24.8.14

“programa de auditório”



meu coração é uma garota de oito anos
com uma voz de anjo e muito nervosa
subindo ao palco e não ainda preparada
para cantar aos milhões de espectadores
uma canção que apenas tocam os anjos.

gemendo baixo, tremendo de nervosa
ela espreme os olhos por trás dessa lira,
inaugura aos prantos metas para jurados
que surgem chorando frente às câmeras.

isso só pode ser coisa de deus, eles dizem,
e meu coração pensa no aniquilamento
e assustado interpreta ó mio babbino caro.

10.8.14

"casablanca"




estamos seminus
nas esquinas chuvosas
quando dizemos
get lost kiddo,
sem chapéu de feltro
ou negro ao piano,
tampouco temos
uma boa tradução
para a frase;
se manda garotinha,
é como se costuma
dizer por aqui.

pesam os cílios
da emoção inata,
rondam hienas
por entre as flores;
estamos seminus,
temos bem menos
coragem e muito
mais frio do que
imaginávamos.
apenas o nosso
corpo encharcado
pode falar por nós.

7.8.14

"ouço a música"


mais uma vez aciona-se o velho realejo.
algo migra lentamente, algo muda sem pressa,
mas não tão lentamente, não tão sem pressa.

quando algo muda, quando algo migra,
é quando se corre o maior risco de desaparecimento.
ainda assim, há o que nunca desaparece,
mas também não aparece demais;
permanece como galinha decapitada,
correndo em torno do milagre.

ouço a música leprosa do velho realejo.
seus permanentes e sempre mesmos encaixes frouxos,
suas colagens quebradiças e seu completo e tão íntimo desafinar.

outros dias eram os mesmos acordes,
apenas a dança não permaneceu igual.
por onde não correste por medo
de que teus pés vencessem aquém de ti,
o que não tocaste sem ter resolvido
ainda o que não tocar,
todos os beijos trêmulos e os desmaios
nas esquinas do esquecimento.
tudo isso está sempre em jogo aqui.

soltas-te uma vez mais e sabes que cairás já sem ossos,
e inauguras teu visco doce de derrota premeditada,
e encerras-te noutra voltagem, tornas-te poça de amor.

nada sabes da corrente que te arrasta.
nada dizes, falas muito, dos benefícios deste novo meandro.
destruir consigo, arrastar em morte,
dobrar-se em cápsula, cultuar cicatrizes,
empalhar tristezas e embalar fantasmas,
foi só isso o que te foste antes ensinado.

mesmo assim te atiras na torrente e sabes
que mais alguns pedaços cobrarão o crime póstumo.
as partes de outras partes correrão atrás de ti pelas ruas.
e nada farás de importante, e ouvirás a música da passagem.

no que nada farás serás tu, e tudo mais se perde,
o realejo podre afirma a mais velha contradição.
atirar-se na corrente, migrar no risco da repetição,
ser um por não ser nada; lento, não sem pressa.


2.8.14

"férias em araruama"


abrem-se as portas deste mês caseiro,
o mês que é tido como de pouca sorte.

aqui estamos nós dentro das pequenas
possibilidades que enfim estouram junto
ao alho que queimamos com as cebolas
ao lado das iscas de frango cancerígenas.

fazes a cama em silêncio enquanto tusso
e crio bolas de pelos brancos na garganta
e doem os dentes de um ato esperançoso.

entre as partes há ainda um passado curvo,
abrimos compotas enquanto ao largo passa
o navio fantasma de nossos primeiros anos.

formamos as hastes de um novo domínio,
preparamos os vegetais dessa intimidade.

mosquitos devoram a paciência do beijo,
a corrida sustenida em torno de uma cura
incha os joenetes dos chutes em postes.

tomaste o trauma em linguagem agridoce,
pisas firme o passo da escolha permitida.

comandamos juntos a delicada ausência
da corda que desaparece de tão esticada.

abrem-se as portas desse mês caseiro,
o tempo do amor é a trégua dos olhos.