29.6.06

“mãos fantasmas”

hoje nessa tarde fria
de apitos envenenados,
quando a única companhia
é o cochicho dos sapatos,
sinto a falta de um lenço.
e na falta de um lenço,
escreverei essas linhas.
e na falta de lágrimas,
farei de sangue a tinta.
e na falta das tuas mãos,
seja você quem for e se foi,
mãos esquecidas na virada
de uma esquina sem aviso
de que seria para sempre difícil,
(incompreensão forçada a letras)
na tua falta e na minha falha preciso
das minhas próprias mãos manetas,
malditas ciganas que nunca serviram
a não ser para chorar através de dedos
se esconder no ataque de veias cinzas
e procurar por dentro da terra escura
do meu próprio esquecimento
a ternura inútil de que tanto falam
os fantasmas com os quais converso
para saber se sou mais um deles,
ou se nem para isso presto.

27.6.06

“não estamos com sono”

somos para sempre bebês incompreendidos
numa vastidão de movimentos alquebrados
por queixos vis e sobrancelhas egocêntricas
que nos comovem conforme
tiramos a água do nosso cacto
camelos paralíticos sedentos
por folhas vivas jamais requisitadas
depois que aprendemos as palavras
para nos defender de nós mesmos
e pensarmos no que não somos
para deixarmos de ser o que somos
e passarmos a ser o que lhes convém
– eles podendo ser nós mesmos –
através de comunhões
através de curas
através de amor
através de medo.

as palavras no entanto vêm depois
do primeiro sentimento assustado
– nossa única expressão legítima.

palavras muito bem assentadas
quando nos contentamos em não mais
pensar naquilo que realmente fala
e passa do ponto da palavra.

sensação que
com a palavra
se embaralha.

mas temos nossos paliativos na bolsa:
disfarces agrupados em notas sonoras
porque precisarmos não enlouquecer
como quando éramos bebês
e queríamos tocar certo pote de vidro
sem saber exatamente o motivo disso
(como hoje não sabemos disso e do resto)
como não sei o motivo dessas linhas perdidas.

talvez fosse apenas para que pessoas como nós
só que maiores e menos expressivas
dissessem:
“é sono”.

não é porque alguém boceja
que ela precisa estar com sono.

talvez seja mais lógico
que todos fossem chatos
fazendo caretas ridículas
por trás do que acham engraçado
porque não conhecem.

talvez no fundo tudo
aquilo que desejamos
desesperadamente dizer
seja apenas o que nos consola.

porque o incomodo profundo
(espanto inicial de bocas e olhos)
nós não conseguimos denominar
assim como os bebês.

25.6.06

"Somewhere i have never travelled" (e.e. cummings)

somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully, misteriously) her first rose

or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands

*** minha tradução livre ***

"Em algum lugar para onde nunca viajei"

em algum lugar para onde nunca viajei, felizmente além
de toda experiência, seus olhos têm seu silêncio:
no seu gesto mais frágil há coisas que me confinam,
ou que eu não posso tocar porque estão muito perto

seu olhar mais escasso facilmente me revelará
apesar de eu ter me fechado como dedos,
você me abre sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando habilmente, misteriosamente) sua primeira rosa

ou se seu desejo é me fechar, eu e
minha vida nos fecharemos lindamente, de repente,
como quando o coração dessa flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em todo lugar;

nada podemos perceber neste mundo que se iguale
ao poder da sua intensa fragilidade: cuja textura
me constrange com a cor de seus continentes,
invertendo a morte e para sempre com cada respiração

(eu não sei o que há em você que fecha
e abre; apenas algo em mim compreende
a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

24.6.06

"legítima defesa"

me esforço em saber se existo,
queimo no fogo de boas idéias mal-conduzidas
enquanto todos em volta endireitam suas vidas
e se adaptam a rumos coletivos.

desdizem o que diriam se não fosse ontem,
cancelam a chance de enlouquecer sem asas,
desmentem aquilo que os faz noite em claro.

sorrio com esforço para o que dizem sobre mim:
que sou abstrato, rancoroso, pesado, indisposto,
antipático, irônico, cínico, romântico, falso, leigo,
tudo aquilo que julgam porque são e não podem ser.

aceito tudo com a indiscrição dos olhos chineses
e o sorriso legítimo de um surdo abençoado.

outra coisa – uma palavra – seria exigir muito
de quem não pretende saber a que veio.
e tem tanta curiosidade de ser como outros,
que dizem tanto do que são capazes de ser,
do que podem subverter em mágoas repartidas,
do que seriam não fossem feridas cobertas de pó,
todos tão amáveis, tão seguros, tão corretos...

mas não posso bocejar agora.

todos discutem sobre o que deve ser feito.
tento fazer o que é discutido – se consigo,
e discuto o que deve ser feito só comigo.

"cão"

um cachorro preto se aproxima de mim agora,
enquanto penso palavras bonitas para a morte.
ele tem nos olhos uma camada espessa e lacrimosa
e olha para mim como se também não fizesse idéia
de que palavras.

senta-se ao meu lado e,
sem dizer nada,
nos encostamos em pêlo.

então eu penso,
enquanto olho sua cara preta fiel:
para que servem todas as teorias,
os gritos de coletividade por causas,
caminhos para uma salvação medrosa,
para que todo esse falatório de tias,
se no final do dia
apenas um cão,
sem dizer nada,
é tudo que eu espero
de toda a humanidade?

"The replacements" (Charles Bukowski)

Jack London drinking his life away while
writing of strange and heroic men.
Eugene O'Neill drinking himself oblivious
while writing his dark and poetic
works.

now our moderns
lecture at universities
in tie and suit,
the little boys soberly studious,
the little girls with glazed eyes
looking
up,
the lawns so green, the books so dull,
the life so dying of
thirst.

*** minha tradução livre ***


"Os substitutos"

Jack London bebendo sua vida enquanto
escrevia sobre homens estranhos e heróicos.
Eugene O'Neill bebendo a si mesmo distraído
enquanto escrevia sua sombria e poética
obra.

agora nossos modernos
palestram em universidades
de terno e gravata,
garotinhos sobriamente estudiosos,
garotinhas com os olhos vidrados
erguidos
acima,
os gramados tão verdes, os livros tão chatos,
a vida tão morrendo de
sede.

23.6.06

"Encarnou o Bussunda"

Existem coisas para as quais só a alma tem explicação. Coisas que não estão nas estatísticas televisivas. Nem nas rodas sonolentas de comentaristas egocêntricos sem cabelos, pagos pelas suas sobrancelhas. Nem mesmo na agressividade do texto do seu cronista preferido. Elas estão em outro lugar. Num lugar de onde não se espera nada e do qual se duvida. Um lugar de onde nada vem e para onde tudo vai. Coisas que independem do que sustenta a carne. Dessas coisas da alma, sobre as quais tanto se fala e pouco se sente, Ronaldo Nazário perdeu dez quilos ontem. Acredito numa forcinha paralela do Bussunda.

Galvão Bueno está muito parecido com meu avô italiano: dizendo os nomes das ruas logo depois que as ultrapassamos. Ele simplesmente não consegue fazer mais nada certo, na hora certa, da maneira devida. Meu pai diz que é um preguiçoso. Ele conheceu Galvão Bueno. Trabalharam juntos. Me pareceu, pelas suas descrições, um bonachão. O colar pega-rapaz apertado no pescoço e o cabelo mergulhado no gel fortalecem a hipótese. Talvez seja mesmo um preguiçoso, não importa. Mas ele vez por outra diz umas frases sem pensar, puro instinto, que ultrapassam a sua incompetência – são suas frases mais passionais – e talvez seja isso mesmo um tipo de delírio da velhice (no caso dele, precoce, segundo meu pai, pela preguiça), a mesma que sustenta Zagallo, uma espécie de medalhão da sorte – e na verdade esse texto todo é apenas sobre isso –, que geme como se esperasse a extrema-unção, mas é extremamente premiado pela vida, como um exemplo do que não somos, e por isso Zagallo é unânime sem burrice, contrariando Nelson Rodrigues, pois todos sabemos que ele não é mais necessário para nada, assim como Galvão, mas, como eu disse, há coisas de alma sobre as quais não sabemos nada, então deixamos os dois velhos nos seus lugares, como múmias carinhosas, um no banco, outro debaixo dos fones de ouvido, só por elas, pelas coisas sobre as quais falamos sempre, como se com certeza delas, mas que com uma lufada nos deixam recolhendo cacos de dúvida.

Não queria falar sobre isso. Tudo isso não passa da flor do espetáculo. E tratando-se de um espetáculo, espera-se magia. Aí chegamos ao ponto exato, que acabou de me escorrer pelos dedos outra vez, justamente porque é exato, e meus dedos não. Não importa de que tipo de magia se fale, o importante é que encha a alma. A vida só se mantém com certa dose de magia, sempre acompanhada de nostalgia e medo. Um menino que dorme numa caixa de papelão e de repente olha uma estrela cadente no céu. Um ricaço daqueles de bochechas cor-de-rosa, pouco antes de terminar seu quinto uísque, minutos antes do último enfarto, ouve a voz de sua velha mãe costureira por trás das cortinas, e lhe parece que nunca viveu antes disso. Normalmente são pequenas coisas, que carregamos para sempre, ou que nos carrega para sempre, prefiro dizer, porque somos marionetes crentes, e essas coisas são leves como pluma, elevadas acima do que se possa falar sobre elas, como insisto nesta crônica inútil.

Ontem tivemos muitas pitadas delas. Quando o Japão fez o gol, aliás, um belo gol, por mais que Dida não precisasse ter se agachado, pensei comigo: “agora vamos saber que time é esse”. O time passava bem a bola, mas ainda muito carregado do estilo prancheta sem linhas do Parreira. Passes exatos para lugar nenhum. Caminhávamos para mais alguns minutos de sofrimento, nos quais sempre me pego pensando: “por que eu sofro pelo que esses caras não fazem?” Isso não sei explicar. Seria ainda mais inútil. É leve demais. Não vou carregar esse sentimento puro, singelo, desnecessário e até mesmo estúpido do torcedor com palavras. Seria injusto. O gol de cabeça talvez tenha sido um presságio de que as coisas seriam ainda mais estranhas.

No segundo tempo, tenho a convicção de que algo aconteceu enquanto Ronaldo vestia as chuteiras com dificuldade, enquanto Ronaldinho Gaúcho olhava sua cara feia suada no espelho, enquanto Juninho pensava que deveria ter feito a barba. A mágica!

Ela esteve na tabela entre Ronaldo Gaúcho (existem boas jogadas, existem jogadas de gênio) e Ronaldo Gorducho, ou no lançamento do primeiro para Cicinho, ou na régua exata para Gilberto (Roberto Carlos deitado como Marilyn Monroe), ou na cavalgada celestial de Robinho área adentro – um deslize dos deuses. Foi o jogo das provas de aritmética reprovadas pelo conhecimento dos analistas de formação técnica. Um jogo tão exato que não admite cálculo. Um lance decidido por estrelas meio apagadas, como diria Mario Quintana, se ainda estivesse por aqui. Dez quilos e meio a menos para um homem que insiste em se provar para hienas. O jogo das almas esteve em campo, quando um zagueiro de asas dinâmicas alçou vôo pelo coração do milagre, como sempre, na hora certa da fuga de sua timidez harmônica. Pode ser que não ganhemos mais nenhum jogo. Pode ser que tenha sido como foi porque o time do Japão é muito ruim. Ou, mantendo a minha teoria, porque Zico e Copa do Mundo são como um paquistanês e um indiano num elevador enguiçado. Essa vitória de ontem não garante nada, nem é base de raciocínio para tese alguma de como ser campeão. É justamente o contrário disso. É prova de que raciocínio lógico e futebol se constrangem. É a diferença entre assistir falando e agarrar calado. Algum de vocês prestou atenção nos olhos do Juninho Pernambucano enquanto ele comemorava seu gol? Estavam vermelhos, furiosos, quase maus. Aquele vermelho carrega tudo do que o futebol precisa. O resto é papo furado, estatística, não vale uma vírgula.

E Galvão Bueno, por mais que os tempos tenham sido talvez traiçoeiros com ele, oferecendo com facilidade luxos e benefícios por pouco em troca, disse uma das frases pelas quais eu continuo assistindo aos jogos do Brasil através da sua narração, logo após o segundo gol do nosso anjo gordo: “Não há mais ninguém na frente dele!”

17.6.06

"justificativa"

tudo o que não pude,
que não tive,
que não consegui,
que fingi desimportante,
foi-me tendo sem carícia,
com indiferença amiga.

alheio às minhas falhas,
transformei um saco de ossos
numa caixa de caretas.

e pensei: será tudo isso nada?
serão nos meus pés unhas postiças?

então calei e procurei meu reflexo nas estrelas:
não vi nada.
então falei apenas para te dizer que sim:
você não estava.

quando percebi
que sendo tudo aquilo
que não era por apetite,
fome disfarçada de olhos quietos,
jurava a mim mesmo muralha intransponível.

“nada disso!” –
me desmentiram os olhos secos do pai,
enquanto se enterravam num estado de areia.

“vais morrer duro,
sem ninguém nem nada” –
profetizou meu coração através de falsas veias.

“segue adiante,
trata da tua forma como o moinho trata a água”
– me disse o hálito do poeta triste na virada da página.
e seus olhos me presentearam com certo branco fugidio.

"que faço desse branco, poeta?" – perguntei.
“faz dele teu destino” – ele escreveu na água.

poeta trágico,
que me observa agora
através desse branco sarcástico
que seguro firme nas pontas dos dedos,
sem saber o que fazer dele dentro de mim,
aqui me justifico:

se afundei a cabeça
na malha frágil do destino,
foi apenas porque muito me encantava
não ver o outro lado da minha muralha
para poder inventar meu invisível.

15.6.06

"um quarto menos eu"

um quarto...
e dentro do quarto estão:

um apito estilhaçado de lamento
os cílios tranqüilos das cortinas
a sombra envenenada do desejo

o susto acocorado de um anjo
no armário duas asas postiças
um copo cheio de percevejos

a solidão perplexa dos ladrilhos
um coração inflado de segredos

um par de meias não muito limpas
esperando em vão pelos teus pés

almofadas encharcadas de anfetamina
e o urro do câncer no suor da mulher

o cadáver de um polvo sobre a cama
o chão de madeira datilografado por
dedos invisíveis que amam em silêncio

páginas incompletas cheias de olhos
mofo por dentro dos uivos da estante
asas de borboleta dentro de uma caixa

a sobra sonora de um beijo ambulante
fotos esquecidas em manchas de vinho

sonhos mantidos na ponta de uma faca
sangue coagulado na pele da esperança

uma poltrona como nos filmes antigos
a mecha negra do carinho assassinado

fundo na cama, ao lado do polvo: um estupro
reservado para um ponto vermelho no escuro
e a silhueta da cigarrilha na boca de uma puta

o pedido ignorado pela janela ao mar mendigo
dez dragões amarelados renegados pelo vento

cinco anos num minuto derrubado de bruços
como se fosse um canalha italiano de cimento

e por fim... pouco depois do sono profundo...
paredes confusas espancadas pelos murros
do muro veludo divisor da crise em fatias

paredes traumatizadas, sem quadros, encardidas
paredes fiéis, sonâmbulas, necessitadas, amigas.

no quarto tudo é muito nítido
menos eu...

13.6.06

"sujeito embriagado se esfaqueia por amor”

marcamos o romance a ferro
quando todo o resto já havia
desistido.

agora estamos ambos quietos
atrás de um pai, de uma mãe,
um castigo.

comungo com braços de pedra e
crianças envidraçadas reanimam
a bastilha.

a pomba branca de olho amarelo
funda a faca em grãos concretos
de veias vazias.

estamos sozinhos e me sinto tonto
porque o coração corre apressado
numa rua sem saída.

uns chamam de morte, outros amor,
a boca metafísica que engole dados
e nos cega por dentro.

meu sangue é sorte de chance rala,
a noite é cínica como giz de farpa:
a faca afia e afunda.

pobres as crianças mudas, tão tristes,
por serem obrigadas a morrer felizes:
sou só mais uma.

com a faca suja de sonhos na mão trêmula,
pronta em sangue para tuas ruas incertas,
espero pelo frio.

e se você nunca existiu no meu caminho
por que fica a faca fixa dentro das idéias
doendo de vinho?

"Ode à Poesia" (Pablo Neruda)

Perto de cinquenta anos
caminhando
contigo, Poesia.
A princípio
me emaranhavas os pés
e eu caía de bruços
sobre a terra escura
ou enterrava os olhos
na poça
para ver as estrelas.
Mais tarde te apertaste
a mim com os dois braços da amante
e subiste
pelo meu sangue
como uma trepadeira.
E logo
te transformaste em taça.
Maravilhoso
foi
ir derramando-te sem que te consumisses,
ir entregando tua água inesgotável,
ir vendo que uma gota
caía sobre um coração queimado
que de suas cinzas revivia.
Mas
ainda não me bastou.
Andei tanto contigo
que te perdi o respeito.
Deixei de ver-te como
náiade vaporosa,
te pus a trabalhar de lavadeira,
a vender pão nas padarias,
a tecer com as simples tecedoras,
a malhar ferros na metalurgia.
E seguiste comigo
andando pelo mundo,
contudo já não eras
a florida
estátua de minha infância.
Falavas
agora
com voz de ferro.
Tuas mãos
foram duras como pedras.
Teu coração
foi um abundante
manancial de sinos,
produziste pão a mãos cheias,
me ajudaste
a não cair de bruços,
me deste companhia,
não uma mulher,
não um homem,
mas milhares, milhões.
Juntos, Poesia,
fomos
ao combate, à greve,
ao desfile, aos portos,
à mina
e me ri quando saíste
com a fronte tisnada de carvão
ou coroada de serragem cheirosa
das serrarias.
Já não dormíamos nos caminhos.
Esperavam-nos grupos
de operários com camisas
recém-lavadas e bandeiras rubras.

E tu, Poesia,
antes tão desventuradamente tímida,
foste
na frente
e todos
se acostumaram ao teu traje
de estrela cotidiana,
porque mesmo se algum relâmpago delatou tua família,
cumpriste tua tarefa,
teu passo entre os passos dos homens.
Eu te pedi que fosses
utilitária e útil,
como metal ou farinha,
disposta a ser arada,
ferramenta,
pão e vinho,
disposta, Poesia,
a lutar corpo-a-corpo
e cair ensanguentada.

E agora,
Poesia,
obrigado, esposa,
irmã ou mãe
ou noiva,
obrigado, onda marinha,
jasmim e bandeira,
motor de música,
longa pétala de ouro,
campana submarina,
celeiro
inextinguível,
obrigado
terra de cada um
de meus dias,
vapor celeste e sangue
de meus anos,
porque me acompanhaste
desde a mais diáfana altura
até a simples mesa
dos pobres,
porque puseste em minha alma
sabor ferruginoso
e fogo frio,
porque me levantaste
até a altura insigne
dos homens comuns,
Poesia,
porque contigo,
enquanto me fui gastando,
tu continuaste
desabrochando tua frescura firme,
teu ímpeto cristalino,
como se o tempo
que pouco a pouco me converte em terra
fosse deixar correndo eternamente
as águas de meu canto.

10.6.06

“atriz”

as palavras
se elas saem doloridas
é a tinta negra que sangra
as frases como feridas.
pouco me adiantam
as palavras floridas
que desabrocham no ar,
pétalas mortas no mofo
do armário.
prefiro dois dedos direitos
e uma intenção sinistra.
quero de ti
a palavra comida,
quero as palavras
pelos poros da página,
ou pelo meio da tua virilha.
quero enfim,
segundos antes das cortinas,
escrever aquilo que te cala.

“o pequeno suicídio de e.e cummings”

room suicide rose a self
sometimes imagine but I
somehow real smiles not

to moment blood hands
easier would who dance

cloud midnight trigger crash mirror
this is myself on the way of ants.

9.6.06

“valsa muda”
como se descosturasse as costeletas encardidas do sol
e lambesse o choro do mar com língua de metal
descarrego minha dignidade petrificada
e dos olhos os sonhos me esfaqueiam
de perdão sem dentes. em meio
à bondade e à culpa
volto ao início
olho para trás
e nunca mais
o mesmo ruído de precipício
apenas latas esquecidas ao vento
no vento que mantém vivas as latas
e as empilha intactas sobre duas patas
dentro de outras latas maiores e mais rápidas
no enxame negro dos bêbados cuspidos pelos bares.

e por dentro da chance repentina nos porres de mágoa
como se da rua eu fosse o zinco e da lua a prata
e da estrela eu fosse a visão tímida de cobre
penso em tudo que há dentro de mim
e morre. sobrepujado pelo corte
volto ao início
olho para trás
e nunca mais
olhos de ferro sorridentes
apenas cabelos brancos cadentes
e saúvas obstinadas congeladas de pavor
emolduradas num quadro de cores sem nexo
lembranças corroídas junto a minha mão leprosa
bichos da lama - que permanecem - aguardem meu regresso!

voltarei com as ilusões secretas derretidas em ampulhetas
ficarei desnutrido no meio e vago nas pontas de vidro
como o tempo que não passa neste poema
e empilharei os ossos sobre o destino
e sobre o monte esperarei por ti
vão o vento se vão as velas
volto ao início
olho para trás
e nunca mais
uma praça onde crianças
escondem a coragem dos adultos
na cor magra que estala as costas do mundo.
e sem entender continuarei cem pés na mesma dança
esperando a chuva que varra com tudo essa valsa sem música.

7.6.06

"Neruda"


que acupuntura
crua será essa
da tua agulha
na minha testa?

tuas perguntas
me trouxeram
de volta para
uma antiga sala.

vim sem medo, poeta.

é um berço estranho
onde os mortos
se vestem de vivos
e aos vivos é dito
que estão mortos.

difícil ser simples, poeta.

nessa sala branca
onde ronca o azul
da cordilheira lacrimosa
na síndrome das papoulas
sobre o lombo das tuas musas
fico paralisado, quieto
e vacilo como o mar
do eterno retorno
pelo qual tu foste
na badalada dos sinos
em tua cama infinita
me deixando dentro
da tua boina de pipas.

“velho sonha com infantas num baile de máscaras”

dedicado à criadora de dragões amarelos
sorrisos
disfarçados
pela pureza
dos equívocos
necessitados
de quatro latas
amassadas
medusas
semi-nuas
luas cheias
debruçadas
no canto da teia
da sala infestada
de rostos de areia
sem que se saiba
sem que se saia
sem que tua vaia
[mesmo a ti sendo
senso subterrâneo]
emudeça o cata-vento
no giro da tua saia
quero esconder
a marca da lágrima
para não ter que dizer
a mentira ensaiada
que me escapa à boca
e desdenta os efeitos
dos passos marcados
tantas vezes nas loucas
noites frente ao espelho
com meu farelo de dados.

"Mario Quintana, para melhorar a semana"



"Cocktail Party"

Não tenho vergonha de dizer que estou triste,
Não dessa tristeza ignominiosa dos que, em vez de se matarem, fazem poemas:
Estou triste por que vocês são burros e feios
E não morrem nunca...
Minha alma assenta-se no cordão da calçada
E chora,
Olhando as poças barrentas que a chuva deixou.
Eu sigo adiante. Misturo-me a vocês. Acho vocês uns amores.
Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão.
E trocamos brindes,
Acreditamos em tudo o que vem nos jornais.
Somos democratas e escravocratas.
Nossas almas? Sei lá!
Mas como são belos os filmes coloridos!
(Ainda mais os de assuntos bíblicos...)
Desce o crepúsculo
E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas as poças d'água,
Acenderam-se de súbito os postes de iluminação!

***

"Poema da gare de Astapovo"

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

***

"Se o poeta falar num gato"

Se o poeta falar num gato, numa flor,
num vento que anda por descampados e desvios
e nunca chegou à cidade...
se falar numa esquina mal e mal iluminada...
numa antiga sacada... num jogo de dominó...
se falar num daqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...
se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol...
e disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poemas são de amor!

***

"Os poemas"

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

***

"Domingo"

Amar: Fechei os olhos para não te ver
e a minha boca para não dizer...
E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei,
e da minha boca fechada nasceram sussurros
e palavras mudas que te dediquei...

O amor é quando a gente mora um no outro.

***

"Bilo-Bilo"

O idiota estilo bilo-bilo com que os adultos se dirigem às crianças, isso deve chateá-las enormemente, como a um poeta quando abordado com assuntos "poéticos".

***

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!
(de A vaca e o hipogrifo)

***

"O pior"

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

***

"Exame de consciência"

Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

***

"Do amoroso esquecimento"

Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

***

"A vida"

Mas se a vida é tão curta como dizes porque que é que me estás lendo até agora?

6.6.06

“soneto da vida infinita”

todas as vidas nos pertencem.
até mesmo – pobres – aquelas
que na gota da loucura temem
suspiros no parapeito da janela.

a morte nós somos dela todos,
não há diferença em antecipar.
o que alguns chamam de morto,
é apenas um outro dejeto lunar.

debruçado sobre a Guanabara de cinzas
me lembrei das tranças fiéis de Manola:
tempestade dourada perdida numa alcova,

efeito de quem aplica e abandona a seringa.
depois percebo que não há tranças ou Manola,
e que somos todos efeito do que não há ainda.

“das coisas pequenas, que permanecem”

não acho que se deva dispensar nem uma linha.
qualquer escritor que ainda saiba rir
conhece a dor de uma linha apagada,
justamente porque sem dor não há risada.
e ao apagarmos uma linha que saiu torta,
pelo pensamento de que devam ser retas,
apagamos um pouco da nossa própria pele,
falseando nosso errado em prol do correto.
e,
por mais que tentemos forjar nossas rugas,
não se encaixam linhas retas em curvas.
pois no fundo escuro desse céu onde,
fora os frágeis pontos de luz branca,
a fumaça dos aviões supersônicos,
fora o coração voador das plantas,
lá bem no fundo se esconde
uma verdade inalcançável
e tão pequenina!

além da escuridão do reflexo das conchas,
além do vômito da lua nas algas marinhas,
além da embriaguez nauseabunda da areia,
além da irritação imperturbável das ondas,
existe algo que desce subitamente
diante dos nossos olhos,
como farelo mágico.
e depois sobe
e espreita
e tomba
talvez o que no lugar das ondas
deveria ter sido escrito neste
poema
e,
junto com os nossos restos,
com nossas cismas e afetos,
foi apagado sem dó nem pena.
sim,
acredito que esse fundo inexplicável,
que dança diante dos nossos narizes,
seja tudo aquilo que foi descartado
do que de nós são feitas as cicatrizes.
mesmo que eu decerto,
como todo ser letrado,
amante analfabeto,
cinza de centelha,
esteja mais preocupado
em desvendar estrelas.

5.6.06

"Se" (Rudyard Kipling)

para um amigo especial

Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar — sem que a isso só te atires;
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao mínimo fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais — tu serás um homem, ó meu filho!

* tradução de Guilherme de Almeida

“sou agora o que falta em mim”

a primeira coisa que fiz ao desembacrcar no porto alegre, após esquecer como evacuar, foi misturar meu choro à chuva fina que trazia a poeira invernal no fim do outono e, em seguida, ser enterrado junto a operários uruguaios com espessas suíças e dentes tártaros nas pedras da submissão civilizada, logo após ter visto dois homens esquecerem da possibilidade íntima com línguas afiadas em gomas de cabelo estéreis, enquanto meninas pálidas de estômago envernizado me lembravam o perdão meticuloso das saias bordadas nos dentes azuis do vinho barato, metade gengivas abastadas de chances, metade placas na direção distante das ruas tomadas pela enchente positivista, ou panturrilhas flácidas cobertas de olhos tagarelas até que a argamassa secou e fiquei...
...nas paredes da catacumba – como um rascunho esquecido – quente e acarpetada de pedras ruminadas pelo vento frígido, sobre as quais borbulhava e escorria o sangue da reserva especial do merlot Gambrinus, douravam-se suores acumulados na estrada asmática ainda curta, entrecortada pela areia vermelha da constipação emocional, onde havia também quadros: uma bandeirola com a letra itálica de Rubias de New York – acima a foto de Gardel sem as bolas do saco e de chapéu pardo; Pablo Neruda embriagado em costeletas mortas dentro da boina listrada de avalanches, seu rosto como pergunta na interrogação das papoulas, palmas de mão como última solução para o vento infinito; Albert Einstein sendo tão estrangeiro ali quanto eu, estranhamente, com um rabo de cavalo.
perguntei por entre a fumaça da vela fictícia, que transformava aquela masmorra num útero apodrecido pelo amarelado das fotos inimagináveis, sob a sombra de garotinhas e garotinhos góticos:
“vocês têm cerveja uruguaia aqui?”
“Patricia, Norteña ou Pilsen”, disse o rapaz de avental escuro, com cara de meia-direita trombador.
a cerveja tinha 960 mililitros, os canivetes de cristal lá fora trespassavam meu pensamento com a vaga lembrança de dentes grandes e pernas magras, compridas, brancas e tortas, como minha necessidade – enterrada em sorrisos desconexos – de que um dia houvesse uma guria frágil e que fôssemos outra vez todos frágeis e apesar de tudo isso, de dois numa só fragilidade, quando fôssemos tempo verbal hesitante, teria sido insípido como uma solução incompleta de instantes endurecidos em lágrimas, mas seríamos ao menos metades siamesas sem encaixe, embriagadas de culpas antecipadas, porque se esperaria do mundo apenas o que se espera dos anjos, e minha memória carente de boas afeições, ou de ao menos algodões, doce se voltaria para o banheiro, onde poderia ainda compreender sozinha o som do meu peito, estigmatizado de flores, no reflexo da catarata espumante do desejo latrina de mais, sem saber como por menos, por um segundo ou dois, que passaram há muito e que mais uma vez não consegui sequer exprimir com modéstia e gratidão e palavras suficientemente simples, sempre intoxicadas pelo “por que não?” nas copas dos fungos nocivos das veias rítmicas em esperas absurdas sob a chuva que copula o inverno dos corações acinzentados como o asfalto ou dentes finos de carniça e obras populares sob a placa que diz em castelhano, enquanto meu cérebro avermelha nas raízes dos tijolos incompatíveis:
“há o mar, há o vinho, há o céu, há o barro; mas sem ti não há o milagre”.

havia, sim, um casal feliz, compartilhando nuvens em frente a minha penumbra: a menina, muito alta e de nariz bávaro, flutuava para dentro do bolso do rapaz leporino feito em corte numa loja de departamentos onde nascem bebês – pobre sobretudo que nos acomoda em pêlos eriçados mas recônditos – molambos ambos sem se conhecer ou se conhecendo o suficiente para serem felizes.

outro casal, ali, bem ao meu lado, quando tudo em volta era um cálculo simples para dois: a menina parecia o rapaz e o rapaz parecia interessado no outro rapaz de avental que atendia por Morrón Guantelmo, ou algo como uma rua deserta onde verdadeiros poetas morrem de frio, mas honrados pelas linhas quentes e, no outro lado do erro obediente, o romance marulhava em grená: quem sabe meu sangue ou o reflexo do sangue que escorria do meu nariz através do espelho que refletia meu pai passado apenas pelo matiz anuviado de mim?

de volta à realidade, foi difícil para mim, onde tudo menos paredes ou idéias borradas de norma marfim, só ligas de metal flutuantes nas pontes onde por baixo se sobe e por cima se vê o fundo das memórias fotográficas em sobrancelhas feitas de colonização alemã além do que não há mais nada que eu possa compreender agora que perdi meu travesseiro na estrada e Bob Dylan falhou enquanto o vento soprava forte e minha cabeça pende carente no que quente inventei do que vivo e os dedos doem nas teclas pardas porque faz frio e chovem facas mas meus camaradas vão comigo onde de repente raízes sem caule se cobrem de uma esperança vaga da cor do musgo – obrigado, Cartola, por tudo.

4.6.06

"abstinência”

a noite inútil como água em pó.
minhas já raspas travessias átonas,
ouvido surdo na realidade cômica,
desconstroem o infinito que é cedo.
quem sou eu? quem é você? nós?

eu finjo ser pobre ilimitado
para que você me dê limite.
pense duas vezes por mim,
porque não penso por você.

por mim você ou outra vez eu surdo.
lençóis sobre planos sobressaltados.
a outra com o colo falseado de tiros.
feliz metade por te imaginar inteira.

bochechas secas no sebo do chicote
duro, mas verdadeiro, ainda que nada
da mãe conivente sobre a noite vazia,
alheia ao vento enquanto a sorte dorme.

homens matam as aberrações que criam.
a noite geme pelo fim da linha de fogo.
e como se eu fosse do teu ventre o frio,
castigo a noite com minha constipação.