28.11.09

"Ferreira Gullar vai ao shopping"

vejam bem: consta que o poeta Ferreira Gullar foi visto

saindo da livraria nobre, que fica dentro das entranhas

do shopping classe média alta, carcomido, disseram,

às vésperas dos 80 anos, mas ainda elegante, a postura

típica dos guerreiros homéricos, mas só o que importa

é que ele saiu da livraria, desceu pelas escadas rolantes,

repetitivas, tentou talvez observar de soslaio a calcinha

de alguma bela moça desavisada de que havia um poeta

no recinto, um dos grandes, segundo consta, e no andar

de baixo ele, o que escreveu o famosíssimo poema sujo,

deu uma volta inteira, provavelmente pensando no filho

internado no manicômio (estaria ele bem?) e nas dívidas

a serem pagas com prêmios literários frios e aguardados

e, talvez transtornado, sabe-se apenas que o poeta entrou

um tanto confuso, no salão Oficina do Cabelo, e parece

que uma daquelas senhoras muito ricas, mas instruídas,

falou baixinho na orelha da amiga: “aquele não é o poeta

Carlos Drummond de Andrade?”. mas estas são apenas

informações supérfluas, importa mesmo é que ele entrou

no salão Oficina do Cabelo, pediu licença como autêntico

maranhense, então disse, sob a vasta e ainda bela cabeleira:

“por obséquio, senhoritas, queria saber onde fica a livraria”.

19.11.09

"piva"

"A morte é um refrão no crânio sem janelas"
(Roberto Piva)





existem os ovos, Piva, sim,
existem os ovos, como não?
não se preocupe, nós viremos
para buscá-los, faremos festa,
água pura cairá de pedras feias
e estaremos juntos, enfim, nós,
por entre os bambuzais do caos.

também amputaram-me as flores
do crânio com urgência criminosa.
também me queimaram os serafins,
mas a canção sem vírgula permanece
como o grito que salta da gaiola surdo
a cada pássaro que perdemos na rede,
na difícil rede de nossas vagas matrizes.

nós estaremos juntos, tão sós, que não
desgrudaremos mais as mãos, jamais,
e, tenho certeza, nós permaneceremos
de orelhas em riste, secos e sedentos
por uma catástrofe que limpe todo
o tédio que articula as artérias lilases
dos jovens bailarinos desconjuntados.

14.11.09

"bromélia"



agora será bem curto, há pouco
papel, disposição de bancário,
mas a letra ao mudar de cor dá
ao sabor a real temperatura
de uma bromélia, seca na sala,
mas o espaço, de fato, diminui
à galope como o ritmo inconstante
da flor que sabe que, mais cedo
ou mais tarde cairá pela janela
e trará o som surdo de algo gritado
do que não sabemos a verdadeira
tinta rubra nas bochechas saciadas.

12.11.09

"luana"

existem narizes que codificam a existência.
e não são só narizes, são olhares ávidos
em direções opostas, e além do nariz,
há também o cabelo, que não é um cabelo,
mas a Mata Atlântica, e aqui está a vontade
reprimida de se lhe fazer num grande coque,
olhar a nuca que anuncia graves presságios
e tombar na cama, como se fosse apenas
mais um nariz, e a pérola por dentro da boca
explicaria a poeira cósmica que justificaria
toda flor entre dentes, qualquer ato de amor.

"rúbia"

você me
olha sem
querer
nos olhos
e já não sei
se tenho
olhos para
ver nos olhos
o que não
vejo mais.

"feito máquina"

para Olivetti

então escrever sobre uma máquina de escrever,
uma que seja ao mesmo tempo ágil e calma,
que fira ou seja ao menos capaz de ferir mortalmente
e, de repente, desmanche em equívocos sutis
um pouco do resquício do que sobrou da fantasia.
mas agora não é tempo de pedir desculpas.
isso aqui, afinal, é uma máquina cruel e limpa,
talvez pare de repente, não sei, talvez a tinta
falte antes de se dar por sepultada a inocência.

ah como perdemos, como perdemos todos os dias!
mas não devemos admitir, admitir, isso jamais,
porque somos máquinas de escrever e escrevemos
apenas sobre uma máquina de escrever, uma velha
que nos trará do longo suicídio diário de volta
para onde criamos uma vez a falha toda nossa
pela qual ainda corríamos, loucos, pelas ruas,
incríveis ruas que um dia nos deram o longo aviso
enquanto caíamos de quatro diante de possibilidades
remotas e conclusivas sobre o que, enfim, ficaria
melhor assim, sob aviso, perene, feito máquina.

8.11.09

"essa fera chama-se Julia, e escreveu o poema abaixo"

Jornal

Não te vejo mais,
nas salas, nas ruas, no metrô
na esquina onde eu te deixava e te buscava todo o dia
e na padaria onde a gente costumava tomar café
e você com ar severo no olhar me fazia
prometer que eu nunca tomaria adoçante.
prometi.
depois prometi outras coisas.
que até hoje ficaram intactas dentro de mim,
algumas nem tanto.
talvez você não saiba e andou me
chamando de puta por aí.
te vejo sim é nas revistas e nas notícias de jornal,
não gosto, acho que você se envenenou,
murchou, esmiuçou-se pela dor a fora e me esqueceu.
mas talvez não tenha esquecido que me esqueceu
e isso te fira e te lembre todos os dias
quando te vais dormir à cama.
sei que nas ruas procuras por mim,
como eu que de vez em quando te olho
em muitos rostos.
mas com a tua textura àspera que tomou
nos novos dias vou me esquecendo até de
te esquecer,
até o dia que eu te reencontre,
você me beije,
e eu não te reconheça mais.

2.11.09

"filho"

o primeiro amor morreu.
por enquanto não temos
nenhum outro disponível,
mas, veja por este lado,
temos um campo submerso
de possibilidades débeis,
até mesmo os raríssimos
segundo, terceiro amor.
amor agonizante é pecado.
dar-lhe, portanto, um tiro
na cabeça – e só a morte
da carne entorpecida trará
de volta à pele os poros,
por onde suar novas regras.
e o que chamam paixão nua
pode ser você e eu, avante,
de novo dois desconhecidos,
dando a mão para atravessar
a grande rua difícil, sem ver
que o mais por debaixo fica,
leite para os sedentos lábios
da primeira morte madalena.

1.11.09

"gastrite"

repare no que você come
e
pense no que você pensa.