21.8.12

"morrerei de um câncer na coluna vertebral" (boris vian)




Morrerei de um câncer na coluna vertebral
Será numa noite horrível
Clara, quente, perfumada, sensual
Morrerei de um apodrecimento
De certas células pouco conhecidas
Morrerei de uma perna arrancada
Por um rato gigante surgido de um buraco gigante
Morrerei de cem cortes
O céu terá desabado sobre mim
Estilhaçando-se como um vidro espesso
Morrerei de uma explosão de voz
Perfurando minhas orelhas
Morrerei de feridas silenciosas
Inflingidas às duas da madrugada
Por assassinos indecisos e calvos
Morrerei sem perceber
Que morro, morrerei
Sepultado sob as ruínas secas
De mil metros de algodão tombado
Morrerei afogado em óleo de cárter
Espezinhado por imbecis indiferentes
E, logo a seguir, por imbecis diferentes
Morrerei nu, ou vestido com tecido vermelho
Ou costurado num saco com lâminas de barbear
Morrerei, quem sabe, sem me importar
Com o esmalte nos dedos do pé
E com as mãos cheias de lágrimas
E com as mãos cheias de lágrimas
Morrerei quando descolarem
Minhas pálpebras sob um sol raivoso
Quando me disserem lentamente
Maldades ao ouvido
Morrerei de ver torturarem crianças
E homens pasmos e pálidos
Morrerei roído vivo
Por vermes, morrerei com as
Mãos amarradas sob uma cascata
Morrerei queimado num incêndio triste
Morrerei um pouco, muito, 
Sem paixão, mas com interesse
E quando tudo tiver acabado
Morrerei.


(Boris Vian - tradução de Ruy Proença)

11.8.12

"Lucien"




uma canção de Gainsbourg, uma namorada de Gainsbourg.
uma canção de Gainsbourg, uma letra de Vallejo.
uma namorada de Vallejo, uma namorada de Vallejo e Gainsbourg.
era sem dedo, Gréco, mas com abraços, sem traço, mas com risco.
o que pisca nem sempre tem olhos, o que dorme nem sempre está vivo.
vem do mar o que nem sempre é heroico, das barragens, a pedra demolidora.
era sem pedra, Birkin, mas era Bastilha, ainda desejo, mas não sonho.
o que é banho, fome, nem sempre é limpo: hoje devo me casar por amor.
mas não precisamos, Bardot, falar de assuntos tristes esta noite.

6.8.12

"ode à página"


não temos sido amigos, nem ao menos amigáveis.
nos despedimos regularmente, mas sem nobreza.
diria até que nos despedimos com certa rispidez.

quando faço por acaso bom uso da tua matéria
fico eufórico, te deixo de lado, nem me despeço
e me lanço vesgo à embriaguez e falo, falo muito.

isso já vai mal, já vai muito mal e é impossível.

você sabe que preciso de você e que só em você
posso existir e só em você eu sou eu, só em você
garanto um instante entre os deuses e se te odeio
é porque você me assusta, você detém todo poder.

embriago-me, portanto, quando sinto que te venço,
mas é justamente quando te venço, e ao te expulsar
a hora errada de saber que levará um longo tempo.

aceite meu ódio e pavor como forma de respeito.

o que se odeia é a que indubitavelmente se pertence
e você é a minha granada silenciosa dentro de mim.