31.12.08

"whitman"

permita-nos mergulhar de cabeça
na fonte e nos arbustos densos
de uma nova delicadeza revoltada
– nós também precisamos passar.

fomos por muito tempo presas
assustadas, engolindo os erros
acumulados pela fé decapitada.
e por muito tempo ficamos fora
dessa tal “Grande Equalização”.

por favor, deixe-nos passar agora.
falo por nós e não só por mim,
pois, como eu, são, foram muitos.

não nos deixe, delicadeza, voltar
à casa, infestados e desprovidos
desse líquido seminal que, cegos,
chamamos de amor entre os seres.

você, velho libidinoso, que vê
bondade em tudo – mas a visão
será somente do poeta – você
nos abriu os corpos paralisados
diante de um precipício lento.

nós somos os das entranhas malogradas,
aglomerados em redomas achatados por
grandes perdas – enormes corporações.

muitos falaram, inclusive você, por nós,
não duvidamos de suas boas intenções.
mas nunca um de nós falou por nós e já
não podemos mais esperar, abre a porta
portanto sem demorar mais e nos arranque
de todo esse equivocado, antigo sacrifício.

você tocou o primeiro clarinete de fogo,
deixe-nos sair do fogo, recuperar a casa.

26.12.08

“noturno dissonante”

a mesa ainda posta,
velhos hinos distantes,
formigas trabalhadeiras...

a antologia de Manuel Bandeira,
a réplica barata de um vaso chinês.

e na cortiça, fotos irreais:
namoradas desconhecidas em 3 por 4.
alguém familiar vestindo boina
e polainas amarelas – alguém materno
de calcinha e sutiã, sorrindo presságios
ao lado a morte com mau-hálito, antevista.

fotos mortas vivas fotos
de quem ainda não nasceu.

principalmente uma cortiça, o silêncio de deus,
gatos no cio, silêncio de nós, molas rangendo,
a sombra implacável de Manuel Bandeira,
a mesa ainda posta, a mesa vazia, o peito...
formigas trabalhadeiras - nenhum vento -
e essa constante sensação de desaparecimento.

23.12.08

"A Leave-Taking" (A. C. Swinburne)

Let us go hence, my songs; she will not hear.
Let us go hence together without fear;
Keep silence now, for singing-time is over,
And over all old things and all things dear.
She loves not you nor me as all we love her.
Yea, though we sang as angels in her ear,
She would not hear.

Let us rise up and part; she will not know.
Let us go seaward as the great winds go,
Full of blown sand and foam; what help is here?
There is no help, for all these things are so,
And all the world is bitter as a tear.
And how these things are, though ye strove to show,
She would not know.

Let us go home and hence; she will not weep.
We gave love many dreams and days to keep,
Flowers without scent, and fruits that would not grow,
Saying 'If thou wilt, thrust in thy sickle and reap.'
All is reaped now; no grass is left to mow;
And we that sowed, though all we fell on sleep,
She would not weep.

Let us go hence and rest; she will not love.
She shall not hear us if we sing hereof,
Nor see love's ways, how sore they are and steep.
Come hence, let be, lie still; it is enough.
Love is a barren sea, bitter and deep;
And though she saw all heaven in flower above,
She would not love.

Let us give up, go down; she will not care.
Though all the stars made gold of all the air,
And the sea moving saw before it move
One moon-flower making all the foam-flowers fair;
Though all those waves went over us, and drove
Deep down the stifling lips and drowning hair,
She would not care.

Let us go hence, go hence; she will not see.
Sing all once more together; surely she,
She too, remembering days and words that were,
Will turn a little toward us, sighing; but we,
We are hence, we are gone, as though we had not been there.
Nay, and though all men seeing had pity on me,
She would not see.



***X***



"Uma Despedida" (tradução Leo Marona)

Deixe-nos então, música minha; ela não escuta.
Deixe-nos ir então, sem medo e juntos;
Faça agora silêncio, o tempo de cantar acabou,
É o fim de todas as coisas queridas e caducas.
Não te ama nem a mim e nós a amamos os dois.
Embora feito anjos cantemos a canção mais pura,
Ela já não escuta.

Deixe-nos levantar e partir; ela não sabe mais.
Deixe-nos mar adentro como o vento faz,
Cheios de areia e espuma; de que ajuda seria?
Não há ajuda, tudo é sempre dessa forma,
E o mundo todo é azedo como a lágrima.
E como tudo é, embora difícil seja demonstrar,
Ela não sabe mais.

Deixe-nos então ir para casa; ela já não chora.
Demos ao amor sonhos e dias de nossas horas,
Flores sem aroma, e frutas que não mais cresceriam,
Dizendo “Se quiseres, confia na tua foice e colhe”.
Tudo agora foi colhido; não há mais pasto virgem;
E nós que semeamos, caídos de sono muito embora,
Ela já não chora

Deixe-nos então e descanse; ela não ama nada.
Não nos ouvirá se cantarmos da sacada,
Nem as trilhas do amor, tão íngremes e doídas.
Vem então, deixa estar, deita aqui; já basta.
O amor é mar estéril, amargo e infinito;
E mesmo vendo o paraíso nas flores da mata,
Ela não ama nada.

Deixe-nos desistir, afundar; ela já não liga.
Mesmo que as estrelas façam ouro dessa brisa,
E antes de se mover o mar tenha enxergado
Uma lua em flor tornando as flores de espuma lindas;
Mesmo as ondas que nos atropelaram, e arrastaram
Pro fundo os cabelos afogados e lábios oprimidos,
Ela já não liga.

Deixe-nos então, deixe-nos; ela não enxerga.
Cantemos outra vez juntos, é certo que ela,
Ela também, lembrando dias e palavras que foram,
Chegará então até nós num suspiro, bem perto,
Mas nós vamos longe, já partimos, mesmo de onde não fomos.
E mesmo que todos os homens de mim se apiedem,
Ela não mais enxerga.
"Não existe roubo; tudo é pago".

(Napoleão Bonaparte)

18.12.08

"Napoleone di Buonaparte"

foram-se as baionetas imaginárias,
baixaram a meio pau as bandeiras,
deitaram a correr o velho infame.
os heróis acabam sempre nas ilhas,
os verdadeiros impérios do oriente
foram roídos pela decadência, e tu
estás gordo, a riscar velhos mapas.
muitos se dizem você no hospício,
o mundo ainda é o das debilidades
e mendigos provocam ira nas ruas.
precisávamos talvez da tua loucura
para encarar de frente o apodrecido
e remover as manchas da nossa fé.

que constantinoplas foram precisas
para alcançar o centro de si mesmo?
Novo Prometeu, agora bem sentado
atado em uma rocha onde um corvo
lhe rói as entranhas, e ali o homem,
as entranhas da democracia furiosa.
a imaginação faz perder as batalhas,
você disse, e amou, e foi pra guerra.
você tornou incrível nossa verdade,
depois trancafiou o Marquês de Sade,
e quanto não ficou trancafiado em ti,
homem interditado, líder soberano?
o que vem do fogo para o fogo torna

"Antes do Sono"

Talvez fosse preciso um longo bocejar. Admitir a aceitação mais violenta: a que diz respeito a nossa própria carne. Um tigre de papel, perdido nos lençóis da carne. Estamos sobre um pedaço enorme de coisa que não sabemos de onde veio e na verdade é um pedaço mínimo de uma outra coisa sem referência nenhuma que gira sem direção por um espaço que por sua vez não se sabe se é infinito, finito ou realmente espaço. É impossível não pensar que estamos todos perdidos, andando por aí, criando rotas dentro de algo – chamemos de algo o que não tem nome – maior e que não tem rota alguma. Mas não tenho essa pretensão. Pretensões grandiosas são as mais mesquinhas. Perguntem a Lee Oswald ou a Oswald de Andrade. Na verdade, queria falar sobre o momento imediato como no futuro do pretérito, o tempo da desesperança poética. E hoje não precisaríamos mais do tiro que explode o sangue na parede. Não haveria mais pernas gangrenadas de pico ou dólares falsificados inflamando vaginas. Estaríamos todos sob uma espécie de couraça – a mesma que no mundo real têm os muito pobres – que nos não permitiria deixar de rir da vida de forma alguma, e nos faria ver, reconhecer o moinho, e cair, levantar, ganhar rugas, mas sempre de prontidão para se levantar outra vez, cair mais uma, ter trituradas as pernas, mais uma vez bater o pó nas calças maltratadas, vestir o chapéu comido pela traça, erguer outra vez o punho leve, quebrado de fome e sede e sono, subir outra vez o inevitável peso sobre os ombros, seguir adiante, ser a natureza das coisas em movimento num espaço onde não há lugar para mais razão, porque sabemos que é preciso retornar e não há motivo para choro, então seria possível – com esse espírito agreste de onde brota uma certa volúpia humanística – viver querendo o bem esperando ingenuamente por deus que, se existe, está tão perdido ou mais do que nós, que o criamos porque sentíamos medo, porque admitimos a natureza do medo como natureza diabólica e precisávamos ter passado sem ela, mas no meu texto no futuro do pretérito de repente estaríamos todos muito leves, sentindo a flutuação dentro da qual estamos inseridos, ouvindo algo como Stormy Weather na voz de Billie Holiday, e se ela diz “vá, mesmo assim vá, sem braços, sem pernas, sem olhos, o coração em fratura exposta, sorria de alguma forma e vá!”, então acreditamos e que venha o tempo das chuvas de outros tempos, que nos deixemos encharcar por esse espírito tão antigo e renovado, por essa encarnação alienígena que paira diante de nós, nós que nos desconhecemos a nós mesmos porque precisamos conhecer o universo, mas no meu texto enxergaríamos todos em tom violáceo e teríamos belíssimos corpos e andaríamos ao léu pelas marés arriadas e chamaríamos uns aos outros nas ruas para passear e conversar e nos apaixonaríamos uns pelos outros porque seríamos tão diferentes, mas pela primeira vez cada homem, cada mulher quereriam ter sido exatamente o que vieram a ser, apenas homem, apenas mulher, e não teríamos mais ditadores de causas moribundas, nada disso existiria, mas é claro, por isso não haveria porque sentir depressão e esse é o modo mais rápido para se ficar deprimido, o não haver motivo para, então finalmente veríamos se bem ou mal diferem tanto na essência, se fomos gerados realmente por extraterrestres e o próprio tempo é uma criação de outras órbitas, assim como a água que circula por nosso corpo é o próprio corpo estranho de que falam as mais perversas ficções. E saberemos enfim se alimentamos pequenas máquinas que alimentam outras maiores e essas alimentam outras enormes e as últimas, por sua vez, alimentam máquinas incomensuráveis que no fim fazem parte de uma estrutura ainda maior de exploração da energia de um lugar feito de gases etéreos por outra concentração maior de energia que incha, incha, transborda e então lembraríamos das nossas pequenas tramóias do dia-a-dia, dos gordos que suam enforcados em suas gravatas ou algemados à cama por sórdidos seres híbridos, e pensaríamos: “que natureza é essa da qual fazemos parte?”, e não haveria resposta, é claro, pois somos a própria resposta, e o tempo se paralisaria por um instante ou dois, pensaríamos mais uma vez sem esforço no som que faz o vento forte sobre uma plantação de trigo, a visão dessa plantação de trigo nos encheria a mente com um poderoso amarelo, e estaríamos no fim desse mínimo instante ainda maravilhados, e de repente não haveria mais responsabilidades porque seríamos parte de um outro estranho, e mais uma vez mão-com-mão, braço-com-braço faria sentido porque não seria mais uma atitude revolucionária ceder o braço, dar a mão, e seríamos portanto seres simples e sem vaidades, o som do mar ao fundo enfim como um repouso para nossas almas carregadas de concreto. Um suspiro, e estaríamos além de nós.

10.12.08

"Depois" (Flávio Corrêa de Mello)

para Bibiana Campos

Que eu morra
de parada cardíaca,
com os dentes
fincados na sua carne,
entre seus braços,
assaltado por seus lábios.

Nossa saliva circula
por uma única veia
ela dirá
o nome e sexo
a cor do coração
o gozo melado.

E depois de morto,
irrigue, por favor,
o sangue.
Coma as vísceras
e o fígado, sinta-os
dilacerando na boca.

Despoja-me de todos bens
e com o couro da pele
faça uma mochila de viagem.
Dê os ossos a algum estranho
que passe na esquina
onde nos beijamos pela primeira vez.

Não pronuncie mais meu nome.
Guarde a marca dos dentes
como lembrança na pele.

(do livro "Poemas Suíços" - Ed. Ibis Libris, 2004)

9.12.08

"Algum dia você poderia?" (Maiakóvski)

Manchei o mapa quotidiano
jogando-lhe a tinta de um frasco
e mostrei oblíquas num prato
as maçãs do rosto do oceano.

Nas escamas de um peixe de estanho
li lábios novos chamando.

E você? Poderia
algum dia
por seu turno tocar um noturno
louco na flauta dos esgotos?

(1913, tradução de Haroldo de Campos)

5.12.08

"caos"

Estou à espera de qualquer coisa. Qualquer coisa que se move por perto e me apavora. Me entorta a espinha. Mas é um perto que não posso ver. Não existem milhas ou léguas que nos separam. Estamos em lugares distantes e ocupamos o mesmo espaço. Mas posso sentir seu bafo quente, sua passada larga e lenta, sinto seus dentes rangendo e algo me diz que isso não é nada bom. Digo apenas que posso sentir. Digo mais alto, algo ainda não me convence, então digo muito mais alto, e penso que perdi a razão. Posso sentir. Isso parece uma frase um tanto desesperada, de alguém insensível querendo se justificar. Sentir é algo assim tão amplo, tão vago que preciso andar pela casa a topar com móveis pontiagudos escarnecendo com as mãos para cima. Tenho um pensamento patético, no fundo de outro pensamento óbvio. O pensamento patético é: “O que estou esperando?” Ele está dentro do seguinte pensamento óbvio: “Por que demorei tanto para me dar conta de que precisava me perguntar isso?”. Fatalmente alguém há de ler isso. Se for um canalha, rirá. Um medo equivocado toma conta de mim. Bato as teclas automaticamente e elas parecem grudar-se à tela branca sem vontade, como o demônio deformado que nos persegue nos sonhos ruins. Ele nunca nos alcança, mas sempre quase nos pega, e nunca desiste de correr, assim como eu mesmo que, no sonho, vou me exaurindo, cada vez mais exausto, e começo a ver enormes castelos de areia e penso em Franz Kafka e Ferdinand Céline. Tenho medo, muito medo, estou exausto, por isso começo a fazer citações. A palavra exausto me lembra de que, no meio de todas essas elucubrações revoltantes, continuo à espera, sem respostas, nem mesmo ando, estou à deriva e minto sobre ilhas pré-diluvianas. Nenhum milagre ao redor. Tento desenhar uma andorinha no papel branco. E como seria mesmo uma andorinha? Alguma coisa deve estar muito errada. Não reconheço o que desenhei e apelo a um psicologismo cínico. Deve ser algo mais por dentro. Repentinamente sinto uma vergonha incomensurável e começo a gargalhar. Encho e esvazio copos empoeirados. Sei muito bem que as gargalhadas são muitas vezes as primeiras demonstrações de loucura segundo nossas avançadas metodologias humanistas. Devo me controlar. Os psicopatas dizem sempre a mesma coisa. Devo me controlar. E os olhos já escaparam às órbitas, o saco plástico impede a respiração. Acontece uma espécie de barulho surdo, contínuo, por dentro do ar. O barulho de algo que se aproxima. Algo se aproxima e essa é a única evidência.

O dinheiro está terminando, o país prestes a quebrar. Existem ainda alguns poucos de olhos esbugalhados, enormes papadas, verdes de ganância, por cima da carne seca. Mas são cada vez em menor número e seus dias também estão contados. Estaremos, todos, em breve nos digladiando nas ruas por comida? Não haverá mais o financiador e o financiado, ambos estarão juntos roendo os esgotos de uma belíssima cidade, uma espécie de Grécia babilônica, os restos de uma raça antiga, inusitada e sem explicação? Nada disso importa. Esta frase está fadada ao esquecimento e completo fracasso. Importa tão pouco que me esqueço a cada minuto do que se trata. As montanhas de areia se estendem diante de olhos ainda revoltados. Importa é “para frente amor, estamos vivos!”. Meu deus, recorro a ti, a que ponto cheguei? Toda satisfação é momentânea. Mas nisso é importante não pensar. Os horizontes cor de violeta repousam pavorosamente sobre a visão. E quando me dou conta estou ali, a saliva pastosa nos cantos da boca, os olhos vermelhos para fora das redomas, alguma coceira um pouco mais na direção do espírito sem controle, com o rosto colado às mil portas sem entrada, à espera de qualquer coisa que virá de súbito, arrastando as emoções a chicote, devastando as últimas ameaças do tempo.