16.5.18

“mistérios mortíferos”

para ramon

acho que na época eu nascia,
o que sempre me pareceu
um privilégio antecedido                              
por uma desgraça coletiva.

posso dizer que, pela minha lembrança,
eram os amigos dos meus pais que morriam.

todos me pareciam muito velhos,
mas sei hoje que eram jovens
e que isso era basicamente algo
que acontecia aos que eram jovens
na época em que eu nascia.

naquela época eram as grandes viagens,
amigos queridos, sempre os mais carinhosos,
os que me levavam a comer coxinha com guaraná
e contavam histórias hilárias e estavam sempre
com os olhos vermelhos – acho que de tanto rir.

eles viajavam sem perspectiva muito clara
– não para uma criança – de que voltariam,
o que me deixava com raiva de todos eles,
com vontade de que todos eles morressem.

mas agora tudo isso
que poderia ser bonito
soa triste e venerável.

uma coisa que acontecia aos jovens,
matava os novos e os desbravadores.

não era isso que meus pais me diziam,
eles falavam de primatas e selvas africanas.
é o que eu imagino agora: jovens mortos,
mas, como eu era criança, eram velhos,
mas eram velhos que dançavam muito.

nasci na década dos mistérios mortíferos
e hoje penso nisso como uma camisa
rasgada que se gosta de usar porque
é a que deixa nosso corpo mais bonito.




13.5.18

“o embrião”



vestir-se é tão somente
a capacidade de estar nu
fora de si
emanuele coccia


e sinto que não sei o que é o verso, que um passa
toda uma vida fazendo o que não se sabe o que é.

as lantejoulas eu sei o que são, apenas sobrevoam
gravíssimo problema: alienar o que, alternando-se
permanece sob meu verso justo como um escravo.

sufocado de explicações e justificativas vantajosas
faço o mesmo todo dia: isso é isso, aquilo é aquilo.

filhos de mães taurinas nos amamos como bezerros
mas, nu fora de si, o embrião não pede explicações.

enquanto juntos secamos os reservatórios de saliva
é ele o segredo que, pelado, torna-se presa caridosa
– e cheio de panos simplesmente não faz promessa.

2.5.18

“sobre como lidar com o gênio”



confesso que me sinto muito mal,
nauseado, com pressão irregular,
quando leio um trecho genial
de alguém que posso abraçar.

acontece muito com a rita isadora,
que vez em quando vem com uns
maremotos e fendas que se abrem.
eu nunca me sinto bem quando digo
que adorei as imagens ou que fiquei
sem fôlego ou que aquilo me matou,
porque no fundo chegar muito perto
do gênio causa náusea, pressão baixa,
acima de tudo se quem traz o gênio
é alguém que eu posso abraçar, amar.

outras vezes a coisa acontece
com escritores de que não gosto;
daí é quase muito bom, mas não
se pode confiar demais nas boas
sensações, então, um pouco tonto,
acabo triste porque não abraçaria
este gênio mesmo sendo genial.

quando converso nas ruas e bares,
que frequento agora muito pouco,
estou sempre pensando enquanto
escuto todo tipo de elucubração:
diga tudo, mas não seja genial, ok?
e a contrapartida disso é que não
entendo o que as pessoas dizem.

se é um fiódor dostoievski, oquei,
pouco me afeta, sinto as borbulhas,
vai tudo bem, bom que seja genial,
mas fiódor é um busto carrancudo,
está a anos-luz da minha precária
compreensão desse mundo canino.
só não me venham vocês, pessoas
que amo e que posso abraçar, roer
a frágil estatura dos meus nervos.

vocês eu posso abraçar – é a única
coisa que eu posso fazer sem medo.
no mais, terei um choque elétrico
a cada vez que me vierem com tais
peças de humor sensíveis e afiadas
sobre a desgraça que vivemos mas
ainda de cabeça erguida e capazes
de abraçar e de rir um pouco disso.

perto do gênio arruinaríamos isso,
seria atear uma fogueira alta demais
e num minuto estaríamos morrendo
de bílis negra e fadiga de compaixão.

não sei o que é melhor à sociedade
– a mim é melhor poder abraçar
da maneira mais estúpida à mão
e nunca ser gênio, nunca destruir.