31.8.06

"campanha eleitoral"

sob(rios) vespas
só(çobra)m
e
n
tiras com
prados no
vácuo dos
nobres sarças
(orgas)mos
débriovalentes
velados em coxas
dórfãs o(cu)ltas
de cara sardinhas
com ovos codorna
gravatas
cu-já(vai?)-$ borboleta $
avião sido surubornadas
e gozagastavam
tudo em orgastos
e propostitutas baratas.

29.8.06

"Em Meu Ofício ou Arte Taciturna" (Dylan Thomas)


Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.

"A confissão de um vagabundo" (Serguei Iessiênin)

Nem todos sabem cantar,
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então, limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro,
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de noiva.

Amo a terra.
Amo demais minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos dos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E o mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Pégaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos.
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.

(1920 - tradução Augusto de Campos)



*Iessiênin nasceu em 1895 e foi um dos maiores poetas russos. Aos 30 anos suicidou-se num quarto de hotel em Leningrado cortando os pulsos e se enforcando. Alcoólatra, casou cinco vezes e três de suas esposas foram a atriz Zinaida Raich, a dançarina americana Isadora Duncan e a neta de Tolstoi. Contudo, o que é pouco mencionado foram seus relacionamentos clandestinos com homens. Antes de suicidar-se escreveu com sangue um poema de despedida dedicado ao poeta Anatoli Marienhof, com quem vivia há quatro anos.

"carnal"

ama profundamente
aquilo que te envergonha.
insiste no teu próprio declínio
através dos teus próprios deslizes.
aperfeiçoa teus equívocos mais felizes
de modo que eles jamais se fechem
com a verdade definitiva das coisas.

importa sobremaneira
insistirmos nas nossas primeiras
bestas internas
e que reconheçamos e amemos
(e sejam ternos)
nosso mais completo desespero,
a pior sorte de febre.

não deixemos que o medo
destrua nosso cativeiro de ossos,
pois o corpo é seu próprio sepulcro,
labareda perplexa, cicatriz exposta,
fachada desusada de pedaços mortos,
não importa o quão cedo.

é preciso que o corpo de ontem
desmembre seu próprio mito
para reconhecer no espelho da carne
através de seus abortos de hoje
a essência irrevogável
do seu conflito.

26.8.06

“primeiro beijo”

toda doçura só é doce quando
é uma surpresa para a língua.
quase tudo que se planeja hoje
termina salgado nas gengivas.
porque para quem vive de fato
a vida é um plano ao contrário.

“dois acontecimentos sem a menor importância”

vi hoje nas mãos de um cadáver
– duras, secas e compridas –
no lugar das unhas cascas de árvore
no lugar dos olhos estrelas suicidas.

retiravam o cadáver numa maca
sob a fachada de uma lavanderia
duas gárgulas peladas de prata
em meio ao muxoxo úmido das tias.

depois vi uma mulher velha e cansada
apesar da pouca idade dos seus poemas
tal qual uma azaléia muda na sacada
ao lado da placa onde se lia: “vende-se”.

ela esmagava um terço com os dedos
enquanto com os olhos do tempo
observava crianças brincarem de briga
no terraço vazio do esquecimento.

os dois fatos aconteceram no mesmo dia
de um lado o fim, do outro o início da vida.
e eu sem saber dizer a que tempo pertenço.

25.8.06

"Acontece" (Cartola)


Esquece nosso amor, vê se esquece
Porque tudo no mundo acontece
E acontece que já não sei mais amar
Vai chorar, vai sofrer
E você não merece
Mas isso acontece
Acontece que meu coração ficou frio
E nosso ninho de amor está vazio
Se eu ainda pudesse fingir que te amo
Ai se eu pudesse!
Mas não quero, não devo fazê-lo
Isso não acontece.

24.8.06

"baque de plumas"

e que farei da antiga mágoa quando
não puder te dizer por que chorei?
Vinicius de Moraes

sou a mosca da praça pública
que passa vomitando sua bílis
e anda escondida nas sombras.
agradam-me prédios chamuscados
e chafarizes desligados pela ferrugem.
fico feliz em saber que as nuvens
podem às vezes não passar de fraca imaginação.
mas andando sozinho pelas ruas
dias a fio nos fios de uma cortina
quando nenhuma pessoa me via
decidi adotar uma nova postura:
ser eu mesmo meu próprio poeta em construção.
aquilo por um lado parecia infantil
e talvez fosse, pois eu já era tio
mas é inútil continuarmos vivos
se não pudermos tentar olhar
para nós mesmos como um somatório
de tendências maquinalmente herdadas
por milênios de repetição exaustiva
e compreender o que no meio disso tudo
seriam as nossas próprias idiossincrasias.
por exemplo, no meu caso particular
que, sim, se eu te olho com desprezo
é bem provável que esteja apaixonado
porque a paixão é no fundo o elo frágil
entre a identificação e o menosprezo.
que, sim, eu sempre usarei os olhos
quando não tiver nenhuma outra arma:
é a última saída para os fracos de espírito.
que, não, não espere que eu te explique nada
pois com a astúcia típica dos covardes
defenderei-me de tudo com um sorriso
mas no fundo só te perdoarei pelas tuas falhas
e sempre te castigarei pelas tuas virtudes.
gosto de queimar a língua no chá e no café
para ter que lembrar ao mesmo tempo
de todas as dores com a boca ocupada.
sou do tipo que, se não está dizendo nada
considera o interlocutor ou muito inteligente
ou muito estúpido ou apenas incompreensível
ou monótono ou variações das supracitadas.

sou composto de tudo o que matei e amei.
boa definição para o caso só li em Vinicius de Moraes
no seu poema dedicado ao piloto Leonel de Marmier
trucidado em pleno vôo sobre as planícies de Oxford.

sou uma carcaça de aço quebradiço atingida nas alturas
um corpo flamejante que apesar de intenso é só um fósforo
e que a perigo, destituído de armadura, se funda frágil
para após uma série acidental de choques deliberados
convergir num ininterrupto baque de plumas.

"Carta aos Puros" (Vinicius de Moraes)

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

23.8.06

"filósofa pupila com inclinações fascistas masturba-se"

eu te chamei minha verdade afoita
sem saber transformar tua imagem
assim como as asas da tua vertigem
numa poesia de tentação em folha.

e mesmo se soubesse precisaria de mais...
de muito mais vinho e muito mais escolhas
para ressuscitar todos os nossos portos
– os vivos e os mortos –
que agora me parecem tão distantes
como se não tivessem existido antes
ou fossem apenas blefes de nuvens.

existem tantos espaços vazios cobrando espaço
e tão pouco espaço vazio para ser ocupado
que é como se estivéssemos cheios de vácuo
como se fôssemos apenas bestas pensantes
por trás de esquivos sorrisos pedintes
poças de água e pele que para nada servem
a não ser para reconhecer e glorificar
nossos próprios desacertos.

não os de toda a humanidade, é claro
pois cada um tem suas virtudes
e nenhuma virtude é igual à outra
inclusive elas juntas se trucidam.

portanto não há coletivo.
coletividade é escravidão.
há sempre um vulto tirânico
atrás do vidro da televisão.

e afinal precisamos amar a vida
não como quem está habituado à vida
– parafraseando bigodes sábios –
mas como quem está habituado a amar.

portanto te exorto, lindo fluxo!
água benta que me escorre entre as pernas!
bolhas de sabão e borboletas!
voemos todos por sobre a ponte, voemos!
entre a prisão perpétua da dúvida
e a escravidão da crença...
e como cegos mecânicos camelos
carreguemos o deserto até os leões
e depois deixemos tudo com as crianças.

que importa que a guerra seja longa e úmida...
haverá guerreiro que gostaria de ser poupado?

21.8.06

"torre azul" (mário quintana)

é preciso construir uma torre
- uma torre azul para os suicidas.
têm qualquer coisa de anjos esses suicidas voadores,
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.
é preciso construir-lhes um túnel
- um túnel sem fim e sem saída
e onde um trem viajasse eternamente
como uma nave em alto mar perdida.
é preciso construir uma torre...
é preciso construir um túnel...
é preciso morrer de puro,
puro amor!...

“pensamentos incompletos para mário quintana”

ao observar discretamente os semelhantes (?) ao meu redor imagino quanto os olhos podem mentir sobre nós. olhando os outros que tentam me imitar através de espelhos, me cercam e me apedrejam com sutis tapinhas nas costas, descubro que estou de fato cercado apenas por mim mesmo. os outros representariam – sob a forma de raiva ou paixão ou perplexidade, ou uma mistura equilibrada de muitas sensações de alma, por assim dizer, almas às quais meu corpo pertence e sobre as quais ele não tem nenhum poder – falhas dignificantes que não reconheço nas minhas atitudes, preocupado demais com paralelepípedos poéticos e abismos metafóricos.

ando seco nas canelas, como lagartixa de plástico, me escorando nas quinas das janelas, escorregando pelas paredes geladas de um chalé nas montanhas, fornicando com águas quentes e cores de olhos no fogo da lareira: a violenta cabeleira de uma loira corretora de imóveis que abonou minha dívida com o mundo através da sua saboneteira exposta. nada além de um eterno sentido figurado no mofo do lençol serrano, já que nossos olhos são reféns do que nós imaginamos e, assim sendo, todos sempre vemos as coisas conforme nos sentimos com relação à grandiosa indagação: quem é o anjo, quem é o homem?

(sonho com uma mariposa se debatendo no chão da laje de um dia ensolarado em Gramado, quando minha avó, atacada da angina, chega pelas beiradas da noite fria, a casca da castanha do inverno porto alegrense, como há trinta anos não se via. seu um metro e cinqüenta é aspirado pela cama forrada com um cobertor térmico, quando ela olha para mim com seus inconsoláveis olhos cor de violeta violada, e diz mansinha: “agora já passa... eu comi mel... já tava dormindo... acordei pra tossir”).

a vida parece agora tão morfológica, cheia de gerúndios e anacolutos, justo agora que preciso controlar meus espirros, agora que sou o amigo novo, o mais baixo da turma, agora que estou na reta de um cardume fanático por olhos e, mesmo assim, mesmo desse jeito impossível de reconhecer meus próprios movimentos, em meio a pessoas saudáveis que, diferentemente de mim, comem folhas e raízes e sorriem de boca cheia, mesmo assim penso na angina da minha velha companheira, que respira profundamente por dentro da máquina que é sua ampulheta. e ela sabe disso e sente a dor se aproximar e se levanta. e vai morrer como todo mundo, mas agora ela sabe disso mais do que nunca e esse é um momento que perpassa toda uma vida, portanto não pode ser negligenciado.

isso tudo acontece dentro de um duto mental sem luz, enquanto engulo vinho tal qual um Li Po traído pela sua lua de jade, perseguido por correligionários fanáticos, escrevendo bobagens que são minha própria carne doce e obscena, enquanto a menina dos olhos de centelha – claros e invioláveis como o mistério que há em todos nós – não pisca para mim, e a cueca-virada ainda não foi assada na padaria, enquanto isso...

...essas pessoas medidas a régua perduram como peças empalhadas num sótão em chamas. pessoas impecáveis, ríspidas como fazendeiros escravocratas, descoladas por notas limpas de dinheiro inútil, com sorrisos grampeados como na festa do patrão corrupto, confraria de altos funcionários calvos, homens virtuais, milionários condenados a morrer de câncer na próstata: quando sou corroído pela inveja e, logo depois, pela cerveja que sobra.
quando isso acontece procuro atenuar minha raiva com a torre azul que quintana pavimentou com nuvens para os pássaros loucos que quebraram os bicos e amputaram as asas. com agulhas enfiadas nos meus orifícios nasais, perco as penas podres e me sacudo no frio infernal, entre pássaros com mais fome do que seus bicos podem transformar em seiva. e enquanto a noite das paredes barulhentas se deita, depois de alguns ruídos metálicos de fricção o mundo entra em colapso, um colapso noturno que se dissolve nas chamas do olho de um ciclope sobre o nariz da montanha: o peso da minha unidade estuprada infiltrando meus ventrículos. e eu, sujeitinho aflito, insisto em enterrar cometas suicidas, sorrindo a imitar periquitos: quando por fim grito! indício de mais um dia natimorto à procura de um novo princípio de eco por dentro de lençóis fantasmas...

"olhos da cidade"

vozes velozes avassalam
vultos de veludo
num vasto vendaval,
caminho crivado
com cruzes emprestadas.

somo ponteiros,
visto o casaco,
sigo a coceira
nos calcanhares.

que importa
que sue a têmpora –
cama escura,
gente de ferrugem –
se as cabeças
são celofane,
se olhos são frases?

cruzo a cidade que arde em chamas de gelo,
sorriso maligno num mapa em agulhão.
a cada esquina eu mais me desconheço,
sombra que recolhe olhos de luto pelo chão.

sigo olhos durante
o exílio dos motores.
olhos doces,
não sabem o que deformam.
olhos frios,
não conhecem o que escondem.
olhos suicidas,
piscam cordas entre um poste e outro.
olhos que, como os meus,
se perderam na noite.

elementos indigestos
em labirintos de veias,
gelatina de espelho
para a sina vermelha
da lua dos loucos.

em que planetas terrestres tuas bolas de cisto
– deuses protegidos pelos cílios da noite –
dissecaram meus passos na direção do abismo,
gargalharam de escárnio dos becos
onde vomitam os bêbados,
onde matam as gangues,
e sonham as prostitutas,
e dormem os mendigos,
e acredita o poeta morto?
olhos por tudo que não é visto
na órbita espiralada do aborto!

cidade vazia de mim!
arraste essa carcaça faminta
para tuas pupilas sórdidas
através de ruas sem pernas
(ânsia mecânica desesperada)
ora nos olhos de uma menina
que sangra a calcinha de amor,
ora nos olhos de um ilusionista
que teve seus olhos amputados,
ou então nos olhos sem lágrimas
de quem escreveu uma carta
e por não ter a quem enviar: rasgou.

a noite nos guia com olhos facínoras
e nós: cegos observadores excluídos,
por estarmos sozinhos e com medo,
temos menos olhos do que se precisa
e bem mais olhos do que merecemos.

17.8.06

Avenida Goethe

Se cada um é seu próprio anjo e sua própria tentação, e apenas o equilíbrio entre os dois lados é viável, então estou na trilha de alguma coisa. Nada como qualquer coisa de mutante para resumir Shakespeare, ou Cervantes. Mas, ainda assim, a imagino por entre as pernas.

Mutantes se inspiram em Jethro Tull (creio que vice-versa, neste disco de 69), bateria sobreposta, estilo Clive Bunker e, principalmente, o baixo, de como se alguma coisa fosse acontecer a qualquer momento, como um solo de guitarra e uma aceleração nos tambores.

Existem, obviamente, mais realidades do que as com que estamos acostumados, se realmente nos concentrarmos em focar despudoradamente nossos acertos, ditas coisas benéficas para o espírito, enquanto os erros nos desligam da terra em que pisamos.

Isso é ser patriota. Nada a ver com nenhuma bandeira nova em folha. Johnny Cash saberia explicar melhor. E June Carter, sua segunda primeira derradeira voz infinita: força uterina de combustão.

A grande questão da vida é saber agradar seu próprio anjo. Se ele for um anjo brincalhão, serão risadas com perigo de morte. Se for um anjo sério, você será desavisado como o cacto, que no meio do deserto nunca teme, até que lhe arrancam a cabeça. Muitas vezes, se você tentar ir além das suas próprias intenções, lembre-se de que é possível renovar ambientações de identificação. É um palavreado enfadonho – todos sabemos que bebemos demais por hoje – mas ao mesmo tempo interessante, dirá qualquer um que gostar de olhares: única palavra que não admite erros de ortografia.

Precisamos morrer algumas vezes, para sabermos que há vida.

16.8.06

"curriculum vitae"

De fato, sugiro que as mães mantenham suas filhas longe de mim; pois posso facilmente me apaixonar pela mãe. Tenho todas as péssimas qualidades de um romântico com crise de identidade. Tenho alguns péssimos hábitos, como andar olhando as árvores e torcer por um sorriso inesperado de alguém que passa na rua. Ou mesmo um certo talento nato para ser arrebatado pelo mais miserável dos acontecimentos súbitos. Tenho a terrível habilidade de ler com os olhos as intenções das pessoas, tendo me equivocado em todas as oportunidades que exigiam certo risco, porque pareciam valer a pena mesmo assim. Bom lembrar: sou um eterno adolescente em questões emotivas, mas um ancião em questões práticas e de apego irrevogável. Do tipo disposto a atrasos debaixo de chuva perpendicular e longas conversas mudas em óculos escuros com canudos sujos de batom. Sujeitinho que sou... muito suscetível às incertezas dos cílios e das bocas. Minha alma é um cipreste impressionista esmagado por uma panturrilha neoclássica. Dormindo me sinto melhor, pois é quando posso estar com tudo o que me estimula a viver ao mesmo tempo. À noite certas tendências me afastam de um bom partido para qualquer coração necessitado de compaixão. Algum comando diabólico me arquiteta com maquinações antecipadas de pensamentos, que forjam movimentos e soluçam sustos através de atitudes impensadas, bem próximas do animalesco, e isso me mantém congruente apenas com meus pensamentos, poucas vezes tendo sido resultado de conversas apreciativas ou arroubos passionais. No entanto, o outro lado dessa tese promove arrebates instantâneos de ternura e compleição, tiros de flores a quem quer que atravesse meu caminho. Já me chamaram de anjo, já desejaram a minha morte, já me fizeram chorar de alegria e de pavor, já fui Judas, Barrabás, Nero, já beijei dedo a dedo os pés do afeto, liquefeitos na fumaça de um incenso natural de corpos. Meu desejo é incontrolável e funciona como uma bexiga. Pulsa pavorosamente quando está em estado de combustão. Se enruga como uma bergamota chupada quando se extingue. Não posso controlá-lo ou agir como se pudesse, para agradar aparências espelhadas em arco-íris de contentamento e pseudo-evolução. Me deixo levar como as folhas, o que resulta num certo aperfeiçoamento em aquaplanagem e uma certa tendência a vento. Sigo mulheres que são passos, sempre que chego já se tornaram em areia outra vez. Deixo elas fazerem de mim o que bem quiserem que eu queira. Com detestável perplexidade enrustida, desfaleço-me, fingindo de morto, para me instalar nas pequenas dobraduras, onde não posso ser incomodado, e de onde observo melhor minhas próprias impossibilidades crônicas e meus planos de emergência mal-arquitetados: pára-quedas azuis emperrados na virilha do perfume feito do esfacelamento de pétalas inaptas.

14.8.06

“poeminha quântico”

somos todos costurados
neste mundo plano feito
efeito de um só estilhaço
que explodiu para dentro.

se não olharmos,
tudo são possibilidades.
quando olhamos,
partículas de existência.

coisas
não
são
coisas
são
tendências.

quero me libertar totalmente
como se todos os caminhos
fossem fluxos inconseqüentes
cargas elétricas em transe fixo.

você já viu a si mesmo
através dos olhos vesgos
de quem você se tornou?

um ser humano saber
sobre a origem das coisas
é como um peixe saber
sobre a origem dos mares
ou as bombas saberem
sobre a origem da guerra.

enquanto os espaços infinitos
forem vontades normalizadas
seremos todos antipromessas.

13.8.06

“o sumiço do peixe”

minha avó comprou peixe na feira
meu avô e eu comemos felizes
minha avó detestava peixe
e passou o almoço resmungando
palavras incompreensíveis
para o ouvido humano
mas eram palavras amáveis
tenho certeza que eram
só que do jeito lá dela.

no dia seguinte: dia dos pais
de dia remela, saudades, palavras...
de noite o desprezo paciente
todos no fim desprezados
pelo real sentimento de perda
como se a pasta que guarda
nossa única chave de chance
tivesse caído pelo bueiro.

depois desse dia: dia nublado
dia de reconhecer as posses
nada muito bom quando se olha para os lados
entretanto, ainda usamos bigodes
meu avô só ouve a estima do seu próprio coração
demorou meio século para reconhecer a verdade
eu me defino por minha forma de expressão
pouca certeza e muita voltagem
normalmente um furo em olhos sem face.

meu avô pergunta o que foi feito do peixe
eu me incluo enquanto engulo a indigestão
minha avó grita que desapareceu o peixe
não está na tigela, nem no forno, nem no gelo
o peixe não está em lugar nenhum.

meu avô apenas aperta a boca flácida
sem mais sombra de dente na carne
todos dignamente afogados
no copo d’água sobre a pia.

nenhum de nós parece reconhecer o próprio espelho
o fatídico selo
germinal pululante
todos parecem se esforçar em vão
mas existe um mistério invisível
um sumiço vivo entre todos nós.

11.8.06

“noite fria em que a vida voa pela janela aberta”

Oh, música entre pétalas
Não afugentes meu amor!
Mistério maior é o sono
Se de súbito não se ouve o riso da noite
(Vinicius de Moraes)


folhas de um verde indeciso
regurgitam
caleidoscópios de papel.

eu tento soletrar com asma
aquilo que só o vento com asas
pode explicar sem palavras.

imagens borradas do inverno
– estátua cravada no peito –
de ti já não mais se lembram
e por ti já não mais espero
porque perdi rastro de mim mesmo
e sendo assim – me disseram
é melhor ficar louco e esperto
e não me interessa ser esperto.

– escute aqui, guri, o mundo é dos espertos!
eles me gritam como se fosse certo
compreender.

nesse caso prefiro ser pouco esperto
como essas folhas escandalosas
que me piscam seus olhos de fibra
e pisam minha sombra esquálida
e se riem do meu pobre destino
mas solidariamente me convidam
para uma valsa em chão de pólen
num santuário de perdição alada
que me afasta desse mundo órfão:
essa terra de espertos sem dono
que guardam seus olhos mortos
costurados no fundo dos bolsos.

"A Morte" (Vinicius de Moraes)

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.

10.8.06

“amorosa loucura”

tudo isso que calo
e com gritos se acumula em calos
tudo isso que se esconde
por dentro do pus, por trás dos montes...
ansiosamente no fundo falso de olhos calmos
isso tudo que faz dos meus olhos ímãs de pedra
e que do meu estômago só a terra herda
e que por vezes se revela intransigente
e suplica aos céus enquanto escorre entrementes
e se arrepende sem culpa de movimentos atônitos
e que noutras instâncias se codifica em ternura crônica
isso que me revira por dentro como um pavor manso
vapor de um navio submerso num cais marroquino
e me faz querer tudo e depois não querer mais nada
e por vezes me força a engolir guarda-chuvas abertos
e me afeta as relações mundanas e me tira o cansaço
por mais que não sinta mais as pernas, os braços...
isso que funde em ferro minha alma em muros
e me leva a perambular pela noite cuspindo chumbo
o que de uns se cansa, noutros se gruda
toda essa falta de fome, toda essa dor aguda
tudo isso que filólogos tentam em vão domar
com suas sobrancelhas enciclopédicas
porque agem como se não fossem parte da mesma matéria
única – universal – intangível
do que por medo abdicam: verdadeira fagulha
o instante inexato entre o comprimido e a esperança
esses fantasmas que se apresentam à noite na tua ausência
enquanto todos dão nomes a curas sem enfrentar a doença
isso que me torna capaz de gritar silêncios em claves de sol
esse gosto amargo que me enche de doçura muda
e sustenta quieto num canto escuro as gostas de suor
isso que alguns céticos chamam de loucura
de olhos fechados eu te anuncio: meu amor!

6.8.06

“dialética do entendimento”

o amor
são palavras
recém sonhadas
no vapor do vidro.

fica o vidro e
evapora-se
o vapor.

o amor
é a saudade
que a flor morta
sente das pétalas.

gotas nos olhos
emudecidos
da árvore.

talvez um dia
quem sabe ontem
eu te diga tudo.

mas sem palavras
e assim quem sabe
esteja para sempre
(como nunca soube)
enterrado na tua vida.

a gente sempre espera demais
pelo tempo que passa sem asas
sem saber que o esquecimento
(dor que resta em ponta de faca)
é dádiva única de estrelas vaidosas
que morrem milhões de anos antes
(que se esqueça do que apavora)
apagando-se na cor ilusória
do céu para sempre cortina escura

sombra de dúvidas sobre nossas cabeças.

a imaginação é um camelo,
um corvo encantado sem olhos,
que guarda sua sede num deserto
de miragens aguadas sem vento.

a imaginação é um copo de vinho
que sobra na mesa nua
com um naco de pão ao lado
e sonha com um mundo de águas mansas
e morre por não suportar a calmaria do vago.

ou então talvez seja apenas um copo d’água
que chora perdido no fundo do mar turbulento
à espera de uma boca rachada de frio
que com palavras friccionadas em ungüento
lhe diga que apesar do tempo perdido
ainda existe o amor em toda a sua falha.

meu amor, teu cheiro até pode

ser apagado das minhas roupas
– com desinfetante e bebida –
mas será uma eterna voz rouca
vão de concha numa alma à deriva

tiro perdido no horizonte íntimo da noite.

"Minha Desgraça" (Álvarez de Azevedo - 1831-1852)

Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...

Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...

Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito blasfema,
É ter para escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.

1.8.06

"vago"

tanta coisa parece ter desbotado
outras tantas apresseadas escapam
burlando a ortografia correta
e parece tudo ter acontecido
tão depressa
em tão pouco tempo
que eu acho que seria injusto
comigo mesmo
se te dissesse que estou preparado
ou mesmo que entendo.

mas sobre as tuas interrogações
tenho ainda algumas exclamações.

as "aspas" são por intervenção das palavras
que são apenas colocadas e "infelizmente"
sentidas...

COPACABANA

conveniências eróticas
enfeitam as vitrinas e
entopem os esgotos.

“aluga-se uma namorada”
diz o santinho com cara
bagaceira entregue pelo
menino da cor de pedra.

“ônibus estraçalha idoso”
pelancas de tempo com
os olhos amontoados na
banca de revista onde se
compra cigarro no varejo.

e uma senhora repuxada
com os dedos dos pés em riste
como garras de enguia chocada
pintadas de antigamente
diz a uma outra cuja fé
é sustentada por linhas
como fantoche japonês:

“quantos de nossos esforços não
passam de oferendas ao nada?”

pelo que a segunda responde,
depois de pensar em silêncio
quando até os motoristas de
ônibus pararam de cavoucar
as orelhas peludas e mortas
e os passageiros entregues
fizeram o sinal da cruz
porque morreram antes
de esquecer a empreitada:

“virgem santíssima!
jesus seja abençoado!
esse silêncio significa
que acabou de nascer
um padre
e eu que morri
continuo viva aqui em pé:
acompanhada do milagre!”