Esta história, eu sei, já deveria ter sido contada. Mas me sinto ainda extremamente preso a ela, de modo que seria sempre parcial, em meu favor, ao lembrá-la. Depois percebi que guardá-la por isso seria burrice. Serei parcial agora, e sempre, enquanto sempre for agora.
Na época eu bebia muito. O resto é bem fácil imaginar: rondava as sinucas e os antros mais chinfrins até o fim da noite. Normalmente eu me tornava melancólico a partir de certa hora, e isso me levava para um lugar dentro de mim onde eu me sentia de certa forma confortável, cheio de ódio e senso de dignidade. Um lugar de muito sofrimento e amor próprio, de confusão sobre o sentido da dignidade. Normalmente eu acabava embrutecido, vomitando palavras desconexas num caderno de bolso, apenas para me sentir algo valioso, e isso era bastante estúpido e excêntrico para a maioria das pessoas – eu incluso – ainda mais com o aspecto deplorável que eu podia apresentar ao final de certas noites mal-sucedidas no meu não tão estranho jogo de esconder.
Tais idéias nebulosas sobre mim mesmo, as mais egoístas e extremadas, atraíam todo tipo de canalha, mulheres da vida, bêbados intratáveis, pequenos contrabandistas atormentados pelo consumo do próprio vício e alguns poetas ensebados. Impossível, no entanto, determinar o talento dos poetas, uma vez que eu também me considerava um poeta e estava inseguro quanto a mim mesmo: uma velha desculpa para a preguiça. E quando se está inseguro, ou preguiçoso, é impossível ser honesto.
Os poetas sempre foram tipos difíceis de classificar, afinal. Como a maior parte da poesia feita, pareciam todos um truque barato. Bons poetas poderiam ser ótimos canalhas ou corolas de igreja, os chamados “papa-hóstia”. Ao mesmo tempo, péssimos poetas poderiam ser cafetões disfarçados. Em suma, não havia no que se basear. E, normalmente, quanto mais uma pessoa me impressiona pelo seu intelecto, mais me assusta pela sofisticação da sua maldade. E puro intelecto é maldade pura.
De qualquer modo, eu também era considerado um poeta pelos meus mais chegados, e o que significava isso? Era mais ou menos a forma como eles esperavam que eu me comportasse: de maneira delicada e tacanha, com muita acidez e intensidade, de preferência com alguns rompantes dramáticos, mas sem perder a elegância. Eu, é claro, desempenhando o papel nos conformes do sistema, tentava negar tudo como um verdadeiro poeta, e dava os maiores vexames. Falava alto e cuspia, derrubava copos, chorava em ombros estranhos e, muitas vezes, entrava no sopapo por alguma divida de jogo – mesmo que eu nunca jogasse jogos de azar, pois sempre me pareceram redundantes.
Éramos na época alguns poucos amigos ainda. Havia os gêmeos, o diplomata e a “irmã mais velha”. Embora eu detestasse sinuca e não soubesse, por bondade, segurar um taco, ficava por ali, feito mosca varejeira, no balcão do boteco de fachada néon. Aquilo era um reduto de servidores públicos aposentados, punguistas com artrite e garotos de programa drogados demais, acompanhados de velhas viciadas ressequidas e vestidas com trapos, que dançavam até de manhã ao som de Jerry Adriani na juke box e seriam capazes de conversar contigo aos perdigotos sobre a crise dos mísseis em Cuba ou as crianças assassinadas da Chechênia. Aparentemente os motoristas de táxi eram os vendedores de cocaína que, por algum motivo secreto, também trocavam a droga por caixas leite. Os jogadores de sinuca mais velhos pareciam esconder alguma coisa quando olhavam para você.
Havia ali, como eu disse, uma juke box. Àquela altura da madrugada vocês podem imaginar o tipo de repertório. Basicamente música sertaneja e evangélica. Aquilo era bastante moderno. Um bar onde havia brigas freqüentes, onde uma vez vi um senhor de idade ser espancado por um selvagem de não mais que trinta anos com um soco inglês. Onde passavam droga e havia uma banca de apostas para os cavalinhos. E, basicamente, o que se ouvia lá dentro eram canções pregando esperança e boa ordem. Músicas de reabilitação e paz com Jeová. E que paz enlouquecida era aquela na qual vivíamos e de que tanto sinto falta?
Minha percepção das coisas ficava bastante afetada com a bebida e a fumaça. E era exatamente por isso que eu me sentia mais e mais perceptivo. Segurei uma das mesas de sinuca para os meus amigos, que estavam do lado de fora conversando sobre a passagem do tempo no cinema malaio. Então um senhor de certa idade se aproximou, com um olhar meio malandro, meio ordinário, e espremeu minha mão na mesa com a barriga, dura feito pedra.
- Meu bom jovem, você parece um rapaz loquaz – ele disse em seguida.
Tirei a mão debaixo da barriga dele e massageei cuidadosamente com a outra mão.
- O senhor percebe... A mesa já foi ocupada.
- Escuta, garoto, que tal ir lá colocar mais uma música, comprar um sorvete?
Havia uma cicatriz enorme atravessando o seu rosto e a unha do seu dedo mínimo era maior que as outras. Já haviam me dito uma vez para tomar cuidado com sujeitos com a unha do dedo mínimo maior que as outras.
- Tudo bem, mas o senhor vai jogar contra quem?
- Contra quem pagar – e me jogou uma ficha de música.
Você poderia ficar falando com um sujeito como este durante horas e ainda assim não saberia sobre o que ele está falando. Então resolvi aceitar a sugestão, apanhei a ficha no ar e pus para tocar uma música antiga que falava de crimes de amor e chuva. O velho levantou o chapéu na minha direção e disse:
- Nunca se esqueça, garoto: “a genialidade não anula a medula”.
Sorri de volta sem entender mais uma vez, pensando que talvez aquilo ficasse bom num poema do Manoel Bandeira (já que qualquer coisa ficava boa nos poemas do Manoel Bandeira), e fui até o balcão atrás do meu braço de ouro líquido. O que significava tudo aquilo? Aquela fumaça se esvaindo de vidas desmembradas em pequenos pedaços e aquelas mulheres com sinas definidas, emagrecidas pelo tempo. Aquelas pessoas que pareciam flutuar pelo mundo e que ninguém via. Não porque houvesse algo melhor para se ver. Mas justamente porque não havia algo melhor. Então não se via mais nada. Éramos pessoas aviltadas com problemas de insônia, cigarro após cigarro em becos sem saída, atrás de restos que nem os ratos haviam se dignado a aceitar. Éramos gritos entrevados enlaçados em espíritos penados, birras acumuladas em tempos de chuva forte, bocas mastigando bocas e ruminando algemas invisíveis em cubículos que diminuíam conforme os dias passavam. Não havia uma revolução ou uma guerra ou um partido ou um tirano ou uma ditadura em quem pudéssemos pendurar o cabide de uma culpa herdada, e que medisse nossos esforços. Vagávamos todos, imponderáveis, tolos, rumo a dias melhores, rumo a potes de ouro e duendes pegajosos. Dias melhores que nunca antes nem depois foram vistos desde que recebemos o peso da nossa tradição secular suplicante. Dias vivos apenas nas cores esmaecidas da nossa percepção deslocada.
Eu desenhava figuras geométricas no caderno. Antes havia feito um rapaz enforcado.
- Com licença, você é poeta, certo?
Olhei e vi um homem, melhor, um hominídeo com péssimo aspecto físico e semblante esquizofrênico, que parecia assim um poeta, por motivos óbvios. Uma flor na lapela e bafo. Não respondi nada. É o melhor modo de lidar com poetas. Então ele disse mais uma vez:
- Um poeta, muito bem... Vi logo que era... Pelo caderninho pautado.
- Olha, cara, eu só estava desenhando...
- Escuta bem: leia Rilke. É o maior poeta de todos. Leia Rilke antes e depois do banho. Leia Rilke na privada, durante as refeições, até no escuro, leia Rilke. Decore as elegias, afague seus anjos e suas esfinges, mas leia no original!
Ele mesmo não devia ler Rilke há muito tempo. Quando dizia mais uma vez “leia Rilke”, escorregou no que parecia ser o jantar devolvido de alguém, e tive que recolhê-lo. Coloquei o homem sentado num banco e ele imediatamente abraçou o balcão e pediu duas cervejas. Como um raio, se recompôs e serviu nossos copos. Não parecia comandar os próprios movimentos. Seus olhos tinham qualquer coisa de muito mal esclarecida. Tilintavam como gelo num copo de uísque. Pareciam mais próximos da origem das coisas que os olhos da maioria. Mas estavam próximos demais. Pareciam enlouquecidos justamente por isso.
Ele falava sem parar. Falou quase a noite toda sobre a métrica de Rilke, sobre como era necessário escrever poemas como quem esculpi uma pedra, e que eu deveria me preocupar com as cores de cada palavra ao compor versos. Ele dizia assim mesmo: “compor versos”. Parecia um sujeito muito antigo, mas não tinha ainda 30 anos.
Bebi muito na conta dele aquela noite. Meus amigos já haviam pagado as suas e as minhas e estavam saindo, quando eu disse que ia ficar, que tinha conhecido um poeta, um poeta de verdade, e que ele estava pagando as cervejas. Eu falava com uma ingenuidade pouco convincente, e nem eu mesmo acreditava em mim.
Meus amigos então foram embora e disseram para eu tomar cuidado. Ele que tome cuidado, eu disse, e apontei para o homem, que entornava todas no balcão. Sentei ao lado dele, ergui meu copo e disse com solenidade:
- Um brinde à poesia!
Sem me olhar ele disparou um tapa violento no meu copo, que estourou na parede. Os jogadores ergueram seus tacos, os bêbados acordaram, a garçonete molhou um cliente e a música repentinamente, como tudo naquela noite, acabou.
Os olhos do homem ficaram ainda mais vidrados, mas escureceram por dentro e em volta. Ele se curvou ainda mais no banco, como se espinhos lhe perfurassem a pele. Alguma coisa parecia perto de explodir dentro da sua cabeça. Alguma coisa que não era dele e também não me pertencia, mas que de alguma forma havia sido colocada entre nós. Ou a falta de muitas coisas. Ou tudo isso reunido. Seus olhos ficaram brancos e seu rosto, embotado.
Eu resolvi sacudi-lo pelos ombros e perguntei o que estava acontecendo, dando-lhe tapinhas na cara. Mas ninguém pergunta a um louco o que é a loucura esperando obter uma resposta coerente.
Ele apenas me olhou e disse, salivando pelos cantos da boca:
- Fique aqui. Não vá embora. Vou pegar um pouco de cocaína. Eu compro mais cerveja. A gente bebe lá em casa.
Então pensei, “foda-se Rilke”, e saí para vomitar na calçada. Depois fui para casa, poeticamente, e sonhei com frases coloridas.
Na época eu bebia muito. O resto é bem fácil imaginar: rondava as sinucas e os antros mais chinfrins até o fim da noite. Normalmente eu me tornava melancólico a partir de certa hora, e isso me levava para um lugar dentro de mim onde eu me sentia de certa forma confortável, cheio de ódio e senso de dignidade. Um lugar de muito sofrimento e amor próprio, de confusão sobre o sentido da dignidade. Normalmente eu acabava embrutecido, vomitando palavras desconexas num caderno de bolso, apenas para me sentir algo valioso, e isso era bastante estúpido e excêntrico para a maioria das pessoas – eu incluso – ainda mais com o aspecto deplorável que eu podia apresentar ao final de certas noites mal-sucedidas no meu não tão estranho jogo de esconder.
Tais idéias nebulosas sobre mim mesmo, as mais egoístas e extremadas, atraíam todo tipo de canalha, mulheres da vida, bêbados intratáveis, pequenos contrabandistas atormentados pelo consumo do próprio vício e alguns poetas ensebados. Impossível, no entanto, determinar o talento dos poetas, uma vez que eu também me considerava um poeta e estava inseguro quanto a mim mesmo: uma velha desculpa para a preguiça. E quando se está inseguro, ou preguiçoso, é impossível ser honesto.
Os poetas sempre foram tipos difíceis de classificar, afinal. Como a maior parte da poesia feita, pareciam todos um truque barato. Bons poetas poderiam ser ótimos canalhas ou corolas de igreja, os chamados “papa-hóstia”. Ao mesmo tempo, péssimos poetas poderiam ser cafetões disfarçados. Em suma, não havia no que se basear. E, normalmente, quanto mais uma pessoa me impressiona pelo seu intelecto, mais me assusta pela sofisticação da sua maldade. E puro intelecto é maldade pura.
De qualquer modo, eu também era considerado um poeta pelos meus mais chegados, e o que significava isso? Era mais ou menos a forma como eles esperavam que eu me comportasse: de maneira delicada e tacanha, com muita acidez e intensidade, de preferência com alguns rompantes dramáticos, mas sem perder a elegância. Eu, é claro, desempenhando o papel nos conformes do sistema, tentava negar tudo como um verdadeiro poeta, e dava os maiores vexames. Falava alto e cuspia, derrubava copos, chorava em ombros estranhos e, muitas vezes, entrava no sopapo por alguma divida de jogo – mesmo que eu nunca jogasse jogos de azar, pois sempre me pareceram redundantes.
Éramos na época alguns poucos amigos ainda. Havia os gêmeos, o diplomata e a “irmã mais velha”. Embora eu detestasse sinuca e não soubesse, por bondade, segurar um taco, ficava por ali, feito mosca varejeira, no balcão do boteco de fachada néon. Aquilo era um reduto de servidores públicos aposentados, punguistas com artrite e garotos de programa drogados demais, acompanhados de velhas viciadas ressequidas e vestidas com trapos, que dançavam até de manhã ao som de Jerry Adriani na juke box e seriam capazes de conversar contigo aos perdigotos sobre a crise dos mísseis em Cuba ou as crianças assassinadas da Chechênia. Aparentemente os motoristas de táxi eram os vendedores de cocaína que, por algum motivo secreto, também trocavam a droga por caixas leite. Os jogadores de sinuca mais velhos pareciam esconder alguma coisa quando olhavam para você.
Havia ali, como eu disse, uma juke box. Àquela altura da madrugada vocês podem imaginar o tipo de repertório. Basicamente música sertaneja e evangélica. Aquilo era bastante moderno. Um bar onde havia brigas freqüentes, onde uma vez vi um senhor de idade ser espancado por um selvagem de não mais que trinta anos com um soco inglês. Onde passavam droga e havia uma banca de apostas para os cavalinhos. E, basicamente, o que se ouvia lá dentro eram canções pregando esperança e boa ordem. Músicas de reabilitação e paz com Jeová. E que paz enlouquecida era aquela na qual vivíamos e de que tanto sinto falta?
Minha percepção das coisas ficava bastante afetada com a bebida e a fumaça. E era exatamente por isso que eu me sentia mais e mais perceptivo. Segurei uma das mesas de sinuca para os meus amigos, que estavam do lado de fora conversando sobre a passagem do tempo no cinema malaio. Então um senhor de certa idade se aproximou, com um olhar meio malandro, meio ordinário, e espremeu minha mão na mesa com a barriga, dura feito pedra.
- Meu bom jovem, você parece um rapaz loquaz – ele disse em seguida.
Tirei a mão debaixo da barriga dele e massageei cuidadosamente com a outra mão.
- O senhor percebe... A mesa já foi ocupada.
- Escuta, garoto, que tal ir lá colocar mais uma música, comprar um sorvete?
Havia uma cicatriz enorme atravessando o seu rosto e a unha do seu dedo mínimo era maior que as outras. Já haviam me dito uma vez para tomar cuidado com sujeitos com a unha do dedo mínimo maior que as outras.
- Tudo bem, mas o senhor vai jogar contra quem?
- Contra quem pagar – e me jogou uma ficha de música.
Você poderia ficar falando com um sujeito como este durante horas e ainda assim não saberia sobre o que ele está falando. Então resolvi aceitar a sugestão, apanhei a ficha no ar e pus para tocar uma música antiga que falava de crimes de amor e chuva. O velho levantou o chapéu na minha direção e disse:
- Nunca se esqueça, garoto: “a genialidade não anula a medula”.
Sorri de volta sem entender mais uma vez, pensando que talvez aquilo ficasse bom num poema do Manoel Bandeira (já que qualquer coisa ficava boa nos poemas do Manoel Bandeira), e fui até o balcão atrás do meu braço de ouro líquido. O que significava tudo aquilo? Aquela fumaça se esvaindo de vidas desmembradas em pequenos pedaços e aquelas mulheres com sinas definidas, emagrecidas pelo tempo. Aquelas pessoas que pareciam flutuar pelo mundo e que ninguém via. Não porque houvesse algo melhor para se ver. Mas justamente porque não havia algo melhor. Então não se via mais nada. Éramos pessoas aviltadas com problemas de insônia, cigarro após cigarro em becos sem saída, atrás de restos que nem os ratos haviam se dignado a aceitar. Éramos gritos entrevados enlaçados em espíritos penados, birras acumuladas em tempos de chuva forte, bocas mastigando bocas e ruminando algemas invisíveis em cubículos que diminuíam conforme os dias passavam. Não havia uma revolução ou uma guerra ou um partido ou um tirano ou uma ditadura em quem pudéssemos pendurar o cabide de uma culpa herdada, e que medisse nossos esforços. Vagávamos todos, imponderáveis, tolos, rumo a dias melhores, rumo a potes de ouro e duendes pegajosos. Dias melhores que nunca antes nem depois foram vistos desde que recebemos o peso da nossa tradição secular suplicante. Dias vivos apenas nas cores esmaecidas da nossa percepção deslocada.
Eu desenhava figuras geométricas no caderno. Antes havia feito um rapaz enforcado.
- Com licença, você é poeta, certo?
Olhei e vi um homem, melhor, um hominídeo com péssimo aspecto físico e semblante esquizofrênico, que parecia assim um poeta, por motivos óbvios. Uma flor na lapela e bafo. Não respondi nada. É o melhor modo de lidar com poetas. Então ele disse mais uma vez:
- Um poeta, muito bem... Vi logo que era... Pelo caderninho pautado.
- Olha, cara, eu só estava desenhando...
- Escuta bem: leia Rilke. É o maior poeta de todos. Leia Rilke antes e depois do banho. Leia Rilke na privada, durante as refeições, até no escuro, leia Rilke. Decore as elegias, afague seus anjos e suas esfinges, mas leia no original!
Ele mesmo não devia ler Rilke há muito tempo. Quando dizia mais uma vez “leia Rilke”, escorregou no que parecia ser o jantar devolvido de alguém, e tive que recolhê-lo. Coloquei o homem sentado num banco e ele imediatamente abraçou o balcão e pediu duas cervejas. Como um raio, se recompôs e serviu nossos copos. Não parecia comandar os próprios movimentos. Seus olhos tinham qualquer coisa de muito mal esclarecida. Tilintavam como gelo num copo de uísque. Pareciam mais próximos da origem das coisas que os olhos da maioria. Mas estavam próximos demais. Pareciam enlouquecidos justamente por isso.
Ele falava sem parar. Falou quase a noite toda sobre a métrica de Rilke, sobre como era necessário escrever poemas como quem esculpi uma pedra, e que eu deveria me preocupar com as cores de cada palavra ao compor versos. Ele dizia assim mesmo: “compor versos”. Parecia um sujeito muito antigo, mas não tinha ainda 30 anos.
Bebi muito na conta dele aquela noite. Meus amigos já haviam pagado as suas e as minhas e estavam saindo, quando eu disse que ia ficar, que tinha conhecido um poeta, um poeta de verdade, e que ele estava pagando as cervejas. Eu falava com uma ingenuidade pouco convincente, e nem eu mesmo acreditava em mim.
Meus amigos então foram embora e disseram para eu tomar cuidado. Ele que tome cuidado, eu disse, e apontei para o homem, que entornava todas no balcão. Sentei ao lado dele, ergui meu copo e disse com solenidade:
- Um brinde à poesia!
Sem me olhar ele disparou um tapa violento no meu copo, que estourou na parede. Os jogadores ergueram seus tacos, os bêbados acordaram, a garçonete molhou um cliente e a música repentinamente, como tudo naquela noite, acabou.
Os olhos do homem ficaram ainda mais vidrados, mas escureceram por dentro e em volta. Ele se curvou ainda mais no banco, como se espinhos lhe perfurassem a pele. Alguma coisa parecia perto de explodir dentro da sua cabeça. Alguma coisa que não era dele e também não me pertencia, mas que de alguma forma havia sido colocada entre nós. Ou a falta de muitas coisas. Ou tudo isso reunido. Seus olhos ficaram brancos e seu rosto, embotado.
Eu resolvi sacudi-lo pelos ombros e perguntei o que estava acontecendo, dando-lhe tapinhas na cara. Mas ninguém pergunta a um louco o que é a loucura esperando obter uma resposta coerente.
Ele apenas me olhou e disse, salivando pelos cantos da boca:
- Fique aqui. Não vá embora. Vou pegar um pouco de cocaína. Eu compro mais cerveja. A gente bebe lá em casa.
Então pensei, “foda-se Rilke”, e saí para vomitar na calçada. Depois fui para casa, poeticamente, e sonhei com frases coloridas.
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