11.8.08

"homem-cotoco"


Ali está ele, sobrando em calças velhas, espalhado pelas calçadas da cidade em que não há mais tempo, catando latas e pequenos bibelôs ou pedaços de coisas quebradas.

O homem de poucos membros principalmente sorri. Só existe desespero nos que são vaidosos a ponto de sentirem que têm muito a perder. O homem-cotoco magistralmente sorri, pois dificilmente perderá mais alguma coisa, e nem a vida é mais alguma coisa. O homem-cotoco sorri porque não está na disputa imbecil pelo tempo. Ele está dissolvido no cimento entre carros e restos de macarrão que as pombas renegaram.

O homem-cotoco sorri, eis a cena deplorável. O homem-cotoco, apesar de tudo, é mais feliz do que você e eu. Ele não tem pelo que existir e, portanto, tem direito a uma felicidade sublime, posto que não é uma felicidade material. A felicidade do homem-cotoco desnuda o homem de fé. Nada poderia ser mais cristão que a felicidade do homem-cotoco. Um homem que passou por uma provação e por isso pode sorrir como quem tem direito a isso, por ter passado por aquilo. O homem-cotoco está ao lado de Cristo, Joana D’Arc, Madre Teresa, Charles Manson.

Além do mais o homem-cotoco não sabe que não tem do que rir, e esse é o melhor motivo pelo qual um ri. É como algo que se espera muito. Enquanto se espera pela coisa, sente-se tremedeiras, dorme-se mal, anseia-se horrivelmente pela coisa, conta-se os dias e o estômago se retorce. Misteriosamente, pouco antes de a coisa acontecer, a alma se embota e o sangue foge à face, então somos tomados por um completo desinteresse pela possibilidade iminente da coisa.
Mas com o homem-cotoco não há possibilidade iminente. Ele é uma possibilidade resolvida para sempre. Pelo fato de a felicidade dos homens saudáveis ser no fundo um embuste, uma fábula que não se completa nada bem, pois que o homem saudável só é feliz enquanto espera, o homem-cotoco, por não fazer nada além de esperar, sente-se genuinamente livre do pavor da proximidade de qualquer concretização. É portanto feliz e mora num eterno interstício.

Enquanto isso, olhamos para o homem-cotoco, o feliz e satisfeito homem de poucos membros, e negamos a ele uma moeda ou ao menos os dentes. E dizemos que é porque não temos moeda, mas temos. E temos dentes também, apenas não mostramos e os deixamos apodrecer numa cena lamentável. Moedas, as temos muitas, não gostamos delas inclusive. Aliás, muitas vezes não sabemos o que fazer com elas. Elas provavelmente acabarão um dia no câmbio negro.

Não damos nossas moedas inúteis ao homem-cotoco porque precisamos esconder a nossa hipocrisia. Porque se déssemos seria como ser cúmplice de um sistema opressor de classes falido e corrupto que não repassa devidamente o dinheiro capitalizado pelos altos impostos etc e tal.

Mas no fundo queremos que o homem-cotoco desapareça com seu sorriso genuíno. Queremos que ele morra porque é mais feliz do que nós e não tem nada. Queremos que ele suma porque ele é a prova mais clara da nossa frustração. Ele deve, sim, desaparecer porque olhamos para ele e vemos nós mesmos desesperados e com pressa para sermos açoitados numa espécie de repartição sem fim. Devemos tirá-lo do mapa, o homem-cotoco, pois ele é a verdade inconcebível, que mora nua no fundo de um poço.

O homem-cotoco permanece entre a pastelaria chinesa e o amolador de facas. Ele sacode as moedas dentro do copo de plástico. Acima de tudo ele sorri. Seu sorriso é quase um desaforo e, por isso, ou damos dinheiro ou ignoramos, das duas uma, dois jeitos de chamar a morte. Porque foi descoberto que a morte vem da falta de atenção e da ganância. E o homem-cotoco é um ultraje, uma prova de que somos desatentos, se passamos reto. E uma prova de que somos gananciosos, se jogamos moedas.

Mas uma senhora surge num belíssimo carro, abre a janela e sorri para o homem-cotoco. Isso é uma revelação quase mítica e um clarão, uma aura absurdamente clara parece envolver a cena. O homem-cotoco se aproxima com as palmas das mãos sobre o asfalto quente, a senhora lhe coloca um cigarro na boca, acende o cigarro. Eles riem, sorriem, eles estão com as bochechas vermelhas. Conversam sobre algum assunto e o homem-cotoco parece estar dando à senhora algum conselho, pois permanece sorrindo, mas ela não. Seus traços estão suaves, mas compelidos. Algumas pessoas tropeçam nas calçadas diante da cena. Outras passam aos cochichos, indignadas.

A senhora abre a porta do carro, as pernas de seda, o salto de bico preto bem-polido. Ela se agacha e beija o homem-cotoco na testa, depois nos olhos, então na boca. O homem-cotoco segura as nádegas da senhora com suas mãos enormes como pés. A senhora volta para o carro, bate a porta, buzina duas vezes e vai embora. Eles acenam um ao outro. O chinês da pastelaria sai de trás do balcão com o pano de prato na testa. A senhora rica dos cabelos vermelhos extravagantes não havia jogado moedas nem ignorado o homem-cotoco. A senhora era a vida ínfima, o que sobra ao eterno recomeço. A vida pura, que passa pelas brechas e encontra o sórdido sem asas, correndo de volta para a caverna. É quando deus se contradiz e nos sentimos mortos. E estamos por um triz, mas temos pernas

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