situação: em casa, sou um forasteiro; longe dela, um traidor. Os militares da América Latina – são eles que tornam meu trabalho mais difícil. Se eles fossem removidos, se houvesse uma mudança, então eu poderia parar de correr atrás de Julio por todos os cantos, descansar um pouco e trabalhar em poemas e contos exclusivamente literários. Mas são eles que me dão trabalho para fazer. Na verdade, estar aqui é um pouco vergonhoso. Um café conservador, frequentado pela ultradireita, e não é que ali está Julio assinando um guardanapo para o maître? Que vergonha, é ele mesmo. Em pleno meio-dia, numa Guadalajara ensolarada. Definitivamente é ele. Como parece um coronel aposentado! E que fedor!

15.
Talvez o esgotamento atual tenha um pouco a ver com a sequência de viagens pela Unesco. A morte de Carol. A impressão de que irei também em breve, de forma parecida. E do esgotamento, quando não somos mais crianças, vêm as alucinações. Sinto a vertigem de uma aproximação insólita. Talvez não devêssemos ter feito aquela viagem longa de trailer. Todas aquelas maçãs arrancadas de árvores e aquelas fotos com polaroides, tudo já parecia uma despedida. Eu me dei conta na hora, mas não disse nada. Era divertido ser uma criança com mais de um metro e noventa. Todas as mulheres com quem vivi – e não foram poucas – me disseram sem exceção, em algum momento: “O que, às vezes, é terrível em você é que você é uma criança”. Tenho traços pueris às vezes excessivos, provavelmente. E diante de certo tipo de situações (como esta, aliás, apesar de eu ser já um velho beirando a indecência) ante as quais os adultos reagem naturalmente como adultos – dizendo a si mesmos “deixa disso, seja homem, controle-se, recomponha-se” – minha reação pode ser pueril, eu posso brincar. Mas posso também, estou ciente, quebrar meus longos ossos roídos.

16.
Que passa com Julio? Quanta palidez, sob essa névoa indistinta. Sinto que posso vê-lo entre as cortinas barrocas desse café desconfiável. Aliás, vendo-o assim, de longe, mas não muito, por entre cortinas barrocas, penso na América Latina e no barroco hispânico – minha cabeça desloca-se. Desconfio do barroco. Os autores barrocos, com muita frequência, se soltam com facilidade demais. Não gosto de frases inchadas, cheias de adjetivos e descrições, ronronando no ouvido do leitor. Sou inimigo do barroco, como Borges! Espremer o texto, como um alicate... Espremer o texto, como a cabeça de Julio. Mas onde está Julio? Lá vai ele, em direção ao metrô. Meu deus, como anda rápido, e nesse calor!

17.
Debaixo da terra as coisas funcionam melhor. Minha cabeça já lateja bem menos, acho que vou tomar um sorvete, aliás. Esfriar os ânimos, enfim. Acho que ele me perdeu de vista, de toda forma. Ou eu me perdi de vista, o que parece incoerente, sendo que estou aqui, tomando sorvete, apenas eu e mais ninguém no meu lugar. É bom estar debaixo da terra, é mais fresco e acelera o raciocínio, livrando a vida de resoluções. Não consigo explicar, mas tudo que é passagem me fascina: as pontes, os bondes. As pessoas se perdem e se encontram nos bondes, nos trens e, em menor proporção, nos aviões. Esse Outro Eu, por exemplo, indigesta brincadeira barbitúrica, sumiu de vista agora. Sinto-me seguro, estamos todos no metrô, essa árvore de Mondrian. Meu interesse tem a ver com o fato de que o subterrâneo é um símbolo dos infernos. O metrô é um inferno que visitamos em vida. O senhor sem a unha no dedo mindinho, a anciã com o cabelo roxo, o cozinheiro de avental sujo, a menina de maria-chiquinha que masca chiclete, todos, além de mim, em mil velocidades diferentes de raciocínio, parados em movimento num tempo deslocado em que cinco minutos capturam cinquenta horas de voos extravagantes e fragmentados, num mesmo lugar, paradamente cambiando de sítio.

18.
Ele pensa que se livrou de mim. Mas meu objetivo vital desde sempre foi persegui-lo e, agora, finalmente, ele pode se dar conta de mim. Crê por certo que estou afastado, que conseguiu me despistar. Mas Julio mal sabe que a sua terminação começa no meu princípio, que somos inseparáveis e agora ele pode ver. Como está velho, pobre homem, mais magro que nas fotos. Para onde foram aqueles anos de Edgar Poe? Começou na infância. A maioria dos colegas de classe não tinha ideia do fantástico. Tomavam as coisas como elas eram... Isto é uma planta, aquilo é uma poltrona. Mas para Julio as coisas não eram assim tão definidas. Lembra, Julio? Estou ainda longe, ele não pode me ouvir. Não sabe que ainda estou no seu encalço. Mas, em algum momento, Julio haverá de se lembrar, e estaremos novamente juntos e unidos, de uma vez e para sempre.

19.
Penso insistentemente na minha mãe. Ela, que ainda está viva e é uma mulher de muita imaginação, me incentivou nas pequenas loucuras que me trouxeram até aqui, a esta perseguição derradeira do inanimado de mim para comigo mesmo. Mas é tudo culpa dela. Em vez de dizer: “Não, não, você precisa ser sério”, ela ficava contente por eu ser imaginativo. Veja agora, mamãe, no que deu tudo isso. Perseguido por mim mesmo. Quando eu me voltei para o mundo do fantástico, ela me ajudou dando-me livros. Li Edgar Poe pela primeira vez com nove anos. Roubei o livro porque minha mãe não queria que eu o lesse; pensava que eu era jovem demais e estava certa. Aquilo me deixou apavorado e fiquei doente por três meses e sinto-me doente agora. Tudo porque acreditei em Edgar Poe. Agora sinto que a dor está passando. Enquanto olho meu reflexo na janela do trem, fico com a ligeira impressão de estar em Guadalajara. Estou frio como um picolé. É preciso encarar a rua.


20.
Estou no encalço de Julio, sob o sol escaldante de Barcelona, ou Guadalajara, mas ele pensa que é Paris, estou com sua boina, minhas axilas em chamas, mas o que procuro mesmo é o leitor-fêmea, alguém que se deixasse alimentar pelo que escrevo, que usasse minha palavra como um pedaço de carne, que a engolisse e a devolvesse depois ao mundo sob a forma de excremento e adubo, e que assim eu me tornasse eterno e simples como um tango. Julio no inferno de Dante. Sou sua cabeça que explode no seu encalço. Sou a luz que não pode abandoná-lo por mais que ele se afunde na terra.

21.
Vejo uma moça de boina sentada na praça com uma turma de jovens e penso repentinamente na carta de Alejandra, minha boina que perdi na corrida, na carta que me chegou às mãos dois meses após a morte de Alejandra, ou seja, a carta que vive imediatamente após e além de Alejandra, sem Alejandra, e penso em Alejandra e na foto dela que havia dentro dessa última carta. E me lembro do sopro quente e diabólico que senti no rosto quando abri a carta vi a foto de Alejandra, em preto e branco, nua, estendida sobre as pedras numa praia ensolarada. Olho a menina de boina, sob o sol, com seu grupo convergente de espinhas e hormônios, e penso em ti, Alejandra. Tu que queria tanto viva, mas que foi mais esperta do que eu.

22.
Definitivamente estamos em Barcelona, mas o calor é de Guadalajara, menos para Julio, que agora vagueia num praça onde existe uma gigantesca escultura de Miró, parecida com um micróbio, e pensa que está em Paris. Parece esgotado, estou do outro lado da praça e observo a maneira felina como se movimenta sustentado por enormes ossos. Senta-se no canteiro da praça e permanece com os cotovelos nos joelhos e as grandes mãos de finos dedos espalmadas abaixo do queixo caído, lembrando a forma de um estranho inseto. A praça é barulhenta e na frente de Julio há um grupo de adolescentes. Uma menina muito parecida com a Joan Baez toca uma viola caipira enquanto outros remelentos cabeludos e muito magros compartilham bolos e sanduíches de carne com vinho barato. Revezo-me observando o grupo adolescente no barulho da praça e meu velho companheiro Julio, que tem o olhar vazio e os olhos como que vazados. Pobre Julio, um fauno exilado, exausto, e uma criança com gigantismo. Imagino Julio agarrado a um tronco de árvore, nu, descendo por uma corredeira. De algum modo sei que meu trabalho se aproxima de ser completado. As crianças. A vida das crianças. Elas estão agora apontando para Julio, a menina parou de tocar. Um rapaz cabeludo cheio de espinhas se levanta, anda na direção de meu irmão fora do tempo. Algo se infla em meu peito e já posso descansar, partir, deixar para trás, amor fati.

23.

E de repente vejo um rapaz na minha frente, enquanto frito meus neurônios nesta praça de Paris, mas que praça de Paris? O rapaz me olha como quem olhasse um desmaiado. Sinto uma forte dilatação de minha caixa craniana. Sentado sou do seu tamanho. Levanto-me e ele dá dois passos para trás. Que tal, Julio? Vim te trazer um pedaço de bolo, ele diz. Ele fala no meu idioma, ou melhor, no idioma que violei há muitos anos. Tem um estranho, retraído e duro modo de demonstrar uma profunda ternura, algo típico nos adolescentes sensíveis. Esqueço por um minuto ou dois a enxaqueca e as terríveis alucinações, sorrio e apanho o pedaço de bolo, que se torna um punhado de farelos em minhas mãos que, percebo, estão muito sujas e com as unhas compridas. O rapaz também percebe isso, mas pensa que sou um grande escritor ou até mesmo um gênio e, agora, deve estar pensando: então são sujas as mãos de um gênio, que barato! Ele pergunta como eu vou e eu digo, fazendo graça, que às vezes ainda consigo ir andando. Rimos juntos, comendo bolo, e ele pergunta se pode chamar os outros, o grupo que escutava o violão daquela jovem que me lembrou Pizarnik. Intimidado, mas profundamente enternecido, e quase de todo recuperado das alucinações, concordo e aceno ao grupo. Todos se levantaram com suas mochilas e vêm na minha direção, como seu eu fosse uma espécie de conselheiro ou sábio antigo, o que faz eu me sentir profundamente velho, esgotado e inteligente. Sentam ao meu redor, sou de repente seu mestre xamânico. Tocam alguns velhos boleros no violão, um dos quais posso acompanhar batendo palmas. Fico extremamente surpreso de que uns cinco deles têm meus livros nas mochilas, e assino os exemplares sentindo-me como um deles, só que muito mais antigo e quase morto. Olho para todos por longos minutos, enquanto conversam ao meu redor falando sobre as minhas histórias e rindo das histórias deles próprios que minhas histórias os lembravam, então reparo que eu nem mesmo precisava estar ali, eu era um dispositivo de lembranças e um elo perdido novamente. Um alívio me abate em suor frio e sinto como se um alicate se abrisse ao redor da minha cabeça. Agradeço, enxugando com o antebraço o suor gelado que me escorre pela testa. Fico muito agradecido por ter dividido comigo seu bolo, digo ao rapaz que primeiro havia se aproximado. Mas escute – ele diz – estou lhe dando tão pouco em comparação ao que você me deu. De repente sou varado por uma vertigem súbita que, se eu fosse um santo, seria algo como uma iluminação celestial. Vejo meu corpo dividido em pequenas folhas de sangue, como páginas viradas nas mãos do acaso, mas um acaso fabuloso, com pessoas jovens e cheias de potência compartilhando meu sangue e jogando meu jogo. Sacudo a cabeça e olho para o outro lado da rua. Não há jovens ali, a não ser por um rapaz que poderia até ser jovem, mas parece bem mais velho, nos observando com os trajes encharcados de suor e os olhos em transe, uma boina de lã numa das mãos (com todo esse calor!), como se quisesse entregá-la a alguém, mas de repente se dando conta de algo e indo embora, correndo, deslizando pelas ruas que talvez agora ele não saiba, mas são de Guadalajara, Paris ou Barcelona, afrouxando o alicate, participando do jogo de fora, acendendo um Gitane e que, pensando bem, poderia muito bem ser eu mesmo.

3.10.14

Escafandro – Coluna de Literatura






Livro: Enquanto agonizo
Autor: William Faulkner
Ano da publicação: 1930
Editora: L&PM (coleção pocket)
Ano da edição: 2014




“Mas não tenho certeza de que um homem tem o direito de dizer o que é loucura e o que não é. É como se em cada homem houvesse outro que estivesse mais além da sanidade e da loucura, que observa as atitudes sãs e insanas desse homem com o mesmo horror e o mesmo assombro”. (Enquanto agonizo, 2014, L&PM, Pg. 199)

Enquanto agonizo (a melhor tradução talvez fosse Enquanto caio mortoAs I lay dying) é uma trilha incongruente em direção à loucura santa. Uma saga poética e uma farsa trágica. Uma trama homérica, com sinos de Shakespeare. Cinquenta e nove monólogos interiores, ou mais, cinquenta e nove cortes bruscos de reflexões interiores entorpecidas pela brutalidade da terra e do ser humano num fluxo contínuo de uma poética sulista americana, a poética do blues e do folk: uma poética da miséria, material, afetiva, mas nunca espiritual.

Eis o trunfo de Faulkner, pois como sulista e gênio da raça ele reconhece que a poesia local está justamente na sua aproximação com o nada, com o fim de tudo. Que, apenas diante da imensa falta de sentido de tudo, é possível sonhar, flutuar sobre os escombros. E, por isso, em cada monólogo de cada integrante da família Bundren, clã de brancos pobres do interior do Mississippi, e no cenário de desolação e carência de todo o desenrolar dessa intricada trama, com tantas vozes se cortando e se cruzando e dando pistas como migalhas no caminho até a casa de uma bruxa má, em cada canto desse corredor de desolação, no percurso apoteótico de uma família de pai mais cinco filhos que leva o corpo da mãe morta (e odiosa) por 60 km numa carroça, para ser enterrada ao lado do pai (a quem, aliás, a odiosa mãe odiava), numa saga desalentada em que nada parece funcionar como deveria e tudo parece desencaixado e como que com os parafusos frouxos, com entremeios de sinestesia pura onde sons se coagulam, a madeira sangra, a terra é quente e cega; em todo esse percurso que na verdade é o percurso que a brutalidade executa até chegar à demência e, portanto, aos sonhos alucinógenos que permeiam o texto todo, em tudo existe algo como um pulsar firme e cadenciado com mestria como o som de um Robert Johnson ou um Skip James – e, somados a tudo isso, as intrigas silenciosas entre os familiares, os segredos pecaminosos que representam a hipocrisia católica, mais o calor insuportável e o suor e o fedor do cadáver que vai apodrecendo lentamente diante dos abutres que rondam, contados a cada momento pelo caçula da família, um menino que pensa que sua mãe é um peixe.

As I Lay Dying é a história de uma família arruinada e a história da família como ruína humana. Segundo o crítico inglês Harold Bloom, a visão de Faulkner está fundamentada em seu horror à família e à comunidade. É, talvez, como disse certa vez o escritor francês André Gide: os personagens de William Faulkner carecem de alma. E nisso está seu grande privilégio estilístico. Publicado em 1930, bem no início da chamada “década faulkneriana” (1929-1939), os 59 monólogos que compõem esta que é considerada uma das prosas mais brilhantes do século XX são um acerto de contas definitivo com a brutalidade de uma existência miserável, num lugar estéril, em meio a crises morais constantes movidas por um repressor senso religioso. Disso, Faulkner criou ricas prosas poéticas permeadas por ágeis diálogos quase todos sem emoção e por isso capazes de produzir no leitor algumas emoções intestinais. Porque, ali, Faulkner está falando sobre a farsa de toda família e sua hipocrisia e falsos conceitos. E a beleza de tudo isso.

Não à toa, o título da obra é uma citação direta de um trecho da Odisseia de Homero. Sopram nessa obra de um Faulkner no auge de seus 33 anos, não à toa, talvez, a idade de um Cristo crucificado, ares gregos regados por equívocos e desvios que pesam na balança existencial de cada personagem, atribuindo a cada um deles sua densidade. O elenco: uma família, pai e mãe, cinco filhos, num vilarejo do Mississippi. O pai (Anse) sem os dentes da boca, impedido de absorver os alimentos que “Deus dá ao Homem”, encurvado e passivo, sempre clamando ao senhor quando comete alguma de suas muitas falhas como homem e como pai; a mãe moribunda, agônica em seu leito de morte enquanto seu filho mais velho (Cash) faz do serrote que constrói seu caixão a marcha fúnebre do prólogo; outros quatro filhos: um (Darl) que é o espírito poético, o clown e o provável alterego de Faulkner, linha condutora e portador do milagre da trama, presença superior e carga moral do enredo; uma menina (Dewey Dell) que parece esconder alguma coisa terrível, mas menos de Darl, e depois descobrimos o quão terrível pode ser uma coisa que se tenta, em vão, esconder; o caçula (Vardaman), que é o ponto de ruptura e escape da pesada travessia para um ambiente de fantasia e alguma elevação de que só as crianças e os loucos são capazes; e, por último, o antagonista, inimigo de Darl e seu rival primordial, a outra face da moeda Darl, fruto de um relacionamento escuso da mãe morta com o reverendo local, filho preferido, joia da família (seu nome é Jewel).

Harold Bloom considera As I Lay Dying o romance mais surpreendente de William Faulkner. Uma farsa trágica, mas com imensa dignidade estética. O niilismo – embebido da consciência shakespeariana do nada – do próprio escritor em sua fase áurea. Mas, antes de tudo, As I Lay Dying é um acerto de contas do Faulkner do recém-publicado e reverenciado O Som e a Fúria (1929) com o Faulkner jovem e perdido que publicou um livro malogrado de poemas por conta própria (The Marble Faun, ou, traduzindo, O Fauno de Mármore). Não à toa a citação de Homero. (...enquanto agonizo / aparta-se a imprudente...). Não à toa os caudalosos estribilhos, os melancólicos refrães que perfuram lentamente nossa pele e ossos como se fossem os mosquitos do Rio Mississippi.

Acima de qualquer outra coisa, As I Lay Dying é uma epopeia homérica da pobreza, tendo em Darl seu mestre de cerimônia e, provavelmente, o que Faulkner, em seu íntimo gostaria de ser. Alguém que sabe mais, que sabe o que os outros não sabem, por isso não é aceito pelos outros, mas tem poder sobre todos os que não o aceitam. Darl é o enigma constante da novela, que desaba sobre a própria loucura à que leva seu gênio, num desfecho tão impactante (mas bem mais econômico) quanto a emblemática enchente do mais famoso e prestigiado Palmeiras Selvagens (1939), que leva os presos a voltarem para o presídio em desespero. Mas ali está Faulkner, absorvido em todas as suas inclinações, traumas e recalques. Também um homem ressentido, em certa medida, por ter querido combater na Primeira Guerra Mundial, chegando a se passar por britânico para entrar na Força Aérea Canadense em 1918, e não ter feito nenhum combate.

Esta novela curta de William Faulkner acaba sendo um diamante bruto dentro de uma obra gigantesca, um achado que felizmente foi republicado este ano pela impávida editora gaúcha L&PM, dona, talvez, do melhor catálogo de literatura de bolso no ramo. A seca e pesarosa ladainha sulista, as famílias desarranjadas e que, apesar da mecânica devoção católica, escondem terríveis segredos uns dos outros. O centro de equilíbrio da criação de Faulkner em seu arranque. E se, segundo André Gide, os personagens de Faulkner carecem de alma, como pistões rudes eles flutuam num mundo oleoso onde todos são Sísifos, e nessa pedra porosa e úmida o autor esculpe as reentrâncias dos mais íngremes sentidos, em seus capítulos curtos como socos de briga de rua, em sua múltipla visão adoecida e súplice. A poesia fúnebre, a marcha destruidora da ingênua esperança, do mais antigo blues.