28.6.11

"depois de Fassbinder"

o Comitê Invisível tem razão, não haverá mais um New Deal,
as passeatas tornaram-se blocos de carnaval em que se embriagar,
o sentimento social se evaporou em pequenos contratos sociais,
os revoltosos serão festivos e desesperados por sentimento puro,
o sentimento puro será o que se pode sentir sozinho, observado,
a nova insurreição virá da falta de uma linguagem comum,
estamos à beira de um ataque de nervos, fechados em salas
brancas como a morte ou com cheiro de anteontem, sala negras
nos pesadelos que alimentam o suor da nossa perdição sabida,
não haverá a ligação telefônica dos antigos partidários da causa,
com uma semana de enclausuramento cessarão as tremedeiras,
seremos capazes de compreender tudo, com monossilábicos,
fechados pelas sirenes, conseguiremos no máximo imaginar
o desenvolvimento de nossas cáries em rasos canais de amor.

26.6.11

"leminski"

ah se a verdade fosse assim tão límpida
e não nos matássemos por amor a um irmão.
fazemos o que podemos com o que não
podemos e não podemos mais fazer nada
além de versos, como dardos agridoces,
porque somos, através da nossa loucura,
aquilo que respira a aldeia da psiquê.
mas sempre chega a meia-noite na alma,
os quatro ventos jamais convergem
nas rupturas constantes de que precisamos.
vão-se irmãos e filhos, sobram tumores,
e não temos a espada samurai da coragem.
importa muito pouco, poeta, na verdade,
que falemos tanto, pensemos tão alto,
se cá no raso nos afogamos com os mortos,
porque não vemos mais amor entre os vivos.

24.6.11

"poema encontrado nas gavetas de 2006"

"Infâmia"

Quando um homem fica velho
nem sempre é quando ele tem idade
Às vezes é quando ele não tem muita
outras vezes é quando sabemos quem somos
quando dizemos aos outros: eu sei quem sou

Ou quando passamos a pensar em nós de fora

Ser velho é perder o tato com o medo
ser velho é semear angústias transgênicas
ser velho é acreditar nos contornos do espelho
É quando os olhos fazem maquiagem nas flores da face
não por elas serem velhas, infames, cheias de pêlos
mas por elas serem um sonho que descolou do precipício

O tempo sabe quem sou e porque sou e isso me envelhece
Saber quem somos serve apenas para os vermes
que – estes sim – têm certeza absoluta

22.6.11

"um a menos"

por ora os abutres sobrevoam
a lagoa fetal e, muito em breve já munidos
com as devidas garras de enxofre,
eles darão o rasante metálico
e tudo isso será apenas uma história,
um mito, um terá-alguma-vez-isso-acontecido,
mas os amantes estarão esfarelados
em suas carnes antigas, abraçados numa confusão pagã,
a carne nova estará no balcão vermelho dos negócios de feira,
as breves frases delicadas ter-se-ão tornado
bustos pesados de paz em vírus.

a galope o pequeno órgão ratifica
a vaga culpa, estamos nus sob um sol úmido,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém,
as salas minúsculas e os alquimistas calvos
afunilaram o ambiente com paciência e muito ânimo.
serás processado, triturado e lançado ao acaso
em tua própria tendência succínea, e não será possível
abrir mão deste silêncio como osso tranca-traquéia,
ainda nem uma cabeça, um todo
verminal que no entanto pulsa.

a morte da Grécia está nas ruas
e já não poderei vê-la porque a partir de agora
os olhos forçam para dentro as mágoas,
as covas rasas se alinham ao ventre,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém,
entende-se que a morte do pai reaproxima o par,
pois que assim seja, saberemos renunciar
a qualquer passado por uma nova vida, daremos
as mãos em nosso pior inverno, riremos como clowns
e poderemos até assaltar um banco, costuraremos
as máscaras dos sorrisos heróicos e caminharemos
com menos um pedaço, adiante.

18.6.11

"Brasília"

o problema sério de Brasília
são os prédios de pastílhas,
tristes seres que se afagam
nas mil quadras de mil blocos.
Brasília é homem que jamais
pode morrer, mas traz a faca
que sem lâmina nos mata,
nos faz maiores para falar:
Brasília ao longe teu avatar
já não comove nem um grego.
país ao longe, tão brasileiro,
vapor ao vale na imensidão.
sangue escorre, e tenho pena,
Brasília corre com pés no chão.
mas qual o chão, se aqui se morre
pensando em atas de distinção?
o que nos mancha, se temos sorte,
serão as salvas da alforria.
Brasília monstra, por que Brasília,
se onde há homens não há poesia?
não ser Berlim, nem bem Paris,
com a magia dos sem-coturno.
não nos amamos, e sei contudo:
te devo a vida, e o chamariz.
amigo Heine, eu bem entendo
com a frieza dos bigodudos:
além de tudo, há lá mil vias,
línguagens cínicas do violão.
Brasília, a morte nunca foi tua
mas somos todos o teu caixão.

16.6.11

"a boa e velha sinceridade alemã"


H. Heine (1797 - 1856), também conhecido como "Aristófanes alemão",
com a típica pose tubércula, muito em voga à época



Índole pacífica. Desejos: cabana modesta, telhado de palha, porém uma boa cama, comida gostosa, leite e manteiga bem frescos, flores em frente à janela, belas árvores defronte à porta, e se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, que me conceda a alegria de ver, nessas árvores, cerca de seis ou sete de meus inimigos enforcados. - De coração comovido hei de perdoar, antes de suas mortes, todas as infâmias que me infligiram em vida - sim, temos que perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem enforcados. - Perdão, amor e compaixão.

Henrich Heine

"diagnóstico"

é necessário algo fluido
feito mãos entre lâminas.

precisa-se urgentemente
de uma boca bem aberta.

para coalhar esse tempo
que não se fez cicatriz.

nem tampouco sangra agora
e ainda é tempo sobre tempo,
sem noção entre terra e cais.

em suma é necessário mais,
porque os olhos imaginários
exigem filho, casa, mulher.

pode-se fazer o que se quer:
matar-se com tiro entre olhos,
convidar corujas para jantar.

mas sempre existirá esse canto,
essa mensagem rouca de louco,
esse erguer os olhos aos sinos,
tão anterior à foice sob a pele,
que enfim entregamos à saliva.

e quem pensa sobre isso morre
de amor ou doença coronária.


*texto publicado originalmente na fabulosa Revista Minotauro 3 (carne)

6.6.11

"Gênio Heine"

A sorte é uma mulher vadia
Que não se aquieta no lugar;
Te beija, abraça, acaricia,
Desaparece num piscar.

Senhora Azar é toda amor,
Te prende firme ao coração;
Diz não ter pressa e faz tricô,
Esparramada em teu colchão.

(Heinrich Heine, 1851)
tradução de André Vallias

3.6.11

"Elegia Múltipla" (Herberto Helder)





VII

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda de meus
vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,
amanhã morrerei.
Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,
alterosa e quente na minha mão
sufocada. Agora mesmo na europa
começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida
percorrida por um álcool penetrante, é a imediata
atenção ao misterioso trabalho da idade.

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais
sombrios da carne, sobre um vasto segredo.
Será apenas isto, um ponto móvel
da eternidade, isto – a sufocação veloz e profunda
da vida inteira na minha garganta? E depois
o acender das luzes, Bruxelas como uma câmara
de archotes e ao alto as ameias
enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande
memória aquilo que acaba na violência triste
do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilônia
partem rios. Por detrás das cortinas,
despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho
vinte e nove bocas urdindo
a falsa doçura da confusão. Os países constroem
a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão
pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante
a loucura masculina
da minha vida. Pensa um pouco na beleza
ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível
das pessoas ou o seu respirar
que arde e brilha e se apaga à superfície
das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso
rapidíssimo
que jamais desaparece do silêncio, na candeia
que cobre com agulhas de ouro os escombros
dos lírios. E por cima de tudo estende
a tua pequena mão eterna. Cai
tu própria na treva quente da minha
cega mão masculina de vinte
e nove
anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta
cheia de sangue actual – amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas
velozes, pedras que pareciam
imortais. Eram casas que se levantavam
sobre o meu coração. Vi que tomavam
animais feridos, flores imaturas, objectos
breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam
alguma coisa eterna. Era gente
de vinte e nove anos que se despedia dolorosa
pormenorizada
violentamente de uma parte da sua carne, a parte
mais iluminada da sua
carne de vinte e nove anos. Amanhã
morrerei.

2.6.11

"Blake for rapers"

lack of breath,
sketch of Spain.
we stand to rest,
we dance to say.

the time will come
to fear and grow:
mounts of sperm,
hearts of snow.

but when you find
we are that near,
come and cry,
life is queer.

when wake to sleep
and sleep for fake,
try to skip
love’s delay.

first the blame,
then the drag.
we lie our names
and kill our deads

we love for pain,
we loose our hats.
sketch of Spain,
lack of breath.