25.12.22

"um terrível ano bom"


este foi um ano bom,

um terrível ano bom,

mas um ano positivo

porque lula foi eleito

e messi foi campeão

do mundo: outra vez

os baixinhos em ação.

 

assisto no youtube a

vídeos com locuções

castellanas da vitória

e me ponho a chorar

como se num clique

algo tivesse mudado

para sempre em mim.

 

algo em mim cresce

quando ouço o grito

entalado na garganta

por anos de esforços:

que é bom ser daqui,

que o baixinho pode

orientar as multidões.

31.10.22

"o pai tá on"




você estende seus quatro dedos

e pede água porque está rouco.

então de novo, forte e pequeno,

você penetra a cabeça do povo,

trazendo um alimento tão doce

que é a palavra bendita, a frase

que vira a seta para alguma luz.

 

metade gente, metade monstro,

não pudemos cantar teu nome

como o totalitário sim ao amor.

 

havia choro contido, presidente,

havia na alma uma represa de pus.

agora arde e, se arde, já sabemos,

cura, e se aperta segura, foi você,

na verdade, que nos fez aprender

a dar vida aos ditados populares

e trazendo de volta a imaginação

que fugiu daqui tem quatro anos.

 

falando apenas por mim quero arder

outra vez na convulsão do carisma

com que os deuses te presentearam:

tu, criança jesuíta que mil Herodes

não puderam matar, agora desperta,

rebolando, dançando cheia de tesão,

nos dizer É PRECISO TER TESÃO

porque não é possível que a barbárie

seja a base irretocável do nosso gesto.

 

com um jeitinho de se movimentar

todo particular você vem, sem voz,

gritar os nomes que desapareceram,

invocar todos os nossos ancestrais,

arrepiando os pelos de meio país

que precisava tanto de algo bom,

que é justamente você, presidente,

que lembra que não somos duros

ressentidos vazios de eros e amor,

mas o povo pela metade que cura

o rasgo na pele com a saliva justa.

16.10.22

"missa de domingo"

 

para Vó Zula

 

por que diabos fui encontrar deus

justamente nessa casa de paz fria

com pessoas famintas na porta e

pessoas com medo que entram?

 

por que foi que entrei eu mesmo

porta adentro e senti eu mesmo

paz quando saí do mundo e caí

na teia de uma calma só minha

com orelhas quentes de pecado

e calos doídos de ter caminhado

para baixar adrenalina sintética

de toda uma geração de girinos

que nadam por dentro da fossa

de uma desolação azul ou cobre

mais dentro ainda na veia viva

de um pavor estancado em pus?

 

mesmo assim você entrou, diria

você com aquele vozeirão lindo,

diria ainda que fui presa porque

talvez eu precisasse de um aval

mais banal do que a pequena fé

que envolve a todos que fecham

os olhos e esperam um milagre.

 

mas também é belo que me junte

a essa horda de miséria humana

que também me corrói os cascos

e acena com alguns bons efeitos

de uma deliciosa catarse pagã,

onde seres da floresta excitados

interrompem com rijo membro

o futuro acadêmico de donzelas.

 

não encontrei deus, é claro, como

nunca encontro ou encontrei deus

em lugar nenhum, mas, por ironia,

senti, justamente nesse lugar onde

a gente não é nada e a gente pede

sem nunca saber se o dia chegará

em que deus será apenas a forma

simples de amar as coisas sem ter

nem mesmo a coisa, mas um fim

assim meio nebuloso como sonho

com mãos suadas e acordos frios.

 

não deixaria você, vozinha, sem

um poema, já que você esteve lá

quando, criança sem mãe, recebi

o demônio diante das tuas carolas

que disseram é melhor deixar ele

respirar lá fora, e eu nunca mais

tinha voltado nesse quarto vazio,

mas aqui está seu neto, minha vó,

este que já não morre tão rápido,

reza o pai nosso e pode até mentir.

10.10.22

"bajo el vientre"




cheio de cédulas e moedas

enfiadas duras bajo el vientre

sigo solo por las calles ardientes

digerido e vomitado pelo vento.

 

descanso e compro um boné roxo

retirando as moedas e as cédulas

de bajo del mi vientre con amor.

 

é bonito um boné assim eu penso

todo roxo como en bajo el vientre

como a cara estampada na cédula

un señor como que roxo asfixiado

penso que de tanta plata ou aires

de importância, jagunços ávidos

da ganância estrangeira e branca.

 

mas sigo hasta el rio dónde niños

treinam futebol com sus novias

o amor a broma a brisa a brava

sorte de estar de pé emocionado

da terrível sorte de estar perplexo.

 

são pessoas brancas mas a mim

parecem aborígenes, africanos,

chineses, hindus, zapatistas o sea

a mim em suma são como seres

que fundaram algo e que depois

foram usurpados isso me parece

exato enquanto observo seus olhos

o modo displicente como se tocam

uns nos ombros dos outros e se dão

beijinhos nos lábios e nas bochechas

para ao mesmo tempo dizer te quiero

e também dizer te caliento soy tuyo.

 

entonces cambio de humor e apanho

meus fones de ouvido para escuchar

un rato de nuestra música tupiniquim

que é minha forma discreta de vestir

a tanga e desempenhar meu afeto livre

por um país tão imenso quanto perdido

e tão mais com medo do que eu mesmo

sem grandes epopeias porque nele pulsa

cérebro de peixe além de tripas firmes.

 

a tripa aguenta ainda o suficiente

para que eu siga pela beira do rio

escuchando manduka luiz melodia

sergio sampaio e o maior de todos

joão gilberto que canta olha o jeito

nas cadeiras que ela sabe dar e isso

enche meus pulmões de uma gana

toda nuestra toda tupiniquim que é

gana extra já sabemos não estamos

de férias pois aqui é o fim do mundo

salve amado brasileiro torquato neto

tua cabeça amassada é nossa pulga

que coça atrás da orelha do sonho

isso já ficou bem claro só que ela

está comigo o som e o sol não sei

mas aqui ninguém adivinha, aqui

não tem magrelinha ni naranjita

aqui no fim da linha uma donzela

que parece na verdade uma pantera

desliza de patins cai enxuga a cara

e no fim da trilha me lanço aos pés

da estátua de confúcio e leio sobre

direitos humanos de antes de cristo

quando a gente era ainda próxima

dos deuses da violência preliminar

que me traz de volta à ciudad vieja

e lembra cristo padre madre abuela

e sento para respirar fechar os olhos

por dez minutos numa igreja vazia

abro os olhos vejo a missa começa

o padre fala sobre direitos humanos

de depois de cristo e parecem menos

realistas mais heroicos espalhafatosos

que os direitos humanos de confúcio.

 

na convocação para comer a hóstia

me quedo em ligeira hesitação suína

mas depois penso que até os porcos

são filhos de deus então lavo o rosto

com água benta e dou todas as duras

moedas e cédulas bajo en el vientre

a um mendigo tan guapo como yo.

 

dali sigo ouço ¿por que no un rock

porteño tanguito charly luis alberto

ou aquelas bandas de fazer rodinha

tão bonito aqui eles chamam pogo

manal redonditos pescado rabioso

e que possa então finalmente chorar

e se eu cair que nunca me amargure

a loucura que nunca disse a ninguém

que ela venha comigo e me embale

com o carinho de uma mãe oriental:

república oriental do meu sonho vivo.


7.9.22

"observação não há: un poema uruguayo"

 



observação não há, mas os cascos

que trouxeram até aqui se mastigaram

nas pedras como dentes, as costas

são eretas porque paraste de morrer,

não totalmente, é claro, porque viver

deve sempre entorpecer, já que é algo

que se nos empurram corpo adentro,

porque observação não há, sabemos

que viver é estar fora enquanto queria

un gran pogo de rock un beso un cuchillo,

uma consulta lacaniana sem fim no teu colo,

um pesadelo em que os analistas sorriem

e trazem pedaços de carne nos dentes

e não se observa nada nessa nova identidade,

um fundo verde e uma pessoa amarela

no centro do fascismo canarinho rumo ao sul,

escape inevitável na ponta do funil de prata

por onde vai a merda que será bicho novo

que, minúsculo, comerá os bichos enormes

trazendo humildade, uma estátua de Confúcio,

cinco metros de metal no céu azul de septiembre,

que fica um mês mais bonito escrito assim,

essa utopia de cabeludas crianças passageiras,

os mil caninos de um compromisso selvagem,

no desejo de quedarme e pintarme de azul.

 

22.8.22

"poetas"

pro iotti

 

não que eu goste deles,

mas também me constituem

como fazem os vermes

dos quais também não gosto

mas trago nas vísceras.

 

agora me exercito na esteira,

estou no shape, como se diz.

mas poeta tem que ser gordo,

você diz enquanto lê balzac

numa bicicleta ergométrica.

 

somos todos, poetas, bicicletas

EGOmétricas, mas talvez nosso

maior desafio seja mesmo ralar

a cara das palavras no cascalho.

 

poeta pode também ser aleijado,

ter dente preto, gengivite severa,

ou ser um quase morto de fome,

mas que o uso de drogas baratas

não permite saciar pois que arde

engolir além do que a vergonha

de não saber o que fazer às mãos.

 

você me diz tudo calmamente,

enquanto pedala até o infinito,

enquanto eu corro pela esteira,

sem me dar conta do noticiário

e da heroína da novela das oito.

pensando após, ao me alongar,

na sensação de ser uma heroína,

no prazer de um pico de heroína.

 

porque não os amo mas estão aqui

dentro de mim, no meu intestino,

tramando revoluções alucinógenas

na direção de um destino ordinário.

 

4.8.22

"você minha primeiríssima"

 

você arrancou  adrenalina

de uma flor de lótus.

nunca foi sorrateira,

pernas e peitos abertos

às doenças dos séculos,

aos homens quebrados,

ao parto sem término

de uma grande explosão.

 

você corre limpa e sem sono

agarrada aos testículos de deus

como um modelo de caravaggio.

 

pequena operária sem descanso,

saiba que há muita gente insone,

olhos graves em quartos escuros,

com mentes iluminadas de amor

por você e por outras como você.

 

é desse tipo a tua legião, ragazzina,

um tipo que sofre rindo e jamais

perde a luz – diz a luz e traz a luz

na selva em que você caminha

com passo de camponês e a fina

tristeza que permite dar as mãos.

 

cavalo selvagem do ancestral,

roqueira pré-chuck-berry-elvis,

anarquista italiana na fissura

de um exílio que não termina,

porque trazemos em nós as ilhas

onde o sol tortura o pensamento

e torna os homens achatados,

atômicos em corpos apertados.

 

e você veio para abrir o corpo,

prima de todos, primeiríssima,

esticar os ossos e fazer tambor

com a pele dos grandes desejos.

28.6.22

"capoeira sem ambição"


queria ser um menino loiro,

capoeirista dentro de um filme

de lucky visconti, um tadzio

que gosta de samba de raiz,

marcel proust e relógios,

de uma beleza que eu gostaria

de esfregar pessoalmente

no chão dessa imundice

que nos cerca a todos nós,

tão sedentos de alguma visão.

 

como a desse jovem maduro,

lacaniano durante os dias úteis,

pequeno príncipe da quebrada

na sexta-feira, mijando na rua,

paulistano até o talo, mas lindo!

 

você me oprime, me faz perder

o controle que finjo que tenho e

quero esfregar sua cara no chão

como os hindus que pisoteiam

suas divindades feitas de bronze.

  

só não venha me dizer, meu anjo,

que alguém no samba de são paulo

seja maior que o adoniran barbosa.

 

27.3.22

"sempre que penso na grécia"

 

para kiddo

 

a poesia começa com a barbárie

na comunidade do sonho juvenil

– com humildade revolucionária

e nenhum argumento filosófico.

 

incêndio na ala das crianças órfãs!

tudo remonta tempos imemoriais,

a não ser pela fala pobre do poeta

– quinto na fila rumo ao olimpo –

que mesmo pobre criou os deuses.

 

demonstrações infantis de maldade!

exuberância original do corpo rijo,

a poesia começa com ossos frágeis,

da história, ao calcanhar de aquiles.

 

não penso, por isso existo: heroico.

sou eu o milagre ao qual me agarro,

o mesmo milagre que construímos.

 

sem moral alguma, apenas avanço

com gargalhadas e dispêndio de fé

: criação do que jamais deformarei.

 

repetição dessa história eterna ideal

às margens do meu desejo raquítico.

 

idade dos deuses, do poema heroico,

idade dos homens, de volta à caverna.

deuses outra vez, fé no que não se vê,

providência divina: força de acúmulo

da humanidade em desespero de fim.

 

devoção, sexo, enterro: eterna trilogia

– canibal cartesiano após a dissecção.

23.3.22

"pomar de morangos"

 

joelhos são grandes traidores,

foram feitos para durarem,

pelo menos entre humanos,

não mais de quarenta anos.

 

minha mãe morreu bem cedo,

de câncer no cólon do intestino,

acho que era esse o nome dele,

mas prometi a mim mesmo que

jamais tiraria a prova do nome.

 

quando fiz trinta e seis anos,

idade em que se foi minha mãe,

minha médica, que sabe bem

como minha mãe morreu,

olhou para mim e me disse:

você está na idade do câncer.

 

não achei muito delicado,

nem tampouco auspicioso,

mas achei muito engraçado

que exista idade para tudo.

 

então examinei, como indicado,

o cólon do meu intestino grosso,

enquanto pensava num intestino

que estivesse bastante injuriado,

reclamando de tudo à sua volta,

sendo grosseiro com as pessoas;

na hora aquilo me deixou calmo.

 

mas mesmo que eu estivesse

na idade ideal para o câncer,

o cólon do intestino grosso –

ah, minha mãe, ai de mim! –

era um pomar de morangos.

 

foi o que disse a doutora,

enquanto eu saía de maca

achando tudo engraçado

porque estava sob efeito

da anestesia e aquilo era

o que sonhei a vida toda

como o pico do prazer e

também uma boa notícia

e todas as vezes que corri

atrás disso me drogando,

não cheguei perto dessa

vontade de levar comigo

meu pomar de morangos

guardado no meu coração.


mas sobre meus joelhos,

naquela época tão antiga,

eu jamais havia pensado.