31.12.06

“paixão das ruas”


versão 1

ela emerge do peito à noite vestida apenas
com seus sonhos e seus cílios venenosos,
ela que é a espuma do vento enegrecido
e foge por dentro do oco das entranhas
do amor que permanece, não estando salvo.
ela me deixa acordado, com olhos de cera,
no fio entre os fatos e suas ilhas suspensas.
à meia-noite me compõe versos satânicos,
ao amanhecer do dia, ossos caramelados.
ela que é tudo que passa dentro das bolsas,
por baixo das marquises do núcleo em pó.
cordilheira espiã de nossas noites agonizantes,
por que você, que é também minha assassina
(minha amante quando seu eco ganha as ruas),
não se digna ao menos a me dar um bom dia?


versão 2

ela emerge do peito da noite vestida apenas
(amor dos becos e das almas clandestinas)
com seus sonhos e seus cílios venenosos,
(vertigem de espuma no vento enegrecido)
e ela foge por dentro do oco das entranhas
do amor que permanece, não estando vivo.
ela que me dispersa com seus olhos de cera,
no fio entre os fatos e suas ilhas flamejantes.
à meia-noite, me compõe versos satânicos,
ao amanhecer, sou todo ossos caramelados.
ela que é tudo que passa dentro das valises,
por baixo das marquises do núcleo em transe.
cordilheira espiã das madrugadas agonizantes,
por que você, que é também minha assassina
(e minha amante quando ecoa pelas ruas),
não se digna ao menos a me dar uma surra
já que não posso alimentar essa leveza fria
da sensação que causa o toque do teu instante?

29.12.06

“três vezes nada mais um você”

você
matéria sem rumo
que sendo mulher
foi minha contra
concepção anárquica,
vergonha escondida
nas olarias venosas.
você
meu fim de estação
cuja flora intacta
reluz em meus erros
como seduz meu fim
a sede entre cismas,
a marcha dos cactos.
você
primeiro pigarro,
que apaga o cigarro
ciente do método
de dizer eu te amo
como em baforadas:
você minha fumaça,
você?

27.12.06

"amarelo para van gogh"

(campo de trigo com corvos, 1890)

o que não se funde não fere
a massa de tinta nos sonhos,
a ponte levadiça dos prismas.

tua arte era teu pavor químico
de alcançar o ponto mais cego
no cerne da dor e da aceitação.

e como estas são duas padronizações
sem conexão a não ser contingente,
então a princípio a arte não existe.

demônios decalcados no grito da noite,
tua loucura foi por excesso de bondade.

o mundo teve medo da tua alma amarela,
dos comedores de batata na escuridão,
das lâminas e das lágrimas de absinto,
do teu amor derretido na pele da luz.

tua idéia de arte funciona apenas nos
cérebros ébrios, do contrário mortos.
quando um sóbrio fala em ti ele viola
a saliva sobre tuas telas engolidas.

a vida é apenas uma palheta de cores,
a justiça dos homens, pincel quebrado.
“a tristeza durará para sempre”,
disseste a Theo com corvos nos ossos.

demônios decalcados no grito de sangue,
teu corpo insepulto é a lira dos mortos.

25.12.06

"Epitaph on a Tyrant" (W. H. Auden)



Perfection, of a kind, was what he was after,
And the poetry he invented was easy to understand;
He knew human folly like the back of his hand,
And was greatly interested in armies and fleets;
When he laughed, respectable senators burst with laughter,
And when he cried the little children died in the streets.

***

(abaixo, a tradução que eu fiz, tentando manter métrica e rima nos seus devidos lugares, ou seja, onde quis Auden).


"Epitáfio de um Tirano"

Perfeição, de um tipo, por isso ele esteve aqui,
E a poesia que ele criou era fácil de se entender;
Como a palma da mão conhecia toda a estupidez,
E teve muito interesse nos exércitos e nas esquadras;
Quando ria, respeitáveis senadores explodiam de tanto rir,
E quando chorava as criancinhas morriam pelas calçadas.

“pane no presépio”

hoje à noite uivo para a lua
enquanto faz sol lá fora.
mas lá fora não é lá fora,
o sol é um cigano fugitivo
e a lua usa maquiagem demais.

lá fora é menos que lá fora,
quilômetros de paraísos fiscais
na palma da solidão armada.

por ter me perdido muito cedo
acordei um lobo sem pressa:
matilha rábica na idéia fugidia.

hoje à noite uivo para a lua
enquanto faz sol lá fora.
mas lá fora não é lá fora,
o sol é uma lâmpada acesa
e não penso nos que precisam.

24.12.06

“roots bloody roots”

gigantescas expectativas
fulminadas por tardes
e pela necessidade inorgânica
de irresponsabilidade:
eis a raiz da esquizofrenia.

“só mais um deus refugiado”

Quando criança, um médico disse: “não há o que fazer, a alma parece descolada”. Sua mãe, refugiada vermelha como toda a sua família, reforçava o coro dos ausentes, e sua infância foi praticamente movida ao som da vela dos barquinhos de papel.

Quando dos primeiros fios de barba, tinha um cabelo esquisito a que chamava de “minha doce loucura”, e justificava dizendo que “ela se espalhava por todos os seus poros, como o cabelo, e principalmente nos poros da cabeça”. Reparou que tinha lágrimas metálicas, e seu choro era metálico, de som metálico. Disseram: “você devia tocar guitarra”. “Prefiro sopro”, ele disse, “mas, de qualquer forma, não tenho dinheiro”. Disseram: “Então pega uma, toca: se gostar, fica, se não gostar, devolve”. Então pediu a um camarada periférico que fizesse o serviço. Este mesmo camarada transava acid jazz e ácido lisérgico, e lançou mais um pupilo nas artes do prazer e do amor e, portanto, nos arremedos da dor.

Quando ouviu pela primeira vez Wes Montgomery tocar, tentou cortar fora a orelha numa atitude impulsiva a qual, depois, denominou “proximidade com o divino”, em referência ao conhecido caso do pintor holandês. Com Paco de Lucia o caso foi um pouco mais grave. Vestiu-se por meses como um hebreu, passou a falar numa outra língua, segundo muitos, fruto de sua imaginação e da sua poesia, mas era uma língua metálica, era um solo metálico, uma plantação vasta de sons metálicos, de árvores metálicas, pássaros de alumínio. Passou a falar como uma guitarra. Não se movia mais, ficava encostado num canto, alimentando poeira, apoiado numa cadeira como muitos violões esquecidos, com sua bata hebréia e suas alucinações de chumbo. Um dia piscou os olhos e disse alto: “o Siroco! Está chegando o Siroco!”. Então voltou a falar, mas só falava nisso: no Siroco, que chegaria do Saara para corroer as ruínas greco-romanas e sacudir os esqueletos dos fantasmas sanguessugas de almas.

Alguns o consideravam o maior guitarrista de todos os tempos, normalmente bêbados de coração sensível. Outros lhe atiravam moedas e o que nem os pombos se dignavam. Sapatos apressados passavam como facas de verniz. Mais uma tarde amarelava como o enjôo do sol. Ele tocou, tocou a tarde toda, tocou por um milênio, tocou como um dos grandes, então parou e guardou a chave do tempo no bolso com seus trapos e sua beleza. O tempo que não admite arestas ou gaiolas, o tempo metálico. Mas o primeiro médico tinha mesmo razão: a alma descolada. E o aplauso surdo das marquises se esfarelou na tensão constrangida pela admiração cósmica da poluição atmosférica pelos seus deuses de ferro.

22.12.06

“epifania noturna antes do incêndio”

Ao virar a página 84 do livro, sentiu calor e sono, era bolor e como que um entorpecimento de anestesia. Um sentir exagerado, os lábios inchados. Como um medo mortificante de finalmente entender sem precisar ponderar. Reparou que sangrava. Que diferenças têm o sangue e a vida? Era sua vida que escorria. Era o teto do quarto, claro de idéias, idéias selvagens, indomáveis, azuis e alaranjadas, e ela precisava escolher uma delas para flertar com ela até adormecer. Apanhou o caderno onde anotava suas paixões secretas, suas táticas miseráveis de aborrecimento. Anotou no papel:

O peso dos dias tem sido, não, não há didatismo aqui, não aqui, o didatismo é apenas uma forma de reconhecer a verdade quando se precisa – para forjar um cume, ou um crime – de um vasto continente de cismas tectônicas. Falemos então o que não é verdade, o que não é nada senão uma potência fugidia e desequilibrada. Escrevamos um texto leve hoje, eu junto àqueles por quem fui designada “aos prazeres e às dores”, aqueles que me comandam quando a alma esvazia a carne, e nada mais existe para que tudo possa ser vislumbrado e silenciado pela falta de sentido e pela paz.

Olhar muito tempo para uma coisa significa fazer desaparecer a coisa, tornar-se a própria coisa. Eis a raiz da fragmentação dos corpos, da fusão dos mesmos e, em suma, do tele-transporte das almas, a que damos a denominação precária de amor; para outros, visão. Mas poucos entendem o amor que existe por baixo de todas as cascas do amor. Eu mesma entendo somente as cascas do amor. Mas conheço quem descascou o amor até se tornar o amor e, portanto, sem se reconhecer como tal, ser reconhecido por aqueles em quem se refletia. São os agentes de Clarice Lispector que esvaziam minhas gavetas de madrugada.

Mas este é um texto leve, pretensioso, fadado portanto a alguma expectativa de retorno da parte que me escreve nas vértebras, e é por pensar na minha pessoalidade que eu me confundo com os espelhos nas ruas, tropeço e largo a linha fictícia da minha realidade singular de dor e prazer, e transbordo o amor que carreguei como um camelo por desertos sorridentes de ódio. Estava tudo bem claro: “sou mais aquilo que em mim não é”, o amor esse indizível, sem cascas, irreconhecível, impessoal, o amor que é a maldição de quem ousou fazer dele moeda de troca, pobres corsários! O amor que não é feito de reconhecimento ou troca. O amor que é o amor e meio. O amor que é leve como o fim.

Vela-cortina-chamas, por traz da grama prateada, os olhos injetados de um terreno seco, em fundo vangoghiano a mão enrugada de quem um dia soube, agarrada à cauda dos sonhos com um lápis de ponta quebrada.

“cê caê caô”

cantava-se em coro, meninas in vitro:

“odeeeeeeeio você!”

viam-se os tímpanos, manifestação costeleta.

“não, não sei, não odeio, não se diz isso, não em música...”

“mas Caetano...”

“ele devia amar!”

mais de mil olhos de fogo com lanças para cima:

“odeeeeeeeio você!”

quando o assunto escorre e a pessoa é querida, somos como adolescentes antes da ferida – depois? – vamos conversar como cidadãos inaptos e sensíveis, mas conversar sobre o quê?

“oi” – olha para um, cumprimenta outro – “eu detesto (outra pessoa com olhos) gente arrogante”.

“sei...”

“você gosta?”

“de quê?”

“gente arrogante...”

“sou neutro”.

“como, neutro?”

“gente arrogante o tempo todo, você também, eu, todo mundo... eu penso: perdi a vontade”.

“então você é mais evoluído”.

você é”.

“quando o Caetano canta que odeia alguém como refrão, ele quer só esvaziar”.

“uma coisa é o Caetano esvaziar...”

“sim”.

“outra coisa sou eu te odiar... isso enche”.

“é brincadeira... metáfora moderna”.

“me preocupa o fato de eu não conseguir mais detestar a arrogância. acho que minha arrogância chegou a esse ponto”.

“odeeeeeeeio você!”

sobe som. morrem todos, não de amor.

“acasalamento”

- você quer amendoim?

(a conversa sobre algo mal-formulado sobre como convencer a frustração da existência de si própria a si próprio e ao mesmo tempo falar sobre arte com sobrancelhas e líquidos azuis).

(tomorrow is a long time, esta música, ou minha falha, é tua falta, falsa Juca).

- me disseram que você vendia maconha ali na sinuca do Boteco-taco.

- acho que ninguém conseguirá ver a chuva pesada como Dylan...

(fungindo do assunto ou o assunto fugindo?)

- você vende maconha afinal?

(dente cinza prateado para ser cor de prata, assim como eu sou prateado para ser prata da casa, se por prática estiver num círculo prateado de intenções convulsas).

- vim te conto, boldo ali do Manguinho...

- espera...

(...)

- tem vinte aqui... agora conta.

- leva e vê no banheiro.

- o tamanho?

- quanto tem.

(...)

- sei que tu precisa, mas eu não sou otário.

(como careca, mãos na cintura, pelas ancas).

- e aquela vagabunda?

“perdi meu caderno de anotações”

envelhecer é ainda
o único paradigma
o que prova
que evoluímos pouco
e a coragem é uma lenda.

21.12.06

“condenação de um solitário”

por que será que quando vêem uma pessoa sozinha, as outras pessoas, em grupo, tendem a achar que ela precisa de ajuda? os solitário normalmente são vistos como se olha para um sujeito com mau-hálito. é alguém que passa e deixa um rastro de putrefação. são confundidos freqüentemente com bichas enrustidas, maníacos depravados, loucos sem solução, casos perdidos da medicina e das teorias pré-colombianas, isso porque seu silêncio é atroz, sua distância assassina quem teme a escuridão. os solitários são as vírgulas nas frases do mundo. e para isso não há perdão. a guilhotina diária há de revogar nossos capuzes empapados de segredos.

20.12.06

"décimo quinto andar" (Ana Fonseca)

os meninos dos telhados fumando cigarros, tirando a roupa já que não gritam com a mãe, bebendo a pinga dos trabalhos que não fizeram pra faculdade, olhando a cidade só pra eles, ao contrário das meninas que nunca se entregam. uma hora e meia que ninguém se importa onde eles possam ter se escondido, algo entre o término da aula e o jantar. Um lance de escada a partir do último andar, e eles são os reis que sempre foram, sem a opressão das mesquinharias constantes. esforço tão grande de tornar medíocre essa vida de que te falo. tem que ser muito passional pra saber viver das entrelinhas.

“não deixe cair”

com a tese dos homens num saco,
pelo parapeito da janela me passam:
uma nuvem branca, incerta como eu
e a seguinte idéia: “não deixe cair”.

não quero a calma espumante
nem a divergência das cruzes.
não me contento em ser todos
para ser eu mesmo (nenhum).

prefiro não tentar ser eu mesmo
(todos) os que sofrem pelo banal,
pelo banal irrevogavelmente seu,
seu sofrimento, seu amor escuro,
suas gotas venenosas de esperança,
que passam como a nuvem branca
pela noite sangrenta, pela noite aberta,
sobre as cabeças mais atentas e (in)certas.

19.12.06

“feminista”


a novíssima poesia
é toda feminina.
feita por mulheres
e algumas meninas
que parecem tratar
questões de sexo ou credo
como questões ultrapassadas.
e destilam um purê de sensações,
usam e abusam de cigarros e ângulos
e adoram a expressão quiçá.

seus aforismos gestuais,
suas sílabas de chás das cinco
esse jeito arrastado de identificar,
de escorrer olheiras pelas veias.

a novíssima poesia
de rir de ti mas ao teu lado,
feita de gestos entrevados,
feita dos mal-entendidos da morte
e da necessidade mortal de vida.
esses raios de placenta e rímel,
essas unhas em cores fortes –
e as conversas íntimas da carne.

ah, novíssima poesia!
poesia feminina...
o couro dos tempos
será teu leito.

“Infâmia”

Quando um homem fica velho
nem sempre é quando ele tem idade
Às vezes é quando ele não tem muita
outras vezes é quando sabemos quem somos
quando dizemos aos outros: eu sei quem sou

Ou quando passamos a pensar em nós de fora

Ser velho é perder o tato com o medo
ser velho é semear angústias transgênicas
ser velho é acreditar nos contornos do espelho
É quando os olhos fazem maquiagem nas flores da face
não por elas serem velhas, infames, cheias de pêlos
mas por elas serem um sonho que descolou do precipício

O tempo sabe quem sou e porque sou e isso me envelhece
Saber quem somos serve apenas para os vermes
que – estes sim – têm certeza absoluta.

18.12.06

“Erro 404”

você quer ligar?
pode ser agora
ou eu te dou meu tel
e quando você quiser
então você me liga...
assim, meio de surpresa...
então toda vez que tocar o tel
eu vacilo um pouco, inclino a cabeça
e penso num assunto, mesmo sabendo
que não vai adiantar nada.

"o gênio na multidão"

The genius of the crowd, by Charles Bukowski

16.12.06

"enquanto o seu lobo não vem”

Parque da Redenção, Porto Alegre – mas nem tanto – tarde sem sol.

Aqui estão os punks sem gestação, os rapazes republicanos que põem fogo nas gargalhadas sem fôlego para uma vela de sétimo dia, as barbas assustadas e pedófilas, submersas em capas de vinil, as meninas tristes como trapos de maquiagem e coquetéis químicos, estampadas em lágrimas de sépia, os garotinhos tristes em dúvida sem dúvida lambuzados de batom sonhando com Ziggy Stardust e morrendo nos pêlos da grama fugidia. Aqui estão os meninos trêmulos e descolados ancorados nos seus calções de basquete e com bolas rodando nas pontas dos dedos, as meninas ainda desconfortáveis com seus peitos recentes e seus colares de espinho. Aqui estão as fezes da transição (contra-revolucionária? quem saberá dizer?). Aqui estão libélulas suicidas calçando tênis all-star de cano longo, varejeiras em saltos ornamentais para o futuro numa estalactite, os ligeiros instantes sombrios seguidos pelo vendaval violentado até levantar o chão de saibro ou terra batida sobre as caras das pessoas abatidas por saberem o que não querem saber e não saberem o que precisam saber, de modo que choram diante das luzes inconstantes e das estátuas cansadas, todas enclausuradas nas próprias equações para um mundo novo consciente e ao mesmo tempo cheio de ternuras e abismos. Aqui estão as velhas teorias vestidas com roupas velhas para parecerem novas quando deveriam estar nuas, vestidas apenas com olhos d’água.
E fico depois horas pensando se é para o meu consolo que vejo por último o busto com abas sulfúreas de Alberto Santos Dumont – logo a frente uma roda de capoeira inaugura mais uma cláusula social.

“Pântano Frágil”

Ninguém quer cuidar do garoto indefeso,
Dylan talvez diria em sua falsa entonação.
Me apaixonei pela fagulha do desprezo,
pela menina que sabia ser tinta como eu.

Toda lady e ruína para os braços do adeus,
mas não há deus suficiente que nos baste.
Levanto ainda frio do tumulo, satisfeito: frágil

enquanto a morte se levanta muito bonita ao lado,
para regar minhas entranhas, meu pátio: pântano.

15.12.06

“no ponto de ônibus”

verdade

- você diz sempre a verdade?
- de qualquer modo eu diria que sim.

gripe

- sempre que eu me gripo meu nariz fica um saco.
- engraçado, sempre que eu me gripo meu nariz continua um nariz.

frases

- há frases ridículas quando ditas aos vinte e poucos anos...
- esta, por exemplo?

14.12.06

“o fim da poesia”

Pela primeira vez na vida
vi ao vivo o Grandioso Poeta
cujos versos, dizia-se por aí,
se não foram escritos na água,
eram a própria água em linha.

Isso foi no dia dos pais
e eu estava com o meu
almoçando no Bar Lamas.

Ele me dizia qualquer coisa
sobre nos aproximarmos mais mas
meus olhos discretamente vidrados
na mesa ao lado onde o poeta estava
sentado em curva, mudo, olhando para baixo
distante enquanto ao seu lado
uma senhora hesitante metida num conjunto estampado
(colar de pérolas apertado no pescoço de pato)
tomava uma sopa com pedaços boiando dentro
(onde estavam os olhos do poeta?).

Outra mais moça também os acompanhava
– afinal, tudo se passava no dia dos pais –
vestida com roupas pretas em estilo gótico
cheia de brincos espalhados pelo rosto,
os cabelos da cor de uma falsa laranja,
falava alto no telefone celular e tinha olheiras,
em frente a um embrulho de papel celofane.

Então eu me virei, dei um abraço no meu pai
e disse: “acho que precisamos nos aproximar”.

12.12.06

“a morte quase banal de um homem quase comum”

um homem sentado na escuridão do seu pijama
enquanto a morte se atrasa mas espreita pelas cortinas
através de olhos de festim como pústulas envelhecidas.

e o homem sentado sobre o genuflexório da sua alma
espera a morte na cama tal qual catarata noturna
que se atrasa sorrindo em sangue entre os dentes
conforme a louca suicida disse às pedras portuguesas.

o homem transpira pensamentos incompletos sobre seres completos
(seres ausentes ou, ao menos, seres incompletos com astúcia)
enquanto luas e estrelas esparramam-se sobre seu calção frouxo
e de seus dedos brotam as sempre reticentes palavras de formol.

o homem então se vira, pede licença à areia dentro dos olhos
e toma um gole nauseabundo do seu suco de uva reumático,
pensando em artroses e desavenças passadas em panos de prato sujos
sobre a mesa esquecida no dia de ação de graças.

o homem toma o suco diretamente da caixa
e recorda-se de uma vagina toda raspada,
de outros tempos como se fossem outras vidas,
pensa no poeta que morreu de “insulto cerebral” e em seguida
lembra do momento mais penoso do seu último dia,
quando, além dele, duas pessoas foram hipócritas e educadas,
sorridentes ao mesmo tempo no vácuo fúnebre do elevador de porta pantográfica
como os dentes que ficaram de herança para os germes dentro do copo d’água
tais quais hienas invisíveis, indiferentes à noite que jamais terminaria aurora.

“ergométrica”

obter o original
em sua cara metade
(máscara)
através do esboço forjado
evitar a calma
(pressa)
na suspeição
do que te causa frio
(fogo)
interessar-se
pelo momento negado
(vivo)
como o amigo
que você nunca foi
(deus?)
tudo se vê
quando não se vê nada
(deus!)
e isso, apesar
de antiquário passivo
(insuperável)
é muito mais simples
se o diabo for deus
(exilado).

11.12.06

"uma mudança no tempo do coração" (Dylan Thomas)


Uma mudança no tempo do coração
Resseca-lhe a umidade; um estampido dourado
Ecoa na tumba glacial.
Uma mudança no território das veias
Transforma a noite em dia; o reflexo solar do sangue
Ilumina os vermes ainda vivos.

Uma mudança nos olhos dissimula
Os ossos da cegueira; e o ventre
Mergulha na morte como a transpiração da vida.

A escuridão no tempo dos olhos
É a metade de sua luz; o mar profundo
Irrompe numa terra sem peixes.
A semente que dos flancos engendra uma floresta
Divide ao meio o seu fruto, e a metade
Goteja devagar no vento adormecido.

O tempo da carne e dos ossos
Torna-se úmido e seco; o vivo e o morto
Se movem como dois espectros diante dos olhos.
Uma mudança no tempo do mundo
Transforma um espectro no outro; cada criança
No útero da mãe repousa em sua dupla sombra.
Uma mudança arrasta a lua para o sol,
Caem da pele as cortinas em farrapos;
E o coração renuncia aos proprios mortos.

(tradução Ivan Junqueira)

"pint for dylan"

houve uma época, um garoto de cabelos loucos,
uma avenida feita com os paralelepípedos dos sonhos
– hoje feita de feridas – em que eu me embebedava à luz do dia
e meus olhos podiam perfurar os olhos cegos da azia do mundo
e eu andava nessa época, andava encurvado pelo vento eterno
com dylan thomas debaixo do braço, seus versos injetados como ácido
no sabor de minhas imagens fratricidas, de meus cigarros imaginários
– "em meu ofício ou arte taciturna", eu queria ser como aquele poema.

era uma época, eram frases de amor, casacos de veludo, cenhos etílicos,
hoje busto adormecido no silêncio da estante, apesar de ontem, nada mais
como antes, quando os rastros eram nus e eu ainda podia olhar para o céu
e ver a fumaça opiácea do cigarro de deus se transformar em promessa.

10.12.06

"Por te falar eu te assustarei e te perderei.
Mas se eu não falar eu me perderei,
e por me perder eu te perderia".

(A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector)

8.12.06

“elegia de olhos grandes e calmos, assustados”

você que me embala pela nuca com sonhos de espuma e precipício
você que me diz não e some depois que o padre diz amém à morte
você que a lua esconde de mim através da maquiagem de puta velha
você que se mantém líquida em corpo entre minhas unhas incoerentes
você minha brotoeja em desespero de verão, você risada em frangalhos
quem é você senão tentativa infinita de voltar ao começo e achar saída?

quando entro na sala das lágrimas de festim
e não há porta atrás de mim, atrás de nós
(você minha exata inaptidão mais real)
porque os engasgos são as únicas portas
escancaradas como a arcada dos crucifixos...

7.12.06

“camara escura”

existe um filme
que eu vejo desde criança.

olhando a linha do horizonte deprimido
espero diariamente por este filme,
respondo suas preces matinais,
suas recomendações subliminares.

é o filme da morte mas não estamos com pressa.
é o filme da esquizofrenia humana mas me dêem as pílulas.
um filme sobre granizos de moral em cascatas moribundas.
o filme das religiosidades dominicais tanto quanto cadavéricas.
o filme dos pecados e das percianas empenadas
e do jato de vidro sobre a primavera esquecida.

este é o filme da extremidade e não da conjunção.
uma folha seca ritmada pela nuvem de passagem escurecida.
o filme sobre a mão estendida que geme por trás dos escombros
– à espera de abajures e dignidades constantes –
e faz uso de ícones indeterminados de ilusão e paz
para me manter de pé diante do salto azul,
a mão distante do mapa do arco-da-velha,
mas dentro desse eterno filme de época:
“o desespero de precisar ser meu próprio parâmetro”.

“Fusca Bar”

- O Tchekhov é o escritor que eu li que tem maior intimidade com a natureza.
- Que tipo de intimidade?
- Sexual.

“mea culpa”

tonto sem desafios
crina sem égua no cio
louco sem bar;
o que talvez desafie
essa eterna vontade
de amar sobretudo os olhos
que só se protegem com lágrimas
mas no fim das contas
como sempre (como séculos)
tudo que existe desaparece
diante do apetite da página.

“classe-média-alta”

o sal que vai sobre o saquê
quando já se está bêbado e distante
é como o sal que vai sobre o vidro
quando não se vêem as crianças.

“ladainha”

Uma pessoa imbecil
que se comporta como uma pessoa imbecil
não passa de uma pessoa imbecil

Agora...

Uma pessoa atenta
que se comporta como uma pessoa imbecil e atenta
para se infiltrar no mundo das pessoas imbecis
pode ser o que bem quiser.

“falação & felação”

Acontece que aquela famosa máxima do Rei Roberto Carlos – “eu tenho tanto pra lhe falar / mas com palavras não sei dizer” – não passa, infelizmente, na maioria dos casos, de uma grande cascata. Uma forma cínica de camuflar a falta de emoção com lirismo barato. Sei muito bem que alguns amigos e muitas donas de casa me julgariam mal por isso, mas não é possível ceder, depois de pensar com um pouco mais de atenção; seria vergonhoso, apesar de fácil.

Mas o que ocorre de fato é que, quase sempre, há muito pouco para se falar e menos palavras ainda para se dizer. Mas existe a vontade, esse dragão sem garganta, essa louca vontade de mergulhar na superfície, de encontrar um espelho indiferente, uma cápsula para a beleza com a qual até os livos já se aborreceram, e que portanto tornou-se anacrônica e teatral.

Talvez seja por isso que Roberto Carlos atinja em cheio os corações enregelados das melancólicas donas de casa, bonitas na sua tristeza roxa debaixo dos olhos, prateadas de perdão, debruçadas em sonhos fadados e pilhas de roupas sujas, que elas lavam desde o começo dos temos, enquanto o outro lado sente que não vale mais a pena deixar de se enganar.

3.12.06

"uma questão de gênero"

decepados,
os versos são o de menos.
o poema é aquela verdade
intransigente e mentirosa
encravada de maré escura
escrita pela própria língua
que o lê
sendo que
ela nega
perspectivamente o poema
tal qual o homem de gravata
acorda para navegar a morte
através de cifras mitológicas
e cabeças roxas de meninos,
decepadas.