30.10.08

"O século XXI me dará razão" (Roberto Piva)

O século XXI me dará razão, por abandonar na linguagem & na ação a civilização cristã oriental & ocidental com sua tecnologia de extermínio & ferro velho, seus computadores de controle, sua moral, seus poetas babosos, seu câncer que-ninguém-descobre-a-causa, seus foguetes nucleares caralhudos, sua explosão demográfica, seus legumes envenenados, seu sindicato policial do crime, seus ministros gangsters, seus gangsters ministros, seus partidos de esquerda-fascistas, suas mulheres navios-escola, suas fardas vitoriosas, seus cassetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida, sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara da cultura, seus pró-Cuba, seus anti-Cuba, seus capachos do PC, seus bidês da direita, seus cérebros de água-choca, suas mumunhas sempiternas, suas xícaras de chá, seus manuais de estéticas, sua aldeia global, seu rebanho-que-saca, suas gaiolas, seu jardinzinhos com vidro fumê, seus sonhos paralíticos de televisão, suas cocotas, seus rios cheios de sardinha, suas preces, suas panquecas recheadas com desgosto, suas últimas esperanças, suas tripas, seu luar de agosto, seus chatos, suas cidades embalsamadas, sua tristeza, seus cretinos sorridentes, sua lepra, sua jaula, sua estrictina, seus mares de lama, seus mananciais de desespero.

"note upon the love letters of Beethoven:"

think: if Ludwig were alive today
tooling along in his red sports
car
roof down
he'd pick up all these mad
hard cases on the boulevards
we'd get music like we
never heard before
and he'd still never
ever find his
Beloved.

***

"nota sobre as cartas de amor de Beethoven:"

pense: se Ludwig fosse vivo hoje
passeando com seu carro esporte
vermelho
com o teto arriado
ele apanharia todos esses loucos
casos difíceis nos bulevares
nós teríamos música como
nunca foi ouvida antes
e ele ainda assim nunca
jamais acharia sua
Adorada.

(poema de Charles Bukowski / tradução Leo Marona)

24.10.08

"roçam-se os pés"

acho que todo mundo
um pouco no fundo
sem saber como
quer o amor
como o fruto
de outro sigilo
secreto defunto
mal-estar no outro
sem saber que quer
mesmo e sem dúvida
um canto de vírgula
que sirva de túnica
às tardes esquecidas
que curam e ardem
nas noites sem lua
nuas como aquela
silhueta sem foco
que falta na cama
ao lado do cheiro
do beijo de olhos
do fim de semana:
herança de traças.
agora é tarde e frio
os cílios se dobram
e existe certo vazio
que só preenchemos
com calor hesitante
e os pés enlaçados
carregam o instante
gelado contra gelado
é igual a dois lados
para sempre sólidos
inquebrantáveis que
quando penetram poros
marcam nossa distância
com hematomas lilases
como flores de inverno
na estampa do lençol.

mas bem lá no fundo
quando a luz falece
todos nós esperamos
alguém que nos ame
como se não soubesse.

"orangotangos"

herdeiros da poesia enlatada e da urina impura,
colheremos o excremento de mentes inseguras.

engoliremos o escárnio de anos em banho-maria.

as tradições tribalistas dos hinos de guerra e paz,
nós as criamos todas, e estávamos desacordados.

não tente entender as convicções que ressonavam,
carinhosas como abutres sobre a carne entorpecida.

herdeiros da poesia sem olhos, tatearemos por trás.
navegaremos incertos, horizonte de mil naufrágios.
e de nossos olhos, ao menos, pobres, os abutres
herdarão um resto magro – de uma arte ancestral.

"shakespeare"

se nós escrevêssemos
tudo o que sentíssemos
estaríamos sempre sós
e para sempre ocupados
porém não tão infelizes.

23.10.08

"Intervalo"

Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa.
Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação externa e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil. Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.
Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é vê-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos!
A mínima acção é-me dolorosa como uma heroicidade. O mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.
O ideal era não ter mais acção do que a acção falsa de um repuxo – subir para cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma e fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente.
(do Livro do Desassossego, escrito por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa)

17.10.08

"BR-3"

Algum escritor uma vez disse que as boas famílias são iguais, mas cada família ruim tem sua particularidade fundamental, que permanece. Não me lembro quem disse isso, era um início de romance, talvez um russo. Os russos podem não saber mais, mas sabem melhor.

Mas isso não importa, não vou procurar saber. Pobres das famílias ricas de afeto, que são iguais entre si. Prefiro as famílias turvas, cada uma com um abismo próprio e infinito, porque não-diagnosticado. Elas são a negação da natureza - e esse é o papel fundamental do ser humano: sabendo de antemão que sairá derrotado, negar com todas as forças aquilo que o limita, que oprime sua contradição, que fornece tudo e não explica nada. As famílias ruins duram mais. Elas mantêm o mundo girando, torto mas próprio, perfurando conveniências.

Exige-se uma especialidade para que se atinja a normalidade - e ainda não se sabe que tipo de cérebro pode se satisfazer com esse tipo de metodologia. Mas não me especializarei, de minha conta, porque isso não apenas não convém: isso não importa. Isso é o que importa: que isso não importa. O mundo não é especializado - digo veja o que somos capazes de fazer um com outro apenas por não estarmos preparados - e tudo o mais resultará em estupenda frustração.

Especializando-me deixarei de conhecer muitas coisas em detrimento de poucas, mas, no entanto, sem me especializar não conhecerei nada. Isso me parece mais coerente diante do tamanho da catástrofe, mais próximo do que não podemos mas chamamos de "verdade original". Aquela inapelável, a chance dúbia de duas patas e uma cabeça que nega a verdade porque ela não é satisfatória, foi programada para não ser.

Não conhecer nada: nosso drama habitual. Sigo nessa direção vendado e com as pernas amputadas, me arrastando com os lábios trêmulos e o coração gelado. Do que estou atrás? Não saberia dizer e isso, ao passo que me mata, me liberta. Mas de que me serviriam as pernas se eu fosse especializado em viver? O que são as perguntas quando se esperam as respostas certas? Especializado eu teria que permanecer parado, com a seta sempre em riste e o corpo tranqüilo, até a falência inevitável. A gente não morre porque cansa, a gente morre porque não se desespera mais.

Não seria preciso andar de qualquer forma. Acontece que o abismo vem sempre em nossa direção. Eles se movem, isso é simples. O caso é que os especialistas não sabem disso, pois atingiram a normalidade. A normalidade é como forçar o mundo para dentro de uma caixa de espinhos dourados.

Mas, por sermos extremamente limitados, andamos em frente. Não sabemos que frente, mas nos ofendemos se nos questionam. Andamos pelas vielas sem que nos dêem por vistos, em busca da SENSAÇÃO. Essa fugidia, em caixa alta. Andamos e não dormimos direito. Nossos quartos são escuros, pequenos cadafalsos. E nem mesmo sabemos descrever a sensação de estar, pois uma vez estando, estamos insatisfeitos e não pensamos em mais nada, aceitamos tudo. Descrever é mentir, o verbo amputa o sentido.

Parece que o mercado financeiro quebrou, os bancos estão em greve, os investidores fantasmas em pânico, alguns aposentados não conseguem seu dinheiro e passam fome ou morrem de doenças leves. Aqui nada disso importa. Estou seco no meu canto, e nada me falta além da noção de galho pisado. A noção, eis a única condição prestativa para a morte. O resto não importa.

Queria dizer algo mais, mas o cansaço me incomoda, como um tiro no cerne. Brigar e amar são a mesma coisa: não há dignidade. A verdade nua incomoda mais do que uma crônica para explicá-la por si própria: o tal sonho dentro do sonho de Edgar Allan Poe. Não há sujeito depois do verbo. Essa massa disforme, eis a grande dissonância. O teto preto da verdade estupenda, em prol da verdade de cuecas.

Mas por que perseguimos e fugimos de pessoas queridas pelas ruas que não acabam e nem queremos conhecer? A explicação disso, ao meu sentir, iria em direção ao extermínio. Não haveria o que dizer. Se ao menos pudéssemos nos ver nus, alheios ao destino incompleto. Mas não admitimos, seguimos senhores da razão, usamos verdades como gravatas apertadas. Mas as verdades são inconvenientes, e não sabemos onde achar a verdade voto de minerva.

A língua de fora, os ossos quebrando por dentro, "nada disso é verdade", a fome legitima a doença. Agora como dormir com ela, proliferá-la sem que seja câncer, o método desconhecido que prova a existência de deus? Senhor, abençoai os que não sabem rezar e babam nas horas equivocadas. Os que se vestem com milagres e deságuam nos colos alheios. Abençoai os entrevados com sangue nos olhos. Os inaptos para o vôo, que comem terra suja. Eles pagam pela vida plena, pelos desejos vagos de quem se diz feliz. É preciso o equilíbrio, e alguém deve sofrer. Mas estamos aqui e não conhecemos outra glória, somos tapete de sonhos.

E daí já não importa mais a família, a extração do membro, o reduto do espírito são. Mentimos inevitavelmente porque a verdade é intragável. A cada minuto mentimos: isso é estar vivo. Quando dizemos a verdade estamos dizendo simplesmente: "meu tempo é curto, não sei o que fazer". Mas não pedimos ajuda, somos seres humanos.

O cheiro da distância é o suficiente para planejar pecados. O pecado é o que, em nós, culpa deus – inexistente ou cômico. As traições tornam-se pequenas, o peito arde, "nada importa", diz o mundo por nós paralisado. Poesia é para quem pára o tempo. Coragem é para quem tem pouco. Para com o resto, há que ser leve, reparar na dobra entre as partes – e cada parte é um mistério.

E ficaremos apenas com o que importa: estrada onde corpos caem à revelia, e onde estivermos estaremos os dois, quem sabe um, e morreremos da mesma solidão que renova o mundo, de mãos dadas.

2.10.08

"noite chuvosa"

a noite chuvosa traz o presságio
do amigo amputado sobre a cama,
das gavetas vazias, terrível sonda.
a noite chuvosa prevê o engasgo,
a falta de apuro na sutura do peito,
o grito selvagem, o vento no rosto
e não saber – não saber que faz andar.
a noite chuvosa traz de volta a maca
com corpos vazios – todos eu mesmo.
eu que, abstêmio, espero o milagre
e envergonho porque no fundo sei:
não há milagre mas a noite chuvosa
está mais por dentro – lá fora o sol.