27.4.18

"poetas"



hoje é dia de encontrar poetas,
muitos poetas se encontrarão,
abraços explodirão, por que não,
também algumas divergências,
ainda que encalacradas, ocuparão
seus estranhos lugares centrípetos.

quem diria você, há tantos anos
perdido em condições inóspitas
auto-impostas, estivesse agora
se preparando para encontrar
poetas, amantes de alguma lira,
pessoas que rangem os dentes
de raiva ainda que sorriam, sim,
porque a vida tem sido azedume,
então é tempo do espelho dizer:
apesar de tudo, quem diria você.
talvez que o encontro de poetas
só seja possível num mundo
                                 em chamas.

23.4.18

“felinia”



tenho procurado a noite
como a refém impoluta
de quem preciso proteger
nesses dias que seguem
duma quadrilha de pedófilos
muito poderosos e vorazes.
como numa serie de televisão
tenho procurado a noite
nos desvãos de pesadelos
que lembram o avesso da vida.
nas costas desse monstro
que me arrasta a metro tirano
tenho procurado a noite
no soluço de todos os adeuses,
na garganta fechada da noite,
hoje uma varanda sonolenta
ou uma janela com grades
e gatos que precisam escapar.



19.4.18

"os cabelos do meu pai"




pai, retomei ótimas obsessões.
agora, sem estar mais bêbado,
voltei a me obcecar por certas músicas,
por certas figuras, minas e caras,
que simplesmente, quando ouço,
me levam pra muito longe e permaneço
por semanas ouvindo suas músicas,
descobrindo uma a uma suas músicas.

agora foi a vez desse argentino, o spinetta.
tem uma apresentação na qual ele entra
no palco sem camisa, um perfeito esqueleto
e com os tamancos que – eu me lembro –
você disse que todo mundo usava igual,
homens e mulheres, e ele entra com uma sirene
grudada nas costas esqueléticas e toca o som
de uma sirene mesmo e a banda é composta
pelo spinetta, um baixista com lindos cabelos
e um tecladista cabireca muito charmoso,
que me lembra mais você do que os outros que
são muito mais novos e lembram mais meus amigos.

na platéia argentina dos meados dos anos setenta,
jovens com ascendência indígena estão sentados
e balançam todos juntos as cabeças cheias de cabelo,
os cabelos de toda uma geração que ainda sonhava.
meu amigo viu o vídeo comigo e me disse brother,
aqueles ali na platéia sentados são os pais da gente.
daí eu só pude pensar em você, com muito cabelo,
balançando a cabeça junto com todos os cabelos
de toda uma geração que ainda sonhava todos juntos.
tenho ouvido spinetta, pai, e pensado em teus cabelos.

18.4.18

“soneto para rita, que dorme com toque de classe”



embaraçado no teu pesadelo
sobra o meu amor constante
que se afoga e nem vê adiante
e tu dormes longe do conselho.

claro é pecado a cruza de vênus,
isso nos faz pagãos esperançosos.
o tímpano da madrugada esboça
a linha entre o sono e o veneno.

porque é de papel, minha bruxa,
o soldado que te traz remédios.
no teu sono morro fora do tédio,

na tua boca lambo a lâmina dupla
da encruzilhada em que, vendado,
vivo a nossa linda vida em pecado.



15.4.18

"el angel spinetta"





para o lucas porto


preciso falar de você
porque é preciso
falar dos anjos.

existe essa música
que lembra o quanto
não somos mais jovens.

e tem essa música
– a tua música –
que lembra o quanto
seremos eternos.

você que é o filho
de todas as mães
de todas as esquinas.

você é o que alucina
o que caiu no caldeirão
da moldura humana.

magro como a história
tens a força heróica
para erguer o hálito da espécie.

e o requinte insensato
de chorar certas palavras
nas brechas da nossa destruição.

porque é nas brechas que se reza
e cada segundo em que te ouço
firma a carne diante dos dentes
do mal que cerca já sem força.

1.4.18

“meus amigos e eu”



nossa crítica azeda é ainda
a melhor maneira de fazer rir
fora danças exóticas, alguém diz:
suor foi a melhor idéia de deus.

somos seis, sete, agora seis outra vez,
amigos unidos que procuram entender
de uma vez por todas que proteção
seria essa quando dizemos amigo.

precisamos estar juntos para estarmos
protegidos pela palavra amigo,
palavra que traz consigo
uma caixa de escombros.

sobre a parte boa de tudo
deslizamos
inconscientes o mais possível
da pedra.

todos temos
nossos momentos
de faniquito
porque ser amigo
é também poder
desesperar junto.

amizade é conseguir desmanchar
a máscara de alguém sem matá-lo.

estamos vivos porque nos tocamos
e temos autorização para azedar
com um esguicho do veneno
que salva da picada mortal
cada um dos semblantes seriíssimos
que viver sem mapa nos levou a ter.

com água temperada e outros líquidos
que saem dos nossos poros por cima
das mentiras e da nossa inábil razão,
lavamos a casa do nosso velho afeto.

uma gruta atravancada
de coisas nuas e selvagens,
fáceis de esquecer
no cruzar eficiente
entre nossas falhas
e os egos inchados
que, entre amigos,
às vezes morrem no suor.

somos um grupo animalesco
no esplendor de uma era fria
expositora do que falta em nós
de garra, saliva, unhas e pelos.
só juntos podemos ver a poeira
que a reunião do nosso rebanho
levanta na terra sagrada do fim.