23.4.15

"dylanesca"


vejo em meu ofício
um poeta sem saída.

elabora paraquedas
nos becos de soslaio.

poeta é mais o beco
que a saída do poeta.

um beco sem saída
é a ideia do veludo
nas poltronas cinza,
ou sinos de outrora.

vejo em meu ofício
a vida que deveria
ser a do poeta vivo
na linha tracejada,
calabouço da moral
do poeta em ofício.

se eu fosse o poeta,
vendo o beco onde
em meu ofício pardo
adular empréstimos,
faria bigodes russos.

o poeta já não sabe
que ofício ou beco
são duas síndromes
da mesma exaltação.

14.4.15

"vinte ciganos, vinte cigarros"


com o pensamento em Emir Kusturica

reduzi minha carga a vinte ciganos por dia.
enfrento-os a bordoadas, com eles aposto
nos dados e frequento lugares perigosos
e corremos pelas docas atrás de cafetinas
e trocamos dentes por rins vindos do Laos
e você deve ser capaz de entender que eu
reduzi minha carga a vinte ciganos por dia,
e minha leitura eu a reduzi a vinte cigarros.
você recolhe cartas de baralho nas calçadas
enquanto eu penso no meu golpe de sorte.

10.4.15

"sacerdotisa"





bruxinha, não se preocupe,
teu caldeirão derramou-se
por dentro do meu instinto.

dias duros servem para afiar
as tuas garras de guaxinim e
a minha escuridão morcega.

afiar, portanto, polir pedras
que bloqueiam os acessos a
ponto de esgarçar os sinos
do nosso maior desespero.

resta perder-se um no outro,
arrombar de olhos fechados
portas que nós inventamos
para proteger esse mistério
fugido para além da criação.

um despertar bestial arrasta
nossos corpos despreparados
por uma correnteza estanque.

feridas, poços premeditados
não faltarão nas corredeiras.
mas perceba, bruxinha, você
é tudo o que trago nos braços.

não é nobre atenuar o trauma,
deslizemos com quatro patas
ao estuário da nossa colisão,
às portas abertas do encontro
entre a violência e a ternura.

o amor também é perder-se,
não se pode de olhos abertos.
nada deve ser preto e branco,
nada mais deve ser atenuado
e este deve ser nosso deleite.

6.4.15

“pavese”





é estranho ler o diário
de alguém que se matou.
difícil refutar o que leva
alguém a tão estrondoso
apaziguamento da vida.

alguém que esqueceu
de que fazer poesia
é como fazer amor:
não se pode saber
se a alegria sentida
será compartilhada.

quem foi esta mulher
que te alçou a gênio,
que te fez um mártir
das fofocas literárias?
               
é estranho ler o diário,
mas é mais estranho
chorar toda a beleza
das dezesseis pílulas
do resgate unificado
do amor e da fartura.

o tumulto nas ruas,
disse o desistente,
não poderá alterar
o novo ar parado.

o tumulto das ruas,
disse o replicante,
será outra vez, e só,
tumulto do coração.

que luz extraviada
fará vênia cordata
ao neófito do caos?

5.4.15

"pasolini"




a arte narrativa, todos sabem, é morta.
estamos, portanto, em narrativo luto.
em luto vivemos, não uma vida,
ou um romance, mas uma parábola.
porque as parábolas são as últimas
tentativas de se tratarem escombros.

isso dura ininterruptamente,
a imensidão que anseia e escapa.
há sempre duas vidas no coração da culpa.
há sempre dois pecados na supressão do erro.
é natural pensar que o deserto
não há de ser o deserto novamente.

as areias migram – há o limite
entre aquilo que se enxerga
e o pouso do que se imagina,
o decolar breve do que alucina
o mundo, agudas notas de adeus,
as bocas firmes dos sem amor,
chaves trêmulas dos sem firmeza.

estamos todos em perigo súbito.
há navalhas sorridentes na corda bamba.
as ruas são sonhos chuvosos.
suados acordamos, suados sonhamos.
vivemos com frio nas ruelas de carne.
tão leve havia de ser, tão a mercê do sol.
mas é preciso mais que sol, é preciso
que todos acordem dessa tragédia.

plantam-se ainda as foices na terra
adubada pelo que apodreceu.
e podemos notar as notas agudas,
as placas que se movem com a exatidão
de uma artéria que se rompe.

4.4.15

"sete de espadas"


amo mais quando não digo.
insuficientes articulações –
te amo, duas palavras feias.
pois eu preciso do teu ódio.
na incompetência de tornar
este ódio bonito, cumpre-se
a média arte do amor falado.

amar o que se corresponde
é doce, intensamente vazio
porque é pleno de certezas.
a fala é o desgaste do certo.

mas o amor nunca saberá
quando os ratos invadirão
a arte ineficaz das palavras
com um medo nunca visto.

o amor então se realiza
no amor ao rato que é
amor à invasão brusca
que nada é além disso.

a morada foi tomada
pelo címbalo do nojo.
matar pela vida, e cair
soldado morto a rosas.

não combaterei já que
o amor não usa armas.
ele é a bandeira branca
rasgada após o ataque.

e o lar é esta miragem
que engole as pernas
e faz baterem queixos,
juntar ossos em buquê.

mas ainda não temos
botões com intenções
nas entranhas da vida.
pode-se cobrir a ideia
com flores e preparar
sonhos em labirintos.

no mais não é possível
saber nomear a língua
do crime perpetrado.
criminosos somos nós
porque vimos os céus
e arrancamos os olhos
e pedalamos trovões.

aqui restam os ratos,
adoráveis pelo pavor
epilético de sua fuga.
ratos não amam, eles
correm e abrigam-se.
fugimos agora do lar:
amar é seguir o medo.

3.4.15

"cavalo açoitado"



o cavalo arreganha
os dentes para o beijo.
há uma infinita beleza
na remela de seus olhos.
resplandecem os olhos
do cavalo maltratado,
de joelhos na terra dura
choro pela primeira vez.

determino o ponto
de vista do chicote.
ele brilha no estalo
enquanto de joelhos
pereço a sua frente
em grotesca afeição.

um dia brilhei eqüino
e carregava o chicote.
agora de joelhos vejo
nas remelas do cavalo
a curiosa antecipação
da nova fraternidade:
o chicote noutra mão.

beijo a boca do cavalo
de joelhos, aos prantos.
atenho-me ao relincho
que outrora saía rouco.

e agora o cavalo mudo
evolui minha trajetória
sem relincho e os olhos
remelentos de suportar
um fardo insignificante
mas de todo modo letal.

penso no resto do mundo,
o resto do mundo é tudo
o que não sou eu – aquilo
que relincha – e o chicote
brilha como o último sol.

o cavalo não me olha
nos olhos enquanto
eu quero o seu bem,
enquanto sinto amor.

atravessei a orquestra,
deus depôs o sapatear
e cavalos não dançam.
e te lanças ao inverno
em forjada redenção.