29.4.08

"O Cara"



Jack "The King" Kerouac lê em free jazz os sincopados trechos finais do seu best-seller, "On the road", no Steve Allen Show.

"Lava"

Barulho demais lá fora e tenho só essa boca banguela, essa vontade seca de sugar todas as etapas, esse medo terrível do apodrecimento das possibilidades. E esse cansaço. Os transtornos que as calçadas em dias de sol tremulante emanam me deixam aéreo. A paisagem se sobrepõe, e eu me dissolvo totalmente. Mas tenho medo. O medo não é matéria como o corpo. O medo é forma, existe antes das coisas. Por isso tenho medo. Medo é o ter. Mas e com relação às perguntas impossíveis? O que fazer com elas? Deixar de pensar? Guardá-las feito pergaminho? Mergulhar com vontade em tudo, como aconselhou certa escritora tetraplégica? O ícone de uma geração? O exemplo da conexão plena entre os elementos? O risco sem curva no céu estrelado? Existe, mas existir não é bem o verbo. Os verbos não são bem verbos, se usados como escudo. É o que fazemos. Usamos verbos como escudos, como abreviações de poder maquiavélico. Usamos os verbos sorrindo, com a boca sangrando. Mas, ouvindo agora a música barroca, vejo como lentamente bufa entre nós um ser ferido, se arrasta com classe o verbo, sua linha tênue entre sangue e lápide, tão perfeita quanto a fumaça do cigarro. Sua essência, essência dos filhos fortes. Porque não importa se o Homem criou o verbo. A ressonância do verbo saindo da boca do Homem e o efeito que ela provoca no ar, por mais que seja às vezes desequilibrado para o Homem, como podemos notar ao comprar o leite, isso nada tem a ver com o Homem. Tem mais relação com a fumaça do cigarro do que com o homem. Vejam! O homem se tornou minúsculo. E isso também não fui eu que fiz. Estava nalgum canto e eu o recolhi com descuido. Recolhi o “isso”. E eu repeti a ele as mesmas palavras: “morre assim, bem devagarinho”. E o que não dizemos um ao outro, quando nossas costas se encostam debaixo das cobertas? A música barroca... Talvez mais próxima da fumaça que nosso verbo quadrado, nosso verbo de aço, nosso verbo dia-a-dia. Por algum motivo estou vazio e sinto que posso continuar mais um pouco. Ninguém se importaria agora. Vejamos o que acontece se eu tentar. Um minuto ou dois para se tentar fechar os olhos, não esses, os outros, sim, os que olham dentro, ponha a mão, aí mesmo que eles ficam, agora os feche, agracie o próprio peito, não, não precisa ser com força, não deve chorar agora, a coisa chora por dentro de si, somos apenas mecanismo agora, sim, recoste o pescoço sobre o ombro, sim, sinta devagar o carinho da absolvição, a música barroca, obrigado Sr. Telemann, sinta quente esse ombro que tantas vezes suportou o peso vago do mundo, a acústica ressonante que nos traga como esgoto, suporte agora com leveza o mesmo ombro encharcado de tantas asfixias, traga para si toda a carga, amacie os pulmões delicadamente, como quem morre devagar, mas bem devagarinho mesmo, então, sem abrir os olhos, os olhos de dentro eu digo, sinta a força muda reticente do mundo sem invenção, do negro desconhecido que absorve o claro e cria as cores, não mergulhe com violência, apenas repouse o colo, somos apenas fluido eterno agora, todos nós, que chegamos até o fim sem saber, e somos lava.

19.4.08

“na cama”

para estancar o sangue
bom pôr os pés para o alto,
que o instante de chumbo
liquefaz pequenos vícios
em cores ainda frágeis.

princípio da delicadeza,
duas cápsulas emaranhadas
enquanto o mundo grita: “corra!”

parar tranqüilo sobre os ombros
de quem se ama e não se conhece,
observar os olhos a mil sob a pele,
até que se diga: “o café está pronto”.

então voltar a dormir, nunca tão
despreocupado, pois por mais
que o mundo grite: “atenção!”

sobre plumas o sorriso sonolento
permanece intacto diante das feras.

17.4.08

“diagnóstico”

é necessário algo fluido
feito mãos entre lâminas.

precisa-se urgentemente
de uma boca bem aberta.

para coalhar esse tempo
que não se fez cicatriz.

nem tampouco sangra agora
e ainda é tempo sobre tempo,
sem noção entre terra e cais.

em suma é necessário mais,
porque os olhos imaginários
exigem filho, casa, mulher.

pode-se fazer o que se quer:
matar-se com tiro entre olhos,
convidar corujas para jantar.

mas sempre existirá esse canto,
essa mensagem rouca de louco,
esse erguer os olhos aos sinos,
tão anterior à foice sob a pele,
que enfim entregamos a saliva.

e quem pensa sobre isso morre
de amor ou doença coronária.

9.4.08

"família americana"

Por que eu deveria
me importar com a posteridade?
Ela nunca fez nada por mim.

(Groucho Marx)
e todos ficaram surpresos
ao ver Groucho Marx preso
(o grande mito da comédia)
a uma cadeira de rodas, senil,
enquanto sua adorável esposa,
bonita e vinte anos mais nova,
o cuidava até que veio a morte
com apetrechos, capuz, foice,
e era uma vez Groucho Marx.

e todos ficaram surpresos
ao ver os herdeiros processarem
aquela que uma vez havia tirado
sorrisos do dito rei do faze-rir.
menos meio milhão de dólares
na conta do banco, pobre coitada,
perdida em clínicas psiquiátricas,
por ter dado demais perdeu tudo,
o amor, a cabeça, e suicidou-se.

4.4.08

"Mais uma xícara de café antes que eu me vá"

O homem entra com sua mulher nos braços. Eles sobem pela escada. O elevador não está ali na hora em que deveria estar. E um homem não tem paciência quando ama. Um homem não pode amar e ser esperto ao mesmo tempo também.
Ele despeja delicadamente o corpo de sua mulher no chão, em frente à porta. Ajeita a cabeça da mulher com carinho, gira a chave, torna a erguer o corpo dela sobre os ombros e os dois entram.
Deixa a mulher no sofá e vai até a cozinha.
- Ei - ele diz - você quer comer alguma coisa? Uma fruta pelo menos. Você deveria comer alguma coisa, babe, sabe... Foi uma longa noite... Nada? Bom, eu vou pegar uma.
Ele volta com os dentes fincados numa pêra. A mulher tem os olhos muito abertos, estalados, mas não estão com raiva. Ela não diz nada, hora alguma. Ela está no sofá com a cabeça caída para o lado. O homem vai até o som. You’re gonna make me lonesome when you go: Dylan.
Ele apóia exausto o corpo sobre o parapeito da janela e fica um tempo ali. Olhando para baixo com os cotovelos apoiados, enxuga saliva nos cantos da boca. Então volta.
- Sabe, querida, a noite está tão bonita hoje! Você viu?
Ele volta para a cozinha. Põe uma sopa para esquentar. Vai ao banheiro. Pega uma escova de cabelo. Volta à sala. Agacha-se diante do que chama de amor.
- Veja bem, criança – ele diz com charme e graciosidade - acho mesmo que você precisa comer alguma coisa. E não adianta ficar com essa cabeça assim de lado, essa cara de espanto. Não adianta birra. Vai te fazer bem uma sopinha, querida, vai sim.
Muito delicadamente ele pega a mão da mulher e a traz para junto do seu rosto. Fecha os olhos e fica um tempo passando a mão pelo rosto, de um modo forçado. A mulher continua com os olhos abertos e a cabeça virada para o outro lado. Ele pega a escova e passa suavemente pelos cabelos da mulher. De um lado para o outro.
- Você é linda de qualquer jeito...
O homem então se levanta e volta à cozinha. Desliga o fogão, serve um prato de sopa e dois copos de vinho, volta à sala. Primeiro com os copos, depois com a sopa.Ele novamente se agacha. O prato de sopa na mão. A colher na outra.
- Ei, babe, por que esse desânimo, hein? Foi só uma briga, eu sei que foi só isso. Já passa... Olha, tente comer alguma coisa, sim? Eu sei que fui duro contigo. Casais brigam em todo o canto, o tempo inteiro... Não quer mesmo comer?
Ele mesmo leva então a colher à boca. Larga o prato e pega os copos. Bebe todo o seu vinho de uma só vez. Serve mais. Serve rápido demais e um pouco de vinho respinga no carpete.
- O vinho está fantástico! Você devia tomar um pouco...
Ele bebe novamente seu copo todo de uma só vez.
- Sabe, isso iria te reanimar... Ou pelo menos te dar sono... Você precisa descansar, bebê. Eu também preciso. Essas brigas me deixam exausto. Você não? Olha, beba um pouco disso aqui...
Leva o copo de vinho até a boca da mulher, que continua com a cabeça inclinada e a expressão entediada, distante, muda. Ele repousa o copo sobre a boca da mulher, a mão apoiando por baixo. A expressão facial da mulher é nula, mas a alguns poderia parecer que ela não gostaria de beber nada. Uma linha de vinho escorre pelo canto da boca da mulher até o chão.
O homem larga o copo e se levanta. A música terminou. Ele escuta por um momento o próprio coração bater dentro das têmporas como um sino fúnebre. O silêncio o deixa agitado e ele começa a andar pelo quarto, falando sozinho.
- Meu deus, preciso descansar...
Espreguiça, coça a cabeça, dá um giro nos olhos.
- Mas não vou te deixar aqui sozinha... Prometo que não vou...
Ele vai até o banheiro novamente. Volta. Olha mais um pouco pela janela. Volta até o sofá. A mulher com os olhos abertos, bem abertos, um risco de vinho no canto da boca. Ele se agacha novamente. Sobe por cima dela e lhe beija o pescoço exposto. Ela continua olhando bem aberto, por cima da cabeça dele. Ele beija o pescoço e depois a boca, a boca fechada. Então desce e beija os seios da mulher. Os seios estão acesos, excitados, são pequenos e murchos. Ele começa a chorar como quem sabe mais do que é capaz de entender.
- Desculpe, babe, desculpe por te fazer sofrer. Mas agora está tudo bem, eu estou aqui contigo. Vou ficar aqui.
Ele bebe mais vinho, muito mais vinho. Depois aperta a cabeça da mulher bem forte junto à sua. Tão forte que a boca da mulher se abre. Ele mete a língua dentro da boca aberta da mulher. Fica ali, dentro da garganta. Parte do vinho se mistura com saliva e escorre pelo pescoço dela. Depois ele se levanta. Começa a dar socos na própria cabeça, andando pelo quarto.
- Por que você não me ama mais, por que isso?
Ele anda e chora. Daí volta correndo e se mete entre as pernas da mulher, com a cabeça retesada sobre o ventre. Chora. Soluça. Isso dura cinco minutos. O choro, a mulher de boca e olhos bem abertos e o homem com a cabeça junto ao seu ventre.
Ele então levanta a cabeça com os olhos confusos e olha para os olhos bem abertos da mulher que ama e que não o ama mais.
Ele olha dentro dos olhos dela. Os olhos da mulher parecem não demonstrar qualquer compaixão ou sinal de perdão. Ele se irrita de repente e se levanta agoniado. O silêncio faz um barulho violento no ar. Ele troca o disco na vitrola. Everybody must give something back for something they get: Dylan.
Vai até a cozinha, esquenta um café velho, serve um pouco para si, pega uma faca. Larga a faca, bebe o café, pega a faca. Volta e se ajoelha diante da mulher, salivando. Um choro irreconhecível.
- Você me ama... Eu sei que me ama...
Ele se encolhe no chão. Parece doer. Parece teatro.
- DIZ QUE ME AMA AGORA! DIZ AGORA, SUA PUTA MESQUINHA! EU PRECISO DE VOCÊ AGORA!
Ele sacode as pernas da mulher e isso faz com que ela balance a cabeça e desarrume novamente os cabelos. Ele continua chorando como se tivesse dois espíritos brigando entre si dentro do corpo. A mulher então se entorta e cai, escorrega pelo sofá. Ele permanece de joelhos e com a faca na mão. A mulher cai de boca aberta e mais vinho escorre no carpete.
Ele deita com ela sobre o carpete. Fica de lado junto a ela. Vai até o seu ouvido. Diz baixo, vermelho, venoso.
- Eu te amo... Você consegue me ouvir? Não vou te deixar sozinha...
Ele então pega a faca, ergue acima da cabeça e, ao mesmo tempo em que grita, penetra o tórax da mulher. Ela não tem nenhuma reação. O corpo apenas saltita. A alma sem saber decola. Ele chora e enfia a faca doze vezes. Então larga a faca no chão e pega a escova de cabelo. Penteia pela última vez os cabelos da mulher. Ajeita seu corpo. Fecha sua blusa. Beija as feridas dela como se fossem as suas. Vai até a janela, que está fechada. Olha os carros lá embaixo com os cotovelos escorados, através do próprio reflexo no vidro.
Então ele dá a volta e anda em descompasso pela sala, esfregando as mãos vermelhas uma na outra. Num ímpeto, corre e pula pela janela ainda fechada, atrás daquilo que se perdeu para sempre no seu coração.
Como as canções de amor, ele erra. Cai sobre um toldo e sobrevive. O disco continua tocando. But to live outside the law you must be honest: Dylan.
Sangue e vinho se misturam. A polícia chega. O homem era um artista famoso, agora uma fratura exposta na altura do joelho. Os repórteres meio que brotam da paisagem como formigas africanas.

Nos jornais, acusam Bob Dylan por incitar a violência nas pessoas. O novo disco de Bob Dylan fatura milhões e atinge o topo das paradas de sucesso. Um disco só com músicas de amor.

“hai kai português”

ser sol da tua noite em claro,
a meia-lua dos gatos no cio.
o chão de terra do teu rastro,
da tua carne tirar meu vício.