24.11.11

"Gift" (Leonard Cohen)





You tell me that silence
Is nearer to peace than poems
But if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
You would say
This is not silence
This is another poem

And you would hand it back to me

*** tradução Camila Moura ***

“Dom”

Você me diz que o silêncio
É mais próximo à paz que poemas
Mas se por meu dom
Eu trouxe silêncio a ti
(pois eu sei o silêncio)
Você diria
Isto não é silêncio
Isto é outro poema
E você o estenderia de volta a mim

22.11.11

"pelas manhãs, voltei a correr"

sabe, querida, pelas manhãs voltei a correr.
sinto de novo o amor a me catar pelos pés,
então outra vez eu me lanço e me distancio.
mas corro só um pouco, apenas o suficiente
para transpirar e saber o que de mim escorre
para longe do amor e, é claro, longe de mim.
mas volto sem amor e acendo então o cigarro,
pois no fundo quero a Síndrome de Estocolmo,
ser pego pelo algoz e viver em seus domínios.
outro dia quase fui atropelado por uma dessas
carroças velhas que falam e ela te viu do outro
lado da rua, com o beijo que te mandei no ar,
e então ela disse: “o amor é tal qual a porra”,
e pensei: o que ela fará quando eu for mesmo
atropelado e cair sem forças, atingido por ele
em cheio, te juro que pensei: “o que ela fará?”
virá até mim rodriguianamente, como quem
chora por tudo o que não fez em meus braços,
ou virá tal qual Iago, para dar a facada amiga?

19.11.11

"o talento não pode esperar"

para Julia Mendes

mate minha saudade, ou então mate-me.

apareça desleixada, de calção de futebol,
sorriso e óculos, um doce Rimbaud de rua,
e tire-me da fila do supermercado.

quebre a minha prateleira de livros,
rasgue as minhas páginas,
cuspa com delicadeza as minhas convicções.

quero teus cabelos espetados no meu queixo
e um beijo roubado na loja de conveniência.

quero a pergunta dos teus olhos verdes,
com ou sem vinho, ser teu Baudelaire.

mas venha logo: o talento não pode esperar.

15.11.11

"o axioma de baudelaire"

a bicha é presa
por andar entre bichas.

o dândi não o é
por andar entre putas.

DIÁRIO DE BORDO (Jorge Sousa Braga)

Mãe
hoje abriu-se uma janela pela primeira vez
mas tudo o que pudeste ver foi um pequeno lago de águas
adormecidas,
rodeado por margens de areia brilhante
um pequeno lago alimentado por inúmeros afluentes

Mãe
passou uma semana e o meu minúsculo coração agita já as águas desse
lago
Estou agarrado à margem vejo ao longe uma pequena bóia
mas o medo impede-me de me afastar

Mãe
porque é que andas tão enjoada?
Passas a vida a correr para o quarto de banho
Não toleras o cheiro a fritos nem o after-chave do pai
Espero que não enjoes do cheiro a jasmim

Por favor não me confundam com um girino
Embora não tenha nada contra as rãs
e muito menos contra as libélulas que povoam os outros lagos

Mãe
estou a ficar velho
disseram-me que já deixei de ser embrião
Mediram-me a translucência da nuca
e eu aproveitei para realizar algumas pequenas acrobacias

Hoje fiquei finalmente a saber que tinha ventrículos pulmões
estômago e uma série de coisas mais
incluindo uns grandes lábios que quase pareciam bolsas escrotais
E eu pensava que aquilo que tinha entre as pernas era uma rosa

Mãe
Porque é que meu coração bate tão acelerado?
Por mais que tente não consigo sincronizá-lo com o teu

Mãe
Só conheço a cor do crepúsculo
Estou morto por conhecer as outras cores do arco-íris

Mãe
Hoje surprendi-te quando te olhavas nua ao espelho
as mãos sobre o púbis segurando a barriga enorme

Mãe
Às vezes os dias são um pouco monótonos
de forma que entretive a fazer nós com o cordão umbilical

Mãe
Estás com umas olheiras enormes
Pelos vistos não te deixei dormir
Passei a noite toda a deambular pelos recantos mais sinuosos do teu
útero
a ver se descobria alguma água-marinha

Mãe
Podias ter colocado alguns peixinhos no líquido amniótico
Já agora um beta e alguns escalares
E porque não alguns nenúfares?

Mãe
Apetecia-me uma bebida diferente
que não a minha dose diária de urina

Mãe
Esta noite tive um pesadelo horrível
Sonhei que te tinham cortado os mamilos
com uma lâmina de bisturi

Mãe
Apetecia-me chorar
mas é difícil chorar assim debaixo de água

Mãe
O que está a acontecer?
O teu útero começou a contrair-se
e as contracções vão-se tornando cada vez mais freqüentes

Mãe
O que é que eu fiz
para me expulsares desta maneira?

Mãe
A distância entre mim e ti
não se mede em centímetros mas em lilases

12.11.11

"balada imperdoável"

somos o que podemos ser e não podemos
tempos fechaduras para a chave do medo
asfixiados os corações pelas artérias azuis
correntes literárias em bicicletas mujiques
a palavra prêmio virá do impossível passo
nosso pódio será idílio de anões circenses
taxistas falam nossa doença a vinte pratas
o torcicolo de deus inaugura a paz humana
as impossibilidades fazem crescer os cílios
o amanhã pertence a latas e trilhas extintas
pintaremos quadros com sorrisos de baleia
latem cães na madrugada de meus líquidos
escorrem édipos pelas ventosas do silêncio
tumores desabrocham no ouvido do suspiro
o livro da consciência gera o pelo da fome
roubaram da Terra a sua caixa de temperos
as têmporas embrulham o tifo da vontade
coleciono guimbas no chão de minh’alma.

escorre um western dos meus cotovelos
vejo passar a sorte com cachecol e bafo
sentidos enfraquecem a solução do ânus
penso em ti com tentáculos em febre alta
somos lilases dentro dos olhos da falácia
carinhos sempiternos são apenas difíceis
resta tempo para que não reste mais nada
as testas têm dobras de identidade usual
poemas alicates inflamam sisos de paixão
rodarei já que o amor usa bota ortopédica
há um mambo de trejeitos no osso da paz
com galocha espero a chuva da ocupação
é sair para falar, sentir o sorriso nas costas
a paciência caolha bebe uísque em Dublin
penetramos sem capa a chuva de pus ralo
um charme de esgoto faz a vênia ao cego
gangrenas de orquídeas onde ecoa o hino
ao sul de tua sorte há gânglios de veludo.

7.11.11

"flamenco"

com lâminas na tábua de precisão vermelha,
bocas do intestino apaixonam-se por Carolla.

quadros de Goya ferem minha região pélvica.

gotas de desaparecimento inundam de beleza
o que não está dentro ou fora, mas a caminho.

é rasgar-me na vergonha envelhecida do susto.

graves olheiras do meu destino chulo de ironia,
deixem que eu faça deste lindo pavor uns versos,
ou mesmo que eu morra de amor mais outra vez,
sabendo que não posso mais, outra vez eu morra.

coisa antiga de mim, com o seio perfurado por aço,
deixe que eu fique e durma ainda e mais um pouco,
até um pouco mais tarde seja a selvageria cintilante,
berço triste de artifícios que não me deixam morrer.

22.10.11

"pneumonia"




1. primeiras conclusões

tudo bem, hoje não será tão bravio nem com tanta veemência,
hoje direi que tenho medo e meu lirismo nada mais é que puro pavor
de reconhecer-me inábil até os ossos, de não me reconhecer de fato
alguém constituído de um centro nerval onde quer que esteja e devo
admitir com simplicidade que talvez eu reconheça em pânico
que não sei se algum dia chegarei a alcançar esse tal centro nerval
onde supostamente eu deveria estar em corpo e alma e todo ar
sendo apenas eu mesmo como um eu especial e um eu comum,
já que todas as pessoas com quem eu falo, por mais problemas
que tenham elas possuem isso que talvez seja uma identidade
e eu talvez não aceite ter uma identidade porque tenha medo
de envelhecer dentro dessa identidade, talvez por isso, agora,
aos prantos deverei confessar acima de tudo a mim mesmo:
sou incompleto, sem pedaço, e não carente do que não conheço
e que poderia me inspirar a vida ainda que em forma de ilusão,
e penso que talvez esse medo venha mesmo do fato
de que eu não saberia viver sem ilusão, mas sei bem
que a minha ilusão é só minha, fui eu que a inventei,
seja com vinho demais, confusões amorosas demais, problemas
emocionais cujas origens eu sei que elas existem e de onde vêm,
mas não me lembro como é o lugar de onde vêm, e a saúde
está por um fio com essa tosse de duas semanas, e com esses cigarros
intermináveis num clima quente e frio e muito eficaz todo o tempo
em me manter desconfortável e tísico porque uma das coisas
que apesar do medo, esse medo sem chão que vai me dando
de pensar que um dia, se vier a saber quem sou, de que matéria estranha
e tão pouco especial pode ser feito um homem assim, se existe
algum parâmetro assim para alguém que senta e espera a morte
se arriscando ao máximo e daí vem o medo, esse medo pavoroso
de que algo exploda de uma vez na cadeia desse pânico que, no fim,
é minha única unidade emotiva, minha catástrofe de que sei a chegada
surda, elegante e sem estrondo que sinto se aproximar e que espero
com ansiedade de criança, mas que, conforme sinto as patas dos anos
em minhas costas já condenadas por trabalhos estúpidos onde, ao menos,
encontro pessoas estúpidas como eu e muitas também com medo,
conforme sinto o peso das patas, o medo recua um pouco, respiro ainda,
e no fim das contas penso: descobre-se com murros e mais nada
que as pessoas estúpidas também podem ter entre si um laço
absolutamente particular de misturar medo e amor e penso:
além das minhas costas, dos meus pés feridos, do meu peito infantil,
preciso também dessas pessoas estúpidas como eu, e isso eu sei,
ou nem isso, meu medo é isso, essa doença de entrega punitiva,
protegida pela medieval couraça de um litoral bandido e prognata,
uma terra de ninguém, e que destrói e canta aos defuntos pouco heroicos
e aos punhos em carne viva de nosso herói encurralado, esquecido, maior,
e agora seria melhor ter cortinas vermelhas que, como numa peça russa,
nos levasse de volta à casa calados e pensativos, porque no fundo
sabemos que todos temos medo, que poucos dão as mãos e muitos dão
com enojada discrição, mas agora não é possível generalizar e dizer “nós!”,
hoje não será homérico nem tão pouco lírico, o ideal seria que fosse
possível apenas imaginar um homem em certo estado de desespero,
mas um homem ainda vivo, percebe-se facilmente pelas constantes
escoriações púrpuras nas paredes do tédio urbano, de joelhos, sim,
desde cedo confundindo coragem e pavor cego, ainda assim unido
a si mesmo pelo escoar do último fôlego e a caixa torácica arreganhada,
e no fundo também, acima de tudo, se perguntando: há mais alguém?


2. diário de um delírio


Henry Miller à tarde, braço dormente, sopa de feijão, água quente com sal, medo da sífilis, da gravidez improvisada, do amor, cigarros escondidos na varanda, crianças arruaceiras, colegiais com saias curtas de uniforme, buracos nas almas dos amantes, olhos fixos voltados para trás, elegias para as muitas mortes, uma lágrima para cada flor no escuro, pentear, tal Pacino, os cabelos para trás, forjar um charuto, um chapéu, uma bela capa, um pintor, vestir-se como um pintor, casaco de lã crespa, botões desleixados, apaixonar-se por si, cabelos, pensar nos cabelos, massagear o que sobrou dos cabelos, amá-los em sua ausência, chorar um pouco, pensar no pai, nos antepassados da mãe, porres de avô com Lupicínio, um bife à cavala, olhar as luzes pobres, olhar os passantes, charmoso e cavalheiresco ar tísico, maravilhas de Hans Castorp, muito bem, o último cigarro avulso na banca, uma despedida formal, aqui abdico de ti, ó desregrada vida própria, queiram entrar ambroxol, levofloxacino, bamifix, sulfato de salbutamol, budesonida amada, que bom vê-la, por favor, tenham a gentileza de levar este senhor, arruinou-se, façam o favor, Anna Magnani, Mickey Rourke, Bill Murray, flores do mal de meus pulmões, incêndios nos meus sonhos suados, mosquitos em minhas sensações, adornar-se para a grande ida, devorar-se em milênios de elucubrações, um pouco mais de Miller, tentar melhor o abraço do intestino, esperar a febre, Clint Eastwood, compaixão fraternal pelo time de futebol do Botafogo, entender talvez com frágil doçura as frases feitas de nossas origens, por um momento de alucinação, vide bula, recordar a antiga namorada e escrever um poema de amor, escorrem verdes meus peixes lutadores, à noite rezar a deus e levantar minutos adiantado para a coleta de urina.


3. a última hospedeira

peço-te que, se vieres, chegues alegre e de mansinho,
chegues talvez fora de hora, longe do combinado,
isso não me preocupa, mas chegues sorridente,
ao menos uma vez, depois de tantas vezes em que chegaste arrasadora,
de cara fechada, empurrando e ofendendo sem motivo,
chegues hoje pequenina, chegues com chapéu na mão,
faças uma reverência, senão por merecimento dispensado,
ao menos por antiguidade, por seres a minha mais antiga presença,
passes um batom intenso, não me importa, descabeles um pouco,
se for totalmente necessário, as madeixas do teu veneno único,
apenas não te esqueças de cantarolar alguma coisa em francês,
ou então qualquer música leve assobiada com ardor.

que chegues elegante ainda que jovem, minha preciosa,
petulante amiga, chegues sem rima ou qualquer enganação profana,
não precisamos de etiquetas agora, nunca mais precisaremos,
sejamos apenas um bom casal que se separou por muito tempo
e agora planeja voltar a morar junto, em quartos separados.

posso te esperar até mesmo sentando, vestindo terno,
de pernas cruzadas esperarei com charutos para nós dois,
arrastarei para que sentes a cadeira do meu corpo tombado,
e tu te sentarás sem muitas palavras, mas sempre sorridente
e sutil e feroz como Anna Magnani tu embalarás meu sono,
e eu serei teu novo escudo, eu serei tua bellissima creatura.

20.10.11

“the wine of forever” (C. Bukowski)



re-reading some of Fante's
The wine of Youth
in bed
this mid-afternoon
my big cat
BEAKER
asleep beside
me.

the writing of some
men
is like a vast bridge
that carries you
over
the many things
that claw and tear.

Fante's pure and magic
emotions
hang on the simples
clean
line.

that this man died
one of the slowest and
most horrible deaths
that I ever witnessed or
heard
about...

the gods play no
favorites.

I put the book down
beside me.

book on one side,
cat on the
other...

John, meeting you,
even the way it
was was the event of my
life. I can't say
I would have died for
you, I couldn't have handled
it that well.

but it was good to see you
again
this
afternoon.


*** trad. leo marona ***


“o vinho da eternidade”

relendo um pouco de Fante,
O Vinho da Juventude,
na cama
nesse meio de tarde,
meu gato gordo
BEAKER
dormindo ao meu
lado.

a escrita de alguns
homens
é como vasta ponte
que leva você
através
das muitas coisas
que agarram e rasgam.

de Fante a pura e mágica
emoção
se atém à simples
limpa
linha.

e este homem morreu
uma das mais lentas e
mais horríveis mortes
que eu jamais testemunhei
ou ouvi
falar....

deuses não escolhem
favoritos.

ponho o livro no chão
ao meu lado.

livro de um lado,
gato do
outro...

John, conhecer você,
mesmo do jeito que
foi foi o evento da minha
vida. não posso dizer
que eu morreria por
você, eu não saberia lidar
com isso bem.

mas foi bom ter visto você
de novo
esta
tarde.

13.10.11

"um pedaço de alguém"

descolam-se dos pés as vibrações
do primeiro verão da alma, atuam
flores em cemitérios cinzas do ano
mil e novecentos e pouco importa,
há outra desolação, há festividade,
no exercício do medo aprendemos
as divertidas margens de todo calo,
a redondeza supérflua das paixões,
de que não abdicaremos jamais, ei!
ouviram bem que não abdicaremos!
abram se quiserem com suas presas
de família, filho, propriedade divina,
as costas de nosso amor inexplicável
e colocaremos mesmo sem nos virar
fogo nas casas santas de vossas teias
para aquecer teu coração que dorme
nos pregos do que insurge sobre pele
e para sempre será o grito de heyjoe!
porque não sabemos muito, treme-se
só de pensar o quanto não sabemos,
e sabemos da validade de nosso riso,
pois curto é o tempo de todo milagre,
nossas gaitas de judeuzinhos magros
sempre nos bastaram e nada é nosso
a não ser a tentativa falha do imenso.

2.10.11

"pico"




estátuas de silêncio abutres iluminam nossos pulmões,
temos as pernas em chamas e, muitas vezes, torcemos
os joelhos para trás incrédulos; é assumir a carga de deus
e escorregar um pouco ralando braços, vermelho disforme
que dispara nossos desabamentos ladeira abaixo, diante
de uma fome um pouco mais estranha e a obsessiva ida
ao pico de nossas incertezas seguiremos e muitas vezes
olharemos para baixo e esperaremos a tal morte, talvez,
súbita morte que acompanha tão bem a sorte provisória
de ser pela primeira vez presa do que nos fez nascer assim.

26.9.11

"os preocupados"

eu creio com firmeza que a vida
é promovida pelos preocupados.
os preocupados são os analistas
da vida, ou seja, a vida só existe
pela preocupação de que se forma.

mas ocorre que jamais um vive
preocupado em promover a vida.
e os que bradam “eu vivo a vida!”
são promovidos à ação, contudo,
eles não podem ser os mandantes,
eles estão renegados ao progresso.

no meio-tempo, os preocupados
sem jamais viverem eles exercem
a dádiva do câncer, o riso divino.

a força do amor é do abandono,
os preocupados amam e deixam
para os sorridentes escravizados
a alegria doce de não ver e agir.

"rebordosa"

é preciso saber esperar,
meia hora e nada mais,
um banho e quem sabe
uma saudável inclinação.

sincero consigo mesmo,
este deve ser o mantra,
penar diante de si mesmo,
o nariz assado, a mente
inquieta, abstrata, torpe.

as leituras russas jamais
ajudam tipos como este.

hás de meter calo a grito,
doente que não se diria,
faminto de muita sorte.

afagas teu crime diário,
desces aqui um pouco
abaixo da linha sisuda.

bailemos, pois, orfanato!
sejamos as presas aflitas.
lá onde não há disfarce
só pode ter restado vida.

23.9.11

“sem verbo, sem adjetivo”





para Miles Davis



ainda não de todo corpo a verdade,
sem verbo ainda a pele do processo,
acima de tudo, um deslize adjetivo,
dentes e areia nos olhos da penumbra,
miles de minha infância, aleluia, sim!
escultura de metal com molas, prego
no caminho em música, cavalgadas
de paz como feitiço, chapéu da noite
dentro dos ossos, escola da exigência,
frequência de rua, tempo de gueto,
pulso da abstração, catarata on/off,
agulhas de mel no topo do sentido,
um dia, talvez, elegância da margem,
dança com dois punhos de algodão,
órgãos em drama de semi-esperança,
assim já não, nunca mais, agora outro
deserto memória da agonia em pêlos,
sem um verbo, desta vez sem adjetivo,
prazer de íris, maná, dilatação do susto,
culhão de maremoto, show das raças,
verbo transe da massa, óculos de raio,
colisão de vara verde na escola do tédio.

22.9.11

"a síntese"





Eu digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente.


O poeta se faz vidente por um longo, imenso e arrazoado desordenamento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para apenas guardar em si as quintessências. Inefável tortura em que ele necessita de toda a fé, de toda força sobre-humana, em que ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! – Pois ele chega no desconhecido! Visto que ele cultivou sua alma, já rica, mais do que qualquer outra! Ele chega ao desconhecido, e quando, transtornado, ele acabaria por perder a inteligência das suas visões, ele as viu! Que ele irrompa em seu salto por coisas inauditas e inumeráveis: virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes em que o outro se abateu!

Carta de René Char a Paul Demeny

10.9.11

"Uma vida de cão" (Henri Michaux)







Deito-me sempre muito cedo, e estafado, e no entanto não é visível, no meu dia de trabalho, nada de cansativo.

É possível que não se dê mesmo por nada.

Mas a mim, o que me espanta, é poder aguentar até à noite, e não ser obrigado a ir-me deitar logo às quatro da tarde.

O que me cansa são as minhas contínuas intervenções.

Já disse que na rua andava à pancada com toda a gente. Dou bofetadas num tipo, apalpo as mamas às mulheres, e servindo-me do meu pé como dum tentáculo, semeio o pânico nas carruagens do Metropolitano.

Quanto aos livros, são os que mais me dão cabo da cabeça. Não deixo uma palavra com o seu sentido, nem sequer com a sua forma.

Agarro-a e, após alguns esforços, arranco-lhe a raiz e desvio-a definitivamente da manada do autor.

Num capítulo há logo milhares de frases, e lá tenho eu que as sabotar todas. Isso é-me necessário.

Às vezes, algumas palavras resistem como torres. Tenho que atacá-las várias vezes e, já bem lançado nas minhas devastações, subitamente, na esquina de uma ideia, revejo a torre. Por conseguinte, não a tinha suficientemente demolido. Tenho que voltar ao princípio e encontrar o veneno para ela, e nisto passo tempos infinitos.

E uma vez lido o livro inteiro, lamento-me, pois não percebi nada... naturalmente. Não consegui engordar nada. Continuo magro e seco.

Eu pensava (não era?) que quando tivesse destruído tudo, encontraria o equilíbrio. Possivelmente. Mas o que isso demora, quanto demora!

9.9.11

"a letra"

o que eu tinha agora, há pouco,
dentro de mim virou onça braba,
e era tão grande o bicho e pouca
vontade de estar diante do bicho
que me causava lástima, aquela
coisa sem nome, que chamamos
tia-avó, aquilo fatalmente úmido
por embaraço da letra, por clareza
da vontade da letra, mas fatalmente
de que letra vivemos, se quando
falamos, não somos nós onças?
o mesmo volume do esquecimento
que nos faz próximos, tão longe
das onças, ou das espingardas.

8.9.11

"E não estaríamos todos nós, os selvagens sensíveis, neste mesmo dilema?"







"Nesse momento, ele se voltou para mim e apontou-me com o dedo, continuando a me fulminar sem que eu entendesse bem por quê. Sem dúvida eu não podia deixar de reconhecer que ele tinha razão. Eu não me arrependia muito de meu ato. Mas tanta obstinação me espantava. Gostaria de poder tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Sempre estive dominado por aquilo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã. Mas é claro que, no estado a que me haviam levado, eu não podia falar com ninguém neste tom. Não tinha o direito de me mostrar afetuoso, de ter boa vontade. E tentei continuar escutando, porque o procurador começou a falar de minha alma".

(O Estrangeiro, Albert Camus)

.

3.9.11

"helder"









dizem que você se esconde nos confins
da ilha da madeira e usa um cinto firme
em volta do coração e escreve poemas
sangrentos sobre a ausência presente
das coisas atávicas, mas sinceramente,
gostaria de saber melhor como viveria
um poeta isolado do contato humano,
tão puro quanto a flor ou o incêndio.
mas será que corta lenha, usa caderno?
há que haver discernimento, é um fato,
mas alguma apresentação ao ridículo
não seria também um fato a discutir?
talvez seja questão de só ser possível
tocar a dádiva ausentando-se de tudo.
mas e a brecha, e a margem do humano?
é como se você me devesse explicações.
quanto do que é escrito é possível viver?
estamos sozinhos em cada cabana cheia.

26.8.11

"On no work of words", primeira tentativa








“On no work of words” (Dylan Thomas)

On no work of words now for three lean months in the bloody
Belly of the rich year and the big purse of my body
I bitterly take to task my poverty and craft:

To take to give is all, return what is hungrily given
Puffing the pound of manna up through the dew to heaven,
The lovely gift of the gab bangs back on a blind shaft.

To lift to leave from the treasures of man is pleasing death
That will rake at last all currencies of the marked breath
And count the taken, forsaken mysteries in a bad dark.

To surrender now is to pay the expensive ogre twice.
Ancient woods of my blood, dash down to the nut of the seas
If I take to burn or return this world which is each man’s
work.


***


“Sem trabalho de palavra”

Sem trabalho de palavra agora há três meses magros no sangrento
Ventre do meu rico ano e da grande carteira do meu corpo,
Amargamente eu testo minha pobreza e meu ofício:

Tirar para dar é tudo, retorna o que é famintamente dado
Aspirando o peso celestial do chão molhado ao paraíso,
A doce tagarelice explode de volta contra o cego poço.

Erguer para partir dos tesouros do homem é chupar a morte
Que varrerá por fim as moedas da respiração sinalizada
E contará os tomados, renegados mistérios no escuro ruim.

Render-me agora seria pagar duas vezes o expansivo ogro.
Floresta ancestral do meu sangue, afunde-me no cerne dos mares
Se eu incendiar ou devolver este mundo que é o trabalho de cada
homem.

23.8.11

"hoje não, Dylan Thomas"

hoje acordei com o caos lambendo meus cílios,
um frio solar enquanto o apartamento ao lado
era posto abaixo em constantes marteladas.

lidar com o caos que lambe os cílios é como
lidar com algo bondoso, mas doente, algo
próximo do fim e, portanto, majestoso.

tomado por este caos irmão tentei traduzir
um poema do grande D. Thomas, o galês,
On no work of words... mas hoje não, Dylan,

hoje pularei da cama uma britadeira de ossos,
conduzirei minha inflamação de caos ladeira
abaixo junto ao estrondo oco que me pertence.

22.8.11

"ando ouvindo Belchior"

como criança sem pernas mergulho
perplexo sobre o indivisível feixe.
mais que perplexo, e na verdade
não mergulho, empurram-me em direção
ao meu destino de criança sem pernas,
e sou obrigado a me diluir ou morrer.

a escolha óbvia sobrepõe a resolução
das pendengas, sem chance ou esperança
sinto-me pasmo com o rumo das coisas,
caverna e dinheiro, as duas simbologias
me determinam e me arrancam pedaços.
as pernas que me faltam eu tento forjá-las
na cabeça, e nada me resta a não ser criar
um novo gólem, e então admitir: o futuro
é para os mortos, presente a morte anunciada.

com o que chamo de meu corpo desconhecido
parto como quem arrasta o próprio corpo
que cai do oitavo andar, os fundilhos das calças
esfarelam em contato com a pele que
os pernilongos ávidos por mim não me deixam
esquecer que é doce como doce é minha gangrena
quando as hienas se aproximam, e repentinamente
são muitas as hienas sedentas de doçura,
mitologias suicidas seduzem meu coração desesperado,
converso com as pessoas e sinto: não há outra chance
a não ser me diluir entre os operários raivosos de Londres,
partir é preciso, ou morrer, e morrer é mais preciso que partir,
mas como eu consigo manter os pés no chão! – e que pés? –
como é possível que o susto transpareça tamanha
tranqüilidade diante das cores novas!


haverá de ser como criança sem perna.
a raiva será o motor do susto contínuo, os olhos
ficarão bem abertos, a voz (isto é absolutamente necessário)
enrouquecerá a ponto de sumir ou tornar-se súplica do corpo,
então haverá, quem sabe, por fim um corpo a que se fazer ruína,
e a ruína terá então o seu lugar privilegiado de costas para o sol,
e então a carne enfraquecida falará, misturada com empecilhos
de fluidos alquímicos e graves entorpecentes, que por falta
de força e inegável inclinação ao erro em descrença
doce, como hienas são doces, crianças sem perna, meu gólem,
minha invenção em que tampouco me reconheço e, ao contrário,
me sobressai e não anda comigo, porque aqui não andarei
mais comigo, vou me deixar inocular pela raiva dos operários
e fazer com que as palavras tornem-se flores carnívoras,
porque não haverá mais agora o empilhamento
dos pedaços caídos de apenas um dos lados.

trocarei meus pedaços com outros despedaçados
e seremos um enorme corpo de possibilidades de corpo.
esqueceremos um pouco o limite que se avista
do umbral como a face da foice, andaremos até o cansaço,
nem que seja o mesmo caminho, nunca mais sozinhos
e ao mesmo tempo sendo todos um grande acúmulo,
dos nossos pedaços e dos pedaços alheios,
para brotar feito chaga de febre
sobre os ossos da beleza desdentada.

19.8.11

Esta velha angústia (F. Pessoa)

Esta angustia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pasadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino?
Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui?
Está maluco.
Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer – Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria, Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!

15.8.11

Ausência (V. de Moraes)

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos

[que são doces

Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres

[eternamente exausto.

No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz

[e a vida

E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz

[a tua voz.

Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado

Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados

Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra

[amaldiçoada

Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.

Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face

Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para

[a madrugada

Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui

[o grande íntimo da noite

Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos

[no espaço

E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono

[desordenado.

Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos

Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir

E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves,

[das estrelas

Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz

[serenizada.

9.8.11

"have some respect for an old west indian negro"


o problema é todo nosso: os saques sem teoria.

engolimos a idéia de que buscássemos modos
de aliviar a recente decepção revolucionária.

éramos ainda bebês, e nossos pais sentiam-se
como covardes, derrotados por uma ideia tola.
eles não estavam ali dizendo, firmes e fortes:
“será duro ainda, não acabou nada, estou aqui”.

não, nada disso aconteceu, apenas apreendemos
os frutos do amor e não tocamos mais a semente.

nossos pais, logo ao lado, falavam de outra coisa
quando fomos tragados para uma idéia sem fim,
quando abrimos as partituras infestadas e demos
uma boa lição de civilidade, todos egoistamente
atrás de conforto, a cargo de pequenas caridades.

nascemos da caridade dos tempos, não engolimos
pedras, muito pior: acostumamos com a aspereza
no fundo da garganta, e amamos demais, no fim,
estamos perdidos porque temos um amor amoral,
o único amor que, agora sabemos, é amor demais.

as mortes não serão grande coisa por um tempo,
pais e filhos sentarão ainda à mesa sob risos frios.

uma avalanche não se faz de gelo duro, mas com
uma longa exposição ao sol, letárgica exposição
ao que sabemos chamar vida real mas jamais será
outro mundo como aquele, que resolvemos vestir
com determinação e poucas lágrimas, e a frieza
explícita dos encontros de putaria entre líderes
nas salas barbitúricas onde, sem mais demônios,
fizemos nossas regras e pagaremos com sangue.

22.7.11

"pequena canção para Dmitri"

ah mas eu queria acabar como você: um patife, mas não um ladrão!
uma nobre inteligência que, de nobre, acaba jogado de lado a lado,
convulso em ideias romanescas, puxando barbichas pelas tavernas,
oh gritando em altos bardos as dores de uma era que se aproxima,
porque você já não pode mais apenas ser o apaixonado, eles agora
exigem que toda paixão seja louca e então somos loucos, que seja,
porque nossa natureza sem Hamlet já não cogita mais os cinismos,
sabemos somente dos bares e dos sentimentos populares dos reles,
não interessam os dois abismos sobre os quais passa nosso arame,
vacilamos e por issos somos deus, pois no vacilo está a velha suma,
o romance máximo da vida com pernas tortas, as lágrimas invioláveis
daqueles que são a marca do chicote e das casas de velhas gordas,
mas largaremos os chicotes e seguiremos, inanes, as lavras de ouro,
e mesmo que nosso arrebatado charme tenha se escapado em face
ao hemorroidal semblante do agora, ainda saberemos bradar, e mais,
saberemos rir, pois nossa desgraça é o riso dos homens sem deus.

10.7.11

"não é felicidade"

você me entrega a felicidade
mas quando ponho as mãos
por trás da nuca feito louco
não sei se é felicidade o que
preciso, ou daquela dureza
de não se saber se pode ser
felicidade um amor tão cheio
de invisíveis parâmetros,
signos sem interpretação,
apenas para ficarmos pasmos,
pensando: é, não é felicidade.

28.6.11

"depois de Fassbinder"

o Comitê Invisível tem razão, não haverá mais um New Deal,
as passeatas tornaram-se blocos de carnaval em que se embriagar,
o sentimento social se evaporou em pequenos contratos sociais,
os revoltosos serão festivos e desesperados por sentimento puro,
o sentimento puro será o que se pode sentir sozinho, observado,
a nova insurreição virá da falta de uma linguagem comum,
estamos à beira de um ataque de nervos, fechados em salas
brancas como a morte ou com cheiro de anteontem, sala negras
nos pesadelos que alimentam o suor da nossa perdição sabida,
não haverá a ligação telefônica dos antigos partidários da causa,
com uma semana de enclausuramento cessarão as tremedeiras,
seremos capazes de compreender tudo, com monossilábicos,
fechados pelas sirenes, conseguiremos no máximo imaginar
o desenvolvimento de nossas cáries em rasos canais de amor.

26.6.11

"leminski"

ah se a verdade fosse assim tão límpida
e não nos matássemos por amor a um irmão.
fazemos o que podemos com o que não
podemos e não podemos mais fazer nada
além de versos, como dardos agridoces,
porque somos, através da nossa loucura,
aquilo que respira a aldeia da psiquê.
mas sempre chega a meia-noite na alma,
os quatro ventos jamais convergem
nas rupturas constantes de que precisamos.
vão-se irmãos e filhos, sobram tumores,
e não temos a espada samurai da coragem.
importa muito pouco, poeta, na verdade,
que falemos tanto, pensemos tão alto,
se cá no raso nos afogamos com os mortos,
porque não vemos mais amor entre os vivos.

24.6.11

"poema encontrado nas gavetas de 2006"

"Infâmia"

Quando um homem fica velho
nem sempre é quando ele tem idade
Às vezes é quando ele não tem muita
outras vezes é quando sabemos quem somos
quando dizemos aos outros: eu sei quem sou

Ou quando passamos a pensar em nós de fora

Ser velho é perder o tato com o medo
ser velho é semear angústias transgênicas
ser velho é acreditar nos contornos do espelho
É quando os olhos fazem maquiagem nas flores da face
não por elas serem velhas, infames, cheias de pêlos
mas por elas serem um sonho que descolou do precipício

O tempo sabe quem sou e porque sou e isso me envelhece
Saber quem somos serve apenas para os vermes
que – estes sim – têm certeza absoluta

22.6.11

"um a menos"

por ora os abutres sobrevoam
a lagoa fetal e, muito em breve já munidos
com as devidas garras de enxofre,
eles darão o rasante metálico
e tudo isso será apenas uma história,
um mito, um terá-alguma-vez-isso-acontecido,
mas os amantes estarão esfarelados
em suas carnes antigas, abraçados numa confusão pagã,
a carne nova estará no balcão vermelho dos negócios de feira,
as breves frases delicadas ter-se-ão tornado
bustos pesados de paz em vírus.

a galope o pequeno órgão ratifica
a vaga culpa, estamos nus sob um sol úmido,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém,
as salas minúsculas e os alquimistas calvos
afunilaram o ambiente com paciência e muito ânimo.
serás processado, triturado e lançado ao acaso
em tua própria tendência succínea, e não será possível
abrir mão deste silêncio como osso tranca-traquéia,
ainda nem uma cabeça, um todo
verminal que no entanto pulsa.

a morte da Grécia está nas ruas
e já não poderei vê-la porque a partir de agora
os olhos forçam para dentro as mágoas,
as covas rasas se alinham ao ventre,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém,
entende-se que a morte do pai reaproxima o par,
pois que assim seja, saberemos renunciar
a qualquer passado por uma nova vida, daremos
as mãos em nosso pior inverno, riremos como clowns
e poderemos até assaltar um banco, costuraremos
as máscaras dos sorrisos heróicos e caminharemos
com menos um pedaço, adiante.

18.6.11

"Brasília"

o problema sério de Brasília
são os prédios de pastílhas,
tristes seres que se afagam
nas mil quadras de mil blocos.
Brasília é homem que jamais
pode morrer, mas traz a faca
que sem lâmina nos mata,
nos faz maiores para falar:
Brasília ao longe teu avatar
já não comove nem um grego.
país ao longe, tão brasileiro,
vapor ao vale na imensidão.
sangue escorre, e tenho pena,
Brasília corre com pés no chão.
mas qual o chão, se aqui se morre
pensando em atas de distinção?
o que nos mancha, se temos sorte,
serão as salvas da alforria.
Brasília monstra, por que Brasília,
se onde há homens não há poesia?
não ser Berlim, nem bem Paris,
com a magia dos sem-coturno.
não nos amamos, e sei contudo:
te devo a vida, e o chamariz.
amigo Heine, eu bem entendo
com a frieza dos bigodudos:
além de tudo, há lá mil vias,
línguagens cínicas do violão.
Brasília, a morte nunca foi tua
mas somos todos o teu caixão.

16.6.11

"a boa e velha sinceridade alemã"


H. Heine (1797 - 1856), também conhecido como "Aristófanes alemão",
com a típica pose tubércula, muito em voga à época



Índole pacífica. Desejos: cabana modesta, telhado de palha, porém uma boa cama, comida gostosa, leite e manteiga bem frescos, flores em frente à janela, belas árvores defronte à porta, e se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, que me conceda a alegria de ver, nessas árvores, cerca de seis ou sete de meus inimigos enforcados. - De coração comovido hei de perdoar, antes de suas mortes, todas as infâmias que me infligiram em vida - sim, temos que perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem enforcados. - Perdão, amor e compaixão.

Henrich Heine

"diagnóstico"

é necessário algo fluido
feito mãos entre lâminas.

precisa-se urgentemente
de uma boca bem aberta.

para coalhar esse tempo
que não se fez cicatriz.

nem tampouco sangra agora
e ainda é tempo sobre tempo,
sem noção entre terra e cais.

em suma é necessário mais,
porque os olhos imaginários
exigem filho, casa, mulher.

pode-se fazer o que se quer:
matar-se com tiro entre olhos,
convidar corujas para jantar.

mas sempre existirá esse canto,
essa mensagem rouca de louco,
esse erguer os olhos aos sinos,
tão anterior à foice sob a pele,
que enfim entregamos à saliva.

e quem pensa sobre isso morre
de amor ou doença coronária.


*texto publicado originalmente na fabulosa Revista Minotauro 3 (carne)

6.6.11

"Gênio Heine"

A sorte é uma mulher vadia
Que não se aquieta no lugar;
Te beija, abraça, acaricia,
Desaparece num piscar.

Senhora Azar é toda amor,
Te prende firme ao coração;
Diz não ter pressa e faz tricô,
Esparramada em teu colchão.

(Heinrich Heine, 1851)
tradução de André Vallias

3.6.11

"Elegia Múltipla" (Herberto Helder)





VII

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda de meus
vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,
amanhã morrerei.
Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,
alterosa e quente na minha mão
sufocada. Agora mesmo na europa
começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida
percorrida por um álcool penetrante, é a imediata
atenção ao misterioso trabalho da idade.

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais
sombrios da carne, sobre um vasto segredo.
Será apenas isto, um ponto móvel
da eternidade, isto – a sufocação veloz e profunda
da vida inteira na minha garganta? E depois
o acender das luzes, Bruxelas como uma câmara
de archotes e ao alto as ameias
enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande
memória aquilo que acaba na violência triste
do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilônia
partem rios. Por detrás das cortinas,
despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho
vinte e nove bocas urdindo
a falsa doçura da confusão. Os países constroem
a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão
pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante
a loucura masculina
da minha vida. Pensa um pouco na beleza
ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível
das pessoas ou o seu respirar
que arde e brilha e se apaga à superfície
das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso
rapidíssimo
que jamais desaparece do silêncio, na candeia
que cobre com agulhas de ouro os escombros
dos lírios. E por cima de tudo estende
a tua pequena mão eterna. Cai
tu própria na treva quente da minha
cega mão masculina de vinte
e nove
anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta
cheia de sangue actual – amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas
velozes, pedras que pareciam
imortais. Eram casas que se levantavam
sobre o meu coração. Vi que tomavam
animais feridos, flores imaturas, objectos
breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam
alguma coisa eterna. Era gente
de vinte e nove anos que se despedia dolorosa
pormenorizada
violentamente de uma parte da sua carne, a parte
mais iluminada da sua
carne de vinte e nove anos. Amanhã
morrerei.

2.6.11

"Blake for rapers"

lack of breath,
sketch of Spain.
we stand to rest,
we dance to say.

the time will come
to fear and grow:
mounts of sperm,
hearts of snow.

but when you find
we are that near,
come and cry,
life is queer.

when wake to sleep
and sleep for fake,
try to skip
love’s delay.

first the blame,
then the drag.
we lie our names
and kill our deads

we love for pain,
we loose our hats.
sketch of Spain,
lack of breath.

31.5.11

"NAVA" (Ismar Tirelli Neto)

desconfio deus montando
embaixada à porta do banheiro. Desconfio
deus uma pedra com eco, desconfio deus
um novelo de lã nos confins de sob a cama. Não estou morto.
Não das mãos desse sujeito. A carne
do que se diz está bem longe, mas cumpre atentar:
tampouco se trata duma mentira. Fazemos o que
fazemos pelo elástico da coisa. Estes quartos, em nenhuma
ordem particular. Nada deve permanecer
que seja meu. A repentina exigência do hospital azul
frente ao edifício. Meus passos estranguladamente lentos
antes de te deixar, fosse eu o assassino

*esta e outras pérolas estão no Ramerrão (7Letras), livro do ano, quiçá da década, a ser lançado hoje na Travessa do Leblon, a partir das 19h.

24.5.11

"porto alegre - dia das mães - 2011"

dessa vez, Porto Alegre, você me passou a perna direitinho.
depois de algumas catástrofes, o sol brilhou por alguns dias,
tirando o mofo dos casacos sempre fechados no escuro seco
das nossas imagens compartilhadas, a ferro, susto e tabus.
o sol brilhou por alguns dias e, estou perfeitamente convicto:
a poluição é o que deixa o pôr-do-sol no Guaíba mais bonito.
atravessar a rua sem pernas, flutuando num caldo alcoólico,
tornou-se algo que até mesmo uma criança é capaz de fazer.
aceno, nas ruas, para meninas de tranças, índias Charruas
da minha mais funda origem, e pela primeira vez vejo os dentes
de minha mãe morta, perfurada pela primavera dos excessos.
bom estar pela primeira vez de ouvido aberto em Porto Alegre.
um homem gordo, de gordas e fascistas batatas da perna, boina,
passa com seu passo de holocausto, aproximando-se de mim,
enquanto estou próximo ao lago, alimentando meus ímpetos.
mas estou atento e calmo dessa vez, jogo lento minha droga
por terra, enquanto passa por mim o sentinela-cidadão-comum,
dá uma olhada para o lago e vai embora sacudindo os mortos.
sigo chutando os pinhos secos, desviando dos preservativos
do amor moderno e das seringas do êxtase capaz de matar,
e que é o único êxtase concebível, o êxtase do mais-que-tudo.
existe algo íntimo e um tanto patético no Parque Farroupilha,
algo que abre meus pulsos, me envergonha e comove muito:
uma zona central com um grande chafariz, um campanário
que é uma réplica chinfrim do Jardim de Versailles e, acreditem,
um Arco do Triunfo, mas por ali passam bichas heterofóbicas
com seus cachorros magros e passam salazares e antigas
mães italianas e um casal briga ao meu lado, e o homem diz
à mulher dele uma frase, mas essa frase, claro, é para mim,
que sou todo ouvidos aéreos e pés firmes no chão de Porto Alegre:
"tu fica te escalando pra fazer as coisas e depois fica te fazendo",
e este sou eu, esta é minha cidade urso de infância, sem deus.

29.4.11

"não temos Paul Valéry"

são mil elefantes sobre a corda no pescoço.
é arrancar fora os elefantes, queimar a corda,
recolher com carinho a réstia do abatimento.
nada se resolve, não sabemos o que é certo,
não temos Paul Valéry, não tingimos o bigode.
adeptos do quem-pode-pode-quem-não-pode-
se-sacode, temos dor e não temos lágrimas,
temos sono, olhos vermelhos, veias abertas,
enxugamos o marinho, nossa poesia chove.

15.4.11

"existe um homem bêbado, desesperado"

o quanto me ajuda aquilo que me mata,
ilumina a cabeça e rareia
o bolso paterno de mim,
aquele que foi morto, aos prantos
em uma novela de Raymond Chandler,
com um pouco de ajuda desencapo,
acredito em qualquer um,
como no primeiro Balzac.

saber que me mata aquilo que me ajuda
é como saber que enxergo,
mas não gosto do que vejo.

saber que já foram resolvidos os anseios
– não há mais tempo para isso agora –
pelos 127 heterônimos de Fernando Pessoa
resolve a vida do Pessoa, mas e a minha vida?
justo eu, que não tenho heterônimo nenhum,
que sou um só e sou mil e sou um trapo,
sei que aquilo que nos mata nos ajuda,
ilumina as chagas, faz da ferida pintura,
faz em palavras as babas por entre lábios.

mas o que direi a mim mesmo no silêncio
em que só os amantes podem mentir?
como pedirei ajuda na hora em que a morte
roçar finalmente a infância dos meus cílios?

3.4.11

"primeiro para marina"




este é o primeiro para ti, coisa minúscula,
porque agora estás longe – e é domingo,
e no domingo almoçávamos e tentávamos,
depois de um pouco do choro pelo ultraje
do abandono semanal, comunicar algo de um
para o outro, com nossos famigerados trejeitos.

mas não te preocupes, pequena, que agora tudo
pareça insuficiente de sentidos, afinal és pequena
demais, mas não te preocupes, mesmo aos trinta
continuarás pequena para tais questões, e é só
por ti que eu jamais aceitarei novamente alguém
que diga “morreu o último romântico”: eu estarei
vivo e por mim tu viverás por mais cem anos.

enquanto isso, pequena, enquanto agora desbravas
novas terras onde não colherás provavelmente muito,
enquanto isso, haverá algo de poucos gestos, mínimo,
mas que já sabe acenar adeus e sorrir sem dentes firmes,
algo minúsculo, que é como tudo que nos mantêm vivos,
porque nos vemos e não sabemos de nada, mas sabemos
que somos pedaço do mesmo pedaço, mas não comemos.

1.4.11

"momento aprenda com quem sabe"

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (Graciliano Ramos)

22.3.11

"sobre a boa amizade"

estarei aqui quando os concretos se virarem
e vierem nos cobrar as cinzas da beleza,
estarei aqui, com os olhos costurados,
mas você escutará, a cada morto desabado,
meu coração pigarrear e meus dedos amarelos
suplicarem por esse silêncio de cidade grande
dividido com os únicos ombros firmes,
dessa viscosa irmandade que justifica
sermos fúteis o suficiente para lustrar
a vergonha úmida de nossos cílios fosforescentes
e derramar o sangue como balas doces cocaína
porque nossa queda de joelhos será a liberdade
não reconhecida nos pequenos túneis funéreos
e que são nada, meu amor, nada além do escuro
frágil com o qual nos acostumamos a amar sem aspas.

16.3.11

"what they want" ou "aprenda com quem sabe"

por Henry Charles Bukowski Jr.






Vallejo writing about
loneliness while starving to
death;
Van Gogh's ear rejected by a
whore;
Rimbaud running off to Africa
to look for gold and finding
an incurable case of syphilis;
Beethoven gone deaf;
Pound dragged through the streets
in a cage;
Chatterton taking rat poison;
Hemingway's brains dropping into
the orange juice;
Pascal cutting his wrists
in the bathtub;
Artaud locked up with the mad;
Dostoevsky stood up against a wall;
Crane jumping into a boat propeller;
Lorca shot in the road by Spanish
troops;
Berryman jumping off a bridge;
Burroughs shooting his wife;
Mailer knifing his.
--- that's what they want:
a God damned show
a lit billboard
in the middle of hell.
that's what they want,
that bunch of
dull
inarticulate
safe
dreary
admirers of
carnivals.


*** tradução ***


"o que eles querem"

Vallejo escrevendo sobre
solidão enquanto morria de
fome;
a orelha de Van Gogh rejeitada por

uma puta;
Rimbaud correndo para a África
em busca de ouro e encontrando
um caso incurável de sífilis;
Beethoven ficando surdo;
Pound arrastado pelas ruas
numa gaiola;
Chatterton tomando veneno de rato;
os miolos de Hemingway pingando
no suco de laranja;
Pascal cortando os pulsos na banheira;
Artaud trancado com os loucos;
Dostoiévski de pé contra um muro;
Crane pulando na hélice de um barco;
Lorca baleado na estrada pelo exército
espanhol;
Berryman pulando de uma ponte;
Burroughs atirando na mulher;
Mailer esfaqueando a sua;
--- é isso que eles querem
uma porra de um show
um outdoor aceso
no meio do inferno.
é isso que eles querem,
esse bando de
estúpidos
inarticulados
seguros
sombrios
admiradores de
carnavais.

9.3.11

"Leonardo Gandolfi"




Arma de Vingança

Digamos que você saiba o meu nome
e o nome do meu cachorro. Digamos que
você tenha razão, errei bastante, fui precipitado.
Digamos que se trate disso, exatamente disso,
não porque eu tivesse a mesma coragem que você
para negociatas cujo fim fosse alguns trocados
sujos que não mudariam a vida de ninguém
nem mesmo a de um professor quase sempre
sem emprego. Digamos que seja isso, isso mesmo,
só porque mais ou menos reproduz o caminho
sem volta que um ou outro têm trilhado, alegrias
e vexames que quase sempre terminam em portas
que, quando não estão fechadas, nós mesmos
fazemos questão de fechá-las. Agora uma suposição,
digamos que você saiba apenas o nome do cachorro
e que esse cachorro não seja exatamente o meu.


Cronologia

Tecnicamente não sou lá boa pessoa.
Amei e fui amado sem ter visto nisso
amor ou o que quer que seja. Em segredo
traí amigos mulheres e a memória alheia.
Cultivei a mentira o medo a covardia,
tudo em seu registro menos assertivo,
e só mais tarde fui aprender que ao melhor mal
coube a mim apenas a melhor resposta.
Pois se houve bem no mal do qual fiz parte
foi o de ver que as pedras que tenho no bolso
também estão no bolso daqueles que não
abracei nem dei a mão. Nossa canção
embora solitária e cheia de paz
é uma só canção e, cante o que cantar,
ouviremos apenas os ruídos deste
que tem sido apesar de tudo o nosso tempo.


*Saiu este belo livro, A Morte de Tony Bennett, obra um tanto instigante e inusitada do carioca Leonardo Gandolfi. Os dois poemas acima, se é que é assim que devemos chamá-los, apenas poemas, estão neste lançamento da Lumme Editor.

8.3.11

"breviário de uma puta aposentada"

a orgia virou cinza à luz da enxaqueca –
choro porque dentro de mim há um surdo
e este surdo representa a cor do meu erro,
que de tanto cometer aprendi a amar lúcido
como o pai distante ama o filho enforcado,
e as trombetas se encolhem nos corações
encharcados de tanta fuga e tantos em fuga,
e, na verdade, é uma festa pagã, mas que é
a festa pagã se é também um tempo pagão?

olho minhas unhas pintadas, que de roídas
tornaram-se as unhas de uma prostituta velha.

não haverá ninguém nos esperando, doçura,
quando saltarmos para esse estranho infinito.

as flores, nós teremos que levá-las no bolso,
amanhã estaremos assombrosamente perto,
é devido não amassar com mãos trêmulas
as flores do medo que levamos nos bolsos,
é devido também, se possível, evitar tocá-las,
fundamental referência se vê melhor ao longe,
agora que, à luz da enxaqueca, cinza, a orgia
se apresenta com as mil línguas infectadas,
refratárias da beleza com a visão em brasa.

1.3.11

"mandelstam"




"os garotos perdidos cantam para Mandelstam"

pintávamos com liquid paper as unhas e amarrávamos
elásticos em torno dos braços para que nos saltassem
as veias como as dos que imaginávamos ser
os Jeans Genets das penitenciárias da infância,
e as veias explodiam como a vida explodia, mas nós
traçávamos as saliências das veias intumescidas
com caneta bic e, por vários dias, reforçávamos
o traço e conhecíamos o nosso corpo nos intervalos
das aulas de francês de Madamme Albinou, e no mais
havia as marcenarias de nossa primeira química
e os quartos mofados dos nossos hormônios.
nós então sabíamos que o antigo torna-se brinquedo,
sabíamos como sabem os fascínoras e os papas,
apenas que em nós a violência era ainda sem pecado,
mas as costas da revolução nos costuraram os olhos
e hoje não passamos de contra-revolucionários cegos.


O POEMA ABAIXO FOI ESCRITO POR MANDELSTAM EM "HOMENAGEM" A STÁLIN, O DITATOR COM DENTES PODRES, QUE, EM AGRADECIMENTO AO PRESENTE, MANDOU MANDELSTAM PARA MORRER DE FRIO NA SIBÉRIA, EM 1939:



Vivemos sem sentir o chão nos pés

Vivemos sem sentir o chão nos pés,
A dez passos não se ouve a nossa voz.

Uma palavra a mais e o montanhez
Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.

Seus dedos grossos são vermes obesos.
Suas palavras caem como pesos.

Baratas, seus bigodes dão risotas.
Brilham como um espelho as suas botas.

Cercado de um magote subserviente,
Brinca de gato com essa subgente.

Um mia, outro assobia, um outro geme,
Somente ele troveja e tudo treme.

Forja decretos como ferraduras:
Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras!

Frui as sentenças como framboesas.
O amigo Urso abraça suas presas.*



*A tradução literal desta última linha equivale a: "O largo peito do essétio" (cidadão de Ossétia, da Geórgia, região de origem de Stálin). Variante literal: "Um abraço de Ossétia às suas presas".

12.2.11

"escombros"

se ao menos eu fosse um desses fabricantes de canções de ninar,
eu seria aliviado, quem sabe, da minha dor no intestino delgado,
que de certo é pela tristeza ao ler minhas canções despedaçadas,
e quando as meto no papel a mim serão perfeitas, pouco importa
se a morte se concluiu em gelo da montanha e tinta desperdiçada.

quando as meto no papel pouco importa, sem pé, mão ou cabeça,
elas irão aos olhos sem aviso e, já quase sem ternura, sem licença,
farão dormir a besta dura e sua presença trará quem sabe um riso,
alguma crença, mas suo feito um porco-príncipe, é inútil a crença.

se ao menos eu pudesse fabricar a mais simplória canção de ninar,
ah eu dormiria para sempre, com o riso leve dos que sabem dormir.

mas sou pobre e tenho fome, tenho medo de morrer no longo sono,
nada me resta além de arder em brasa, acordar a canção com fogo,
pois que sou operário de um tempo sem descanso para olhos vivos:
posso apenas contemplar minha criação através de seus escombros.

31.1.11

"gambito"


Disseram-me pelo telefone que eu deveria procurar um sujeito chamado Campos. Quando cheguei à livraria, vi que era ainda cedo demais, meu estômago fazia sons estranhos, então fui dar uma cagada. No banheiro percebi que estava com umas olheiras enormes, meu intestino não ia nada bem, mas eu fingi que ia tudo bem. Saí do banheiro, entrei na livraria e me dirigi a uma guriazinha muito magra com mau hálito e gânglios no pescoço, em pé atrás de um balcão, sustentando um sorriso postiço:

- Preciso falar com o Campos – eu disse a ela.

- Você veio para a dinâmica de grupo?

- Acho que sim.

- Suba até o auditório e espere.

Subi até o auditório e lá encontrei alguns rostos querendo parecer calmos. Dois ou três homens com cabelos em forma de cuia e ternos justos de veludo, fumando cigarro. No mais eram umas dez mulheres, todas arrumadas como se tivessem apenas aquelas roupas, todas parecendo mulheres duras e fatais capazes de tudo. Aquilo era parte do processo seletivo, na certa, mas como era cedo demais para demonstrar dureza e capacidade, dei meia-volta e permaneci no andar de baixo, como um homem ridículo com disfunção renal, folheando um livro com as obras completas de Van Gogh, divididas por período. O período posterior à internação no manicômio de Saint-Rémy era o melhor - disparado. Depois que ele saiu de lá e foi para Auvers, suas pinturas abandonaram a até então vigorante inquietude ecumênica e se tornaram sobrenaturais, mal-assombradas, feitas por um homem de gênio que perdeu a cabeça. Umas gravuras japonesas também me chamaram a atenção quando, de repente, vi que as pessoas começaram a entrar no auditório, atrás de um rapaz careca aparentemente efeminado.

Fui o último a entrar, acreditando que aquilo poderia causar algum impacto positivo para minha insegurança. O impacto foi que comecei a suar no buço, e a camisa começava a marcar debaixo das axilas.

Campos era um homem lá pelos seus trinta anos, ou talvez fosse mais jovem, mas, pela careca, parecia mais velho. Ele era o psicólogo que analisaria os candidatos à vaga de vendedor.

Ao lado de Campos havia um outro homem, bem mais simiesco, escuro mas não negro. Ele se apresentou como González, mas teve que repetir o nome três vezes até todos entenderem. Isso serviu para descontrair o ambiente que, como um todo, escorria a suor e expectativa, e todos sorriram, alguns deram risadinhas por baixo das mãos. González nos olhava como quem tem uma posição superior à sua e não se importará em dificultar a sua vida, se você ficar cheio de nove horas.

- Bom, pessoal – disse Campos –, vamos fazer hoje aqui mais uma etapa de seleção para o departamento de vendas da Livraria Cultura. Meus parabéns aos que passaram pela primeira fase, de conhecimentos gerais sobre a cultura universal...

“Cultura universal”, e toda aquela velha conversa mole.

- Agora, cada um de vocês deve ir até a frente do palco para se apresentar, contar um pouco da vida de vocês. Você – e apontou para uma menina completamente estrábica, e seus olhos vesgos tinham um charme sutil.

Era magra e angulosa. Você podia pensar nela em centímetros quadrados. Se era atraente? Não especialmente. Usava óculos com aros transparentes e parecia ter uma perna mais curta que a outra. Sem jeito, disse seu nome, que eu esqueci assim que ouvi, disse também que trabalhava num brechó e estudava filosofia medieval. Isso é mais fácil de lembrar, por motivos óbvios.

Campos resolveu fazer um truque traiçoeiro e perguntou à menina que obra de arte a definiria. Ela gaguejou um pouco, mas, quando falou, não estava trêmula: “Campo de corvos com trigo”.

- Você quer dizer “Campo de trigo com corvos”?

Alguns riram, eu procurava seus olhos, desperdiçados pelo chão. Ela ficou vermelha e, cabisbaixa, voltou ao seu lugar. González pediu licença para ir ao banheiro.

Desnecessário discorrer sobre todo esse processo. Dos treze ou catorze candidatos, dez eram cineastas, todos com uma vasta ou pelo menos promissora bagagem, me lembro que um disse que seu filme favorito era – francamente – Kill Bill. Havia também uma outra menina que só lia ficção científica inglesa dos anos 30, e citou “A Revolução dos Bichos”, ficção não-científica dos anos 40, como obra que definia sua personalidade, pelo que alguém no fundo do auditório simulou o guincho de um porco. Alguns riram. González voltou do banheiro. Lenço na mão, suando. Pobre González.

Havia também um marxista foucaultiano que defendia a idéia de que a contradição leva à ruína – sujeito amistoso – e um antigo membro, não se sabe de que tipo de anatomia, do finado movimento punk (?) brasileiro, “dessa turma aí dos Replicantes”, disse o próprio, hoje um senhor barrigudo e bonacheirão, metido num suéter de lã vermelho, três filhos pequenos, dívidas imensas. Nesse momento senti culpa. Eu não tinha filhos. Eu nunca tinha ouvido falar do finado movimento punk brasileiro. Nada em mim, ou na minha mais remota memória, cheirava a suéter de lã. Eu não merecia a vaga dele.

De minha parte mesmo, me saí terrivelmente na apresentação. Olhando os encontros das vigas de sustentação vermelhas, disse basicamente que eu era um expatriado, sem rumo, que tinha acabado de chegar à cidade natal, sem saber muito por quê. E, pondo tudo a perder, citei quase aos prantos que a obra que me definia era “O sol também se levanta”.

- De quem? – disse Campos me apontando com o lápis, como se soubesse, mas tivesse esquecido propositalmente.

- De quem o quê? – eu disse, pensando em grades e calcinhas no varal.

- O livro.

- Ernest Hemingway – mas sob pressão eu pronunciava sempre mal o Ernest, para dentro.

- Herbert quem?

- Ernest, Ernesto Hemingway, o escritor americano.

Campos sorriu com um sorriso de boca aberta, o sorriso normalmente feito por uma pessoa que reflete se você é mesmo ou não um idiota. Procurei Hemingway nos olhos das pessoas sentadas nas poltronas, não achei nem mesmo Kafka. Era tudo liso, ornamentado, pronto para explodir de tanta contenção.

- Pode sentar... Como é mesmo o seu nome?

- Leonardo Marona.

- Leonardo Marone, por gentileza...

- Marona.

- Sim, oquei, ao seu lugar...

Campos sorria quando me conduziu. González tinha ido outra vez lá fora, com um cigarro na mão, murmurando algo em outra língua. Estava numa pior, o coitadinho.

Era lógico que meu desempenho na apresentação tinha contado pontos negativos na minha avaliação como candidato, mas eu ainda me mantinha razoavelmente humano. Depois que todos se apresentaram, ficamos esperando o González voltar. Alguém levantou a mão.

- Sim? – disse Campos, de braços cruzados, com as sobrancelhas.

- Qual é a função do Gonçalves?

- González...

- Sim, qual é?

- Ele é fiscalizador.

- Ele é fiscalizador da fiscalização, é isso?

Todos riram. González entrou. Um silêncio afiado de fuligem no ar. Campos dividiu as pessoas em dois grupos e simulou situações de venda. No meu grupo havia um sujeito metido a malandro que já trabalhava como caixa-registrador na livraria e estava fazendo o processo seletivo apenas para mudar de área. Ele logo antipatizou comigo, quando lhe perguntei se ele não deveria estar participando de outro processo de seleção, e não deste. Simularam um problema e todo o grupo era a favor de esconder do cliente a causa do problema. Eu defendia que era melhor jogar às claras para evitar mais problemas. Uma gordinha de cabelo roxo com um cacho branco na franja e um brinco no nariz disse que eu era “mais chato do que o cliente”. Fui voto vencido, e não senti em momento algum que aquilo pudesse ser bom para as minhas possibilidades.

Mesmo assim respirei fundo. Sempre tive tendência a me controlar nos momentos críticos. E ali estava eu, formado na faculdade, um bom filho, sem graves problemas com drogas, mesmo assim alguém de difícil convivência, com certo talento teórico, tentando mostrar normalidade, diante de um precipício. E não me interessava o trabalho no fim das contas, eu queria apenas poder estar legitimamente naquela cidade, e o trabalho era a forma mais hipócrita e, portanto, a mais natural de se alcançar isto.

Saímos da dinâmica de grupo, nos demos beijos nas bochechas e limpamos as mesmas com as costas das mãos. Seguimos direto aos cigarros e aos pontos de ônibus, diante da cor encardida de qualquer ponto em Porto Alegre. Vomitei um pouco num canto, suei frio, senti falta da minha mãe, pobrezinha, indígena, o intestino comido por dentro.

Reparei outra vez naquelas perninhas de gambito. É como se diz em Pernambuco: pernas de gambito. Ainda por cima, com os pés para dentro. Magra e desamparada, duas características irresistíveis nas mulheres, que me encantam. Muitos pêlos nos braços, negros, grossos, dando a entender um cheiro entranhado extremamente frágil, e sexual.

- Oi, sabe que ônibus eu pego pro Bonfim?

- Eu vou pra lá.

- Você errou o quadro do Van Gogh.

- Pois é, acontece.

- O que foi?

- Fiquei nervosa.

- Acontece, realmente.

Entramos no ônibus, fomos em pé, ele passou lotado.

- Escuta, você dança? É que eu ainda não conheço ninguém. Não saio nunca.

- Não danço. Como vê, sou manca.

E eu poderia apenas dizer o quanto ser manco era antigo para mim. Os olhos alucinados de Van Gogh em Saint-Rémy resplandeciam sobre os olhos da menina de quem eu nem mesmo sabia o nome e, afinal, no fundo não se sabe o nome de ninguém. Eu tinha vontade de dizer coisas bonitas sobre alguns momentos breves do cérebro enfim refeito. Dizer que algumas vezes realmente sabemos o que nos pode encantar, reconhecemos isso, e damos o braço a torcer por isso, e repetimos as mesmas antigas doses exageradas, e desejamos amantes com certa coerência, e nisso reconhecemos os estrangeiros do mundo, por isso queremos os amputados, os mancos e os com a cabeça a prêmio: eles são os mais nobres, com as cordas em volta do pescoço e o grito amputado.

- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?

- Não falei nada sobre filosofia celta.

- Você tem quantos graus?

- Nove e meio de miopia.

- Isso não é muito?

- É quase tudo.



- No fundo, sempre é.

Ela disse também que cantava numa banda de rock. De que tipo? Alternativo. Enfim, de vez em quando ela pintava o cabelo de verde, ou de roxo, e saía derrubando latas de lixo por aí. Uma bela alma, duas almas sem emprego, nem felizes nem tristes, apenas assustados. Com os pés para dentro, as pernas tortas, todos os graus possíveis, pedindo carona para o dia seguinte.

- Você acha possível que a gente consiga o emprego? – eu perguntei a ela, enquanto ela descia do ônibus.

- Você acha que Van Gogh conseguiria? – ela disse, e me mandou um beijinho com a mão.

28.1.11

"A True Account Of Talking To The Sun At Fire Island" (Frank O'Hara)

Frank O'Hara (1926 - 1966)





The Sun woke me this morning loud
and clear, saying "Hey! I've been
trying to wake you up for fifteen
minutes. Don't be so rude, you are
only the second poet I've ever chosen
to speak to personally
so why
aren't you more attentive? If I could
burn you through the window I would
to wake you up. I can't hang around
here all day."
"Sorry, Sun, I stayed
up late last night talking to Hal."

"When I woke up Mayakovsky he was
a lot more prompt" the Sun said
petulantly. "Most people are up
already waiting to see if I'm going
to put in an appearance."
I tried
to apologize "I missed you yesterday."
"That's better" he said. "I didn't
know you'd come out." "You may be wondering why I've come so close?"
"Yes" I said beginning to feel hot
and wondering if maybe he wasn't
burning me
anyway.
"Frankly I wanted to tell you
I like your poetry. I see a lot
on my rounds and you're okay. You
may
not be the greatest thing on earth, but
you're different. Now, I've heard some
say you're crazy, they being excessively
calm themselves to my mind, and other
crazy poets think that you're a boring
reactionary. Not me.
Just keep on
like I do and pay no attention. You'll
find that some people always will
complain about the atmosphere,
either too hot
or too cold too bright or too dark, days
too short or too long.
If you don't appear
at all one day they think you're lazy
or dead. Just keep right on, I like it.

And don't worry about your lineage
poetic or natural. The Sun shines on
the jungle, you know, on the tundra
the sea, the ghetto. Wherever you
were
I knew it and saw you moving. I was
waiting
for you to get to work.

And now that you
are making your own days, so to
speak,
even if no one reads you but me
you won't be depressed. Not
everyone can look up, even at me. It
hurts their eyes."
"Oh Sun, I'm so grateful to you!"

"Thanks and remember I'm watching.
It's
easier for me to speak to you out
here. I don't have to slide down
between buildings to get your ear.
I know you love Manhattan, but
you ought to look up more often.
And
always embrace things, people earth
sky stars, as I do, freely and with
the appropriate sense of space. That
is your inclination, known in the
heavens
and you should follow it to hell, if
necessary, which I doubt.
Maybe we'll
speak again in Africa, of which I too
am specially fond. Go back to sleep
now
Frank, and I may leave a tiny poem
in that brain of yours as my farewell."

"Sun, don't go!" I was awake
at last. "No, go I must, they're calling
me."
"Who are they?"
Rising he said "Some
day you'll know. They're calling to you
too." Darkly he rose, and then I slept.




*** tradução Rodrigo Garcia Lopes ***



"Relato Verdadeiro De Uma Conversa Com O Sol Em Fire Island"

O Sol me acordou esta manhã em alto
E bom som, “Ei! Há quinze minutos
estou tentando te acordar.
Não seja grosso, você é só o segundo poeta
Que escolhi pra falar tão pessoalmente
então
por que você não é mais atencioso? Se eu pudesse
te queimar pela janela eu te faria
levantar. Não posso ficar na área
o dia todo”. “Desculpa, sol, fiquei
acordado até tarde falando com Hal”.

“Quando acordei o Maiakóvski ele foi
bem mais pontual”, disse o Sol
com petulância. “A maioria das pessoas
já acorda querendo ver se vou dar o ar da minha graça
Tentei
me desculpar “Senti sua falta, ontem”.
“Ah, está melhorando”, o Sol falou. “Achei
que você não viria aqui fora.” “Você deve estar pensando porque cheguei juntinho assim”?
“É”, eu disse, já começando a ficar todo quente
pensando se ele não estaria
metendo fogo em mim
no fim das contas.
“Sendo franco, cara, queria dizer que
gosto da sua poesia. Vejo um monte
de coisas por aí e você até que não é mal. Pode não ser
a coisa mais importante sobre a terra, mas
você é diferente. Agora, já ouvi as pessoas dizerem
que você é maluco, eles sendo excessivamente
tranquilos pro meu gosto, e outros poetas loucos te acham
um chato reaça. Eu não.
Continue mandando ver
Faça como eu não dê bola. Você vai perceber
que as pessoas sempre reclamam
do clima, sempre está quente ou frio
demais, escuro ou claro demais, dias
curtos ou longos demais.
Se você fica sem aparecer um dia
já acham que você é preguiçoso ou morreu.
Continue nesse pique, eu curto.

E não se preocupe com sua linhagem
poética ou natural. O sol brilha sobre
a selva, tá ligado?, sobre a tundra,
O mar, o gueto. Onde quer que você estivesse
Eu já sabia e via você se movendo. Estava te esperando
Pra começar a trabalhar.

E agora que você
está tirando os dias pra si, digamos,
mesmo que ninguém te leia a não ser eu,
não precisa ficar deprimido. Nem todo mundo
é capaz de olhar pra cima, nem mesmo pra mim. Machuca
Os olhos deles”.
“Ai ai, Sol estou tão agradecido!”

“Não há de quê e lembre-se que estou de olho.
Pra mim
é mais fácil conversar daqui de
fora. Não sou obrigado a deslizar entre os prédios
até seu ouvido
Sei do seu amor por Manhattan, mas
você devia olhar pra mim mais vezes.
E sempre
abrace as coisas, pessoas a terra céu
estrelas, como eu, livremente e com
um conveniente senso de espaço. Essa é sua
inclinação, conhecida no céu
e que você seguiria até o inferno, se preciso,
o que eu duvido.
Talvez nos falemos
na África, que eu também gosto
especialmente. Agora volte e durma,
Frank, e que eu possa deixar de despedida
um poeminha nessa sua cabeça”.

“Sol, não vai não!”, eu acordei
enfim. “Não, preciso ir, eles estão
me chamando”.
“Eles quem?”
O Sol se ergueu e disse “Um
dia desses você vai saber. Estão te chamando
Também”. Sombrio, o sol se levantou, e adormeci.



* Um detalhe mórbido: este poema foi achado entre os papéis de O'Hara, pelo poeta e amigo Kenneth Koch, pouco depois da sua morte - adivinhem! - causada por um atropelamento de bugre na praia de... Fire Island. O sol bem que avisou.