24.7.09

Um estudo sobre "pequenas biografias não-autorizadas", por Flávio Corrêa de Mello


A poesia e os poetas sempre nos reservam grandes momentos. Desfrutar, apreciar e saber ler um poema assegura uma grande viagem para aqueles que participam deste universo. Não tenho dúvidas disso. Entendo que Leonardo Marona também compreende o que estou escrevendo. Não só ele, pois este ano tem sido promissor na poesia. Vi e li alguns poemas de autores que me fazem mergulhar no mesmo rio. Além de Marona, Gregório Duvivier e Diego Grando nos brindaram com excelentes livros de estréia. Livros cujos poemas possuem uma riqueza melódica e um trato mais intimista com a palavra e com a continuidade do verso. Livros que reatam a poesia com a espontaneidade ─ favor não confundir com ingenuidade ou versos de má qualidade ─ e com o toque íntimo: “o escrevo para você e contigo”.

Duas palavras escritas por Abujamra na orelha do livro Pequenas biografias não-autorizadas (7Letras, 2009) me chamaram a atenção: avalanche e fecundidade. Há outras que podem se conectar no mesmo campo semântico: confissão e jorro. E na poética do autor estas palavras adquirem valor de combustão, são pistões propulsores que ditam o andamento do livro. A divisão do sumário em duas partes elide a uma referência cronológica. Correspondem também a um tempo poético de descoberta de afetos e de gostos. Assim, as avalanches fecundam versos sobre o que o poeta sorve no seu cotidiano e que constituem suas biografias não autorizadas (Rilke, Cortázar, Antonioni, Descartes, entre outros...).

Na poesia de Marona o ritmo é emblema motriz, vitalidade. Sobrepõe paradoxalmente a escolha de uma estética morfossintática. A frase melódica implícita nos versos não se apresenta isolada, mas sim constituindo um Todo em cada poema, dividindo-se em núcleos distintos, em blocos de sentidos que complementam o valor de unidade dos poemas e por conseqüência da obra, como no poema Roçam-se os pés, no qual há um enlaçamento do ritmo do poema e a imagem de um cadenciamento dos pés através de rimas continuadas:

“acho que todo mundo / um pouco no fundo / sem saber como / quer o amor / como o fruto / de outro sigilo / secreto defunto / (...) agora é tarde e frio / os cílios se dobram / e existe um certo vazio / que só preenchemos / com calor hesitante / e os pés enlaçados / carregam o instante (...)”

De certo modo, a construção das imagens obedece a alguns critérios: o lirismo pessoalizado, reflexo do momento, é construído em uma sucessão rítmica de imagens. Se o ritmo dita a cadência fluídica, muitas vezes acelerada, o fluxo de imagens alardeia o caráter expansivo do autor, caráter voraz, juvenil, tentando ourivezar seus ímpetos, contidos pela inexorável ação do tempo, como no poema “vinte e seis”, que debuta a segunda parte do livro:

“um dia, inevitavelmente, aconteceria. / o antigo poeta das linhas apócrifas / sobre fantasmas internos e naufrágios, / o infante terrível, o descabelado, o vil / sem regras daria lugar ao homem grave, / à besta milenar – homem sem pernas, / meio doce meio amargo meio homem, / a boca sem fim inclinada para baixo, / as leituras eslavas, a sutura do ódio / que prolifera para dentro em pústulas / e adquire a petulância de um mar parado.”

Poema rico em imagens e alusões. Há acima um rebuliço de nuances tanto de referências poéticas (Pessoa, Homero, Rimbaud), quanto de metáforas da rebeldia que se atenuam em morbidez romântica (... à besta milenar – homem sem pernas, / meio doce meio amargo meio homem, / a boca sem fim inclinada para baixo, / as leituras eslavas, / a sutura do ódio...). E a idéia do mar regurgitando aceso e que por ordem do tempo (Um dia, inevitavelmente, aconteceria.) se condensa em algo flácido, sem músculos, um mar grave, parado. Ainda assim, há o desejo, a voragem de deglutir o Todo, mesmo consciencioso das etapas do processo do navegar pelos mares da poesia. Esta consciência é dolorida, é creditada aos embates entre o conter, o discernir e o expandir o verbo e o verso. No poema carta a um estudante de belas-artes, por exemplo, Marona realça o tom prosódico com descrições de recomendações poundianas:

Ezra Pound dizia / nos seus ensaios sobre poesia / que a poesia era uma ciência / assim como química, medicina. / ele acreditava piamente / no ritmo absoluto / de cada ser humano. // nas formas sólidas e fluidas do poema / - como árvore ou água despejada - / concebia a poesia como arte exata / e cada homem como seu próprio poeta em si, / sem diferença entre amadores e profissionais (...).

A dicção professoral acompanha o poema:

dizia que não devíamos esperar demais / por ter nosso valor artístico reconhecido / antes de havermos descoberto algo novo. // dizia que devíamos ler os franceses, / sobretudo os gregos, os florentinos, / que devíamos ler Confúcio inteiro, / Homero inteiro, as versões latinas, / Ovídio e os poetas latinos “pessoais” / Catulo e Propércio. // ele veio do alto e nos disse, pousando: / não percam tempo com o que não presta, / vão direto ao talo do osso primordial!

Súbito, depois de decantar o receituário, o poema caminha para o corte final: a supressão da direção professoral em prol de uma autonomia rebelde (quero que você, Pound, se foda. / Quero escrever tua poesia austera.), independente e um desejo autofágico de incorporar a poética poundiana em sua essência e não no seu modus operandi. Aí, de certo modo, o poema se apossa de sua liberdade total de criação. Me remeteu muito ao poema Estou com 25, de Gregory Corso, poeta beat, que escreveu os seguintes versos:

Com o amor minha loucura por Shelley / Chatterton Rimbaud / e a tagalerice-carente dos primeiros anos / já fez correr de um ouvido a outro / EU DETESTO OS VELHOS POETAS ! / Especialmente os velhos poetas que recuam / que consultam outros poetas velhos / que falam de sua juventude em suspiros, / dizendo: ─ eu fiz estes naquela época / mas foi naquela época / foi naquela época ─ / Ah eu faria calar os homens velhos / diria a eles: sou amigo de vocês / o que vocês já foram um dia, através de mim / serão novamente ─ / E depois à noite na intimidade de suas casas / rasgaria suas línguas que só sabem se desculpar / roubando-lhes os poemas.

Esta semelhança de se apossar das outras vozes permeia quase todos as pequenas biografias não-autorizadas. Vemo-las em orangotangos (herdeiros da poesia enlatada e da urina impura, / colheremos o excremento de mentes inseguras.), em Whitman (você tocou o primeiro clarinete de fogo. / deixe-nos sair do fogo, recuperar a casa.), em Kerouac (teu erro foi me fazer pular etapas / para chegar mais cedo à tua velhice...). Assim, a proposta poética advém da necessidade de reescrever cada influência, cada leitura pertinente, caracterizando-as tanto na sua origem ─ a forma e o conteúdo dos artistas biografados ─ quanto na fusão resultante do encontro entre as biografias e o autor, o Leo Marona.

Talvez o que sintetiza e o que “não” autoriza Marona a tematizar outros artistas seja justamente o seu momento poético de sorver o máximo possível do universo e apresentar-nos esta recolha de poemas. Talvez, seja do seu espírito jovem e índole ter uma voz tão plural, tão rica de nuances e, não se engane, claro leitor, como disse no início do texto, não há ingenuidade, pois os ajustes dos versos demonstram domínio de técnica, mas a que isso serve, se o que importa mesmo é o escrever consigo, para ti, para mim, para Antonioni, Chet Baker, Maiakovski e tantos outros, autorizados ou não.

20.7.09

"tolstoi"

se o conde levou
tanto tempo para
chegar à conclusão
da imortalidade da alma
é porque nunca lhe faltou
dinheiro ou prostitutas
(enquanto lhe faltava culpa)
que o provassem o contrário:
que a alma é rasa como um pires,
e nossas longas barbas eriçadas
já não convencem mais ninguém.

"os velhos"

os velhos se encontram
sem combinarem nada –
velhos somente seguem,
cada um para o seu bar,
de algum modo estúpido
se encontram, mas nós,
ditos jovens, marcamos
os encontros, pensando
na posteridade de algo
especial que, no fundo,
morre em casa, ao lado
da secretária eletrônica,
repleta de possibilidades.

12.7.09

"michael jackson"

foi preciso mais de um mês
para secarem as manchetes,
a saliva das hienas familiares,
cessar a boataria provinciana.
agora passa mais de um mês,
os dentes do mundo trituram
tua carne pútrida, as hordas
se aglomeram sobre o vazio.
estamos todos de mãos dadas,
rumo ao que mesmo teu corpo,
mais perfeito que a suposição
de deus ou de esferas métricas,
não pôde suportar, e tua morte
não é tua morte, é nossa morte.

falavam sobre ti, sobre teu sexo,
porque representavas nossa falta.
dos teus distúrbios psicológicos,
para escamotear as taras diurnas
com as quais damos leves passos.
mas teus passos não eram passos,
eram surtos, convulsão mitológica,
para nós, que trombamos nas ruas,
e desprezamos o gênio para amá-lo.
como o teu pai, com pedaço de pau,
batemos em ti até a morte, e agora
nos perguntamos: que fazer da sobra
com que nos arrastamos pelos dias?
que falar de ti, que parou o tempo?

queira nos perdoar, mister Jackson,
pelos restos que te demos em troca
da mágica do herói de vídeo game.
queira desculpar por ter ofuscados
os olhos quando furaram teu peito
com as agulhas que mantém vivos
os semimortos, sem cor a cada dia.

você foi a risada mais cruel de deus,
que te aprisionou num corpo mortal,
que te fez perguntar: mas e que cor?
não há cor, Michael, só há perguntas.
não há dor também, restos de pranto.
estamos empoleirados e, sem chapéu,
sabemos que pouco há que se fazer...

a não ser ir atrás da eterna infância
e criar passos que nos façam deslizar
imóveis para trás, sobre a pele da lua.

10.7.09

"dostoievski"

para Rodrigo de Souza Leão

quando, inchado, surgir o rosto
vermelho da sentinela siberiana,
então não haverá mais o tempo
para observar a Madona Sistina,
não haverá a saliva, que escorre
enquanto os gritos viram vasos
que estouram no giro da roleta
e ameaçam o sentimento volátil
que rosna das entranhas, a queda
que derruba da cadeira, e a pena
permanece intacta, mas a marca
são aquelas pernas muito curtas
que não se dobram, acorrentadas,
a testa vasta, a fuga para Baden
quando gastas as últimas moedas
na sorte, tão falha como na hora
que contou 1457 passos de casa
até o cassino onde, por um soco
perdeu tudo, voltou aos prantos,
culpando a esposa pelo inaudito
que espreita dos pequenos vasos
na cabeça febril, ao pegar a pena
que escapa por um triz, as ondas,
não se vê mais nada, só as ondas,
a explosão eslava: última saliva.

1.7.09