29.12.09

"com amor, para meu pai"

no fundo, meu pai, te espero

como o cometa sexagenário

que passa enquanto dormimos

e já nem temos mais os sonhos,

sobrou apenas o suor doente

porque no fundo todos nós

esperamos o cometa tardio,

enquanto, cá na terra, os olhos

se desencontram sob a moral

das opiniões sublimes, e o nó

já não pode mais ser desfeito,

teremos que, sem papel, virar

as páginas do nosso silêncio,

abandonar o resto da ternura,

que dava cor às fotos, água

à sede colorida, ao pensarmos

no quanto ainda nos faltava,

com ansiedade nos largávamos

por entre os becos da fome rara

e avançávamos restritos como

óvnis desalentados, sem rumo

entre extraterrestres perenes,

como nós dois, sem asas, e nem

a boca preciosa dos impropérios,

nem a língua que, com delicadeza,
remediava as feridas inevitáveis

que deveríamos ter com carinho,

mas que nos matam indiferentes.

20.12.09

"poema se esvaindo em sangue"

miseravelmente, dessa vez escreverei em vermelho,

miseravelmente, cavalheiros, pois que me faltam

dentes para a poesia, rarefeitas ficaram as rimas

e os olhos, mitos de cetim, justificam as falhas,

que desabrocham no ar do raciocínio amortizado.

estamos nas ruas ao menos, mas a chuva precipita

o fim dos nossos pulmões, a tísica que, seca, avança,

o erro de toda a espécie, e vamos soltos, sem fígado,

colher as flores tardias para uma epopéia perigosa.

somos a reprise de uma antiga estação, mas as roupas

são coloridas, as bandanas franciscanas desempenham

soluções escrupulosas para a completa falta de espaço.

as caras quebradas, a boca de gelo, as curvas fáceis

desafiam o tempo e a saúde, estamos lilases na chuva,

com nossas pernas em transe, à espera do ciclone

prometido por Camus, e quem dera pudesse o Kundera

ver a margem tensa do deslize, tomar o caldo mágico

da fome, quando faltarem as palavras, quando a asma

tomar o corpo, então nós assobiaremos a todo volume,

e pálidos seguiremos com essa tristeza em flor de lótus,

e mais uma vez as senhoras apoiarão nas janelas o busto

com seus lenços na direção dos últimos sobreviventes

que vieram de longe e cuja morte trará a terceira guerra.

"Os últimos instantes de Dylan Thomas"


Peço um copo. Não há nada no copo. Encho o copo. Não há nada no copo. Para onde foge a poesia quando falha a confiança? Tremer diante das baionetas me levou ao humilhante detalhe: suar frio quando se apressa o cadafalso. Por favor, mais um, mas não há mais o que encher. A máscara taciturna não suportou vasculhar a alcova de Rimbaud. Um poeta não precisa ser um homem. Mas um homem que deixa de ser homem jamais poderá se manter poeta. Um poeta precisa das pernas e Rimbaud é prova disso, que tanta falta sentiu de uma, quando precisava mais do que nunca seguir andando. Resta-nos cessar toda a música, inaugurar sem pena o canto funesto. Mas sobra este cigarro pendurado como um fígado cinzento entre os dentes. Lá fora vejo pessoas carregando coisas. Não, acontece o contrário. São carros, motos, a ponta de uma faca. Mas apenas dentro de mim, enquanto pendem os cachos de minha tristeza premonitória diante da testa quente, varam as ruas caminhões me perfurando a nuca. Muito mal vai a situação na rádio, dizem que minha voz envelheceu e não condiz com meus “trejeitos ciganos”. As coisas do coração, os desvios da paz truculenta, tudo paralisado, diante do iceberg noturno. Acabou-se a voz. Mais um, por obséquio. Quando eu era um rapaz... Já basta disso! Sinto que nunca me senti tão jovem, assim desnorteado – será isso uma corcunda ou a mochila nas costas? Resta fazer jus ao colete milimétrico, à paz convulsiva que explode feito bomba, deixar cair outro cacho e pedir mais um copo. A cor dentro do copo, esta que busquei. Frente à face efetua-se a brincadeira perigosa, a torre de vidro que em breve não suportará o peso criado para enobrecer o talento. Resta embaralhar palavras como aqueles macaquinhos de caixa que retiram papéis da sorte. Lembro-me bem dos olhos dos animais de circo. Um copo se quebra pelo chão e de repente reparo que olham para mim, olham para mim sempre do mesmo jeito: “Por favor, retirem esse homem daqui”. Mas olhar é senha para o precipício, os ossos precisam semear a dança da morte. Sempre a minha maior habilidade: revelar a tristeza por trás do que faz rir. Mais um, traga dois de uma vez – derrubarei um terceiro. Estamos aqui, afinal, para isso: derrubar e trazer mais. Sou um dos que trazem de muito longe, preciso do cigarro preso como faísca entre os lábios. Um senhor bondoso se inclina: lembra meu pai. “Filho”, ele diz, “não acha que já foi demais?” Alguém suspende minha cabeça e só penso no orgulho da barreira a ser rompida. De qualquer modo, falta-me estômago, é preciso dar um basta nisso, companheiro traga mais uma. Sei que agora ela fala sozinha diante de um muro, com as roupas íntimas à mostra. E quem escutará seus gemidos inconstantes quando minha voz se apagar? Criei os embusteiros, os bêbados desequilibrados com poéticas justificativas. Tenho uma convicção sem culpa. Trouxe a morte mais uma vez para o colo, derreti os candelabros com meu sopro vulcânico. Verdade seja dita: temo que fui traído. E não paro de pensar no bigode, na boca de tartaruga de Igor Stravinsky. Sim, mas é claro, pode me trazer qualquer coisa. Olham-me como um fantasma: é preciso arregalar os olhos para ficar na história. Finalmente lembro que falta pouco para atingir o ápice. Os amigos, aqueles malditos materialistas de Oxford. É da minha alma que se alimentam. E eu, de que me alimento? Peça mais uma, faça o favor. Novamente o insistente senhor se aproxima: “Está querendo se matar, meu filho?” Explico a ele, reitero que sou de uma força vulcânica, que fui traído, sim, mas não se humilha jamais aquele que é humilde por natureza. Agora estou diante da natureza, não há quem possa me questionar. Dou beijos como dou murros, eis a frase verdadeira. As mulheres não entendem isso, as mulheres, as frases que amamos. Realmente, dê-me a dose de qualquer coisa, baterei o recorde, criarei meus filhos. Sei que preferem os delicados de muitas facetas, sei que sou o que não seria “para a família”. Com mais um drinque há gente falando meu nome, dizendo sobre poemas que não escrevi. Mulheres se derretem, estudam meu teatro, me defendem injustamente.


Talvez não seja assim tão mau. Sim, é terrível. Vacilo em pequenos períodos de umidade casta, mal posso olhar a morte nos olhos, ela não me deixa, aquela mulher gorda ali no canto, com feições de Gales, vermelha, aqueles peitos enormes, unidos e saltando para fora como um gigantesco sol, dois, aos quais não tenho mais direito, estou distante como um verme, distante e indissociável, eu o que sabe, principalmente agora, cheio de uísque, olho para os pobres coitados – estão tão contentes, derrotados – que sabem menos ainda que eu, pobres corações dentro desse vácuo entre os homens, e de repente dou por mim: estou no bar, esse é o meu purgatório, devo cumpri-lo, trata-se da passagem para o outro lado, mas num minuto estou aos gritos, em pé sobre a mesa, tentando arcar, pobre de mim, com o mito de William Shakespeare, mas não se deve colocar o demônio no colo, disso eu não sabia até chegar aqui.


Um sujeito gordo com gravata borboleta se aproxima de mim. Sinto raiva, ele se parece com o que me tornei. Sem nenhum escrúpulo ele chega junto, se apresenta como O MAITRE, quer levar dali meus copos, meus troféus magníficos, a essa altura, meu único apego. Obviamente não deixo que ele o faça. Solto em cima dele os meus cachorros, o retrato do cachorro quando velho, puxo o gordo pelo colarinho ensebado, cuspo na cara dele e digo: “Meu amigo, você é capaz de contar quantos copos eu tenho aqui na mesa?”. Aparentemente ele se retrai, nunca viu nada parecido. Olha para mim com os olhos estalados, com uma calma inadequada, imprópria para o momento. “Meu senhor, Senhor Thomas, vejo aqui 15 copos, o senhor já quebrou três, o senhor precisa ir mais leve, se acalmar um pouco, tome um copo d’água, vamos afrouxar esse colarinho, por favor, o senhor é um escritor reconhecido e temos muita satisfação em tê-lo aqui no bar, mas, por Deus, controle-se”.


Aquilo me atingiu feito uma pedrada. Aquele homem, não de todo deselegante, mas muito suado, pedia que eu afrouxasse o meu colarinho e, vejam bem, ele mesmo o fez por mim. Me tratou como criança quando contou os copos – quantos eram? –, 15 copos, então me fez de filho quando disse “tome um copo d’água, controle-se por favor” e, finalmente, me tratou como poeta dizendo que eu era reconhecido e deveria por isso me cuidar. Vejam bem, um verdadeiro nome da cultura ocidental, ele chegou a dizer, e até mesmo convocou Deus, aquele asno, um assunto no qual eu já nem pensava mais... É fato, penso cada vez menos. Pensar é o que faz sofrer e, ao mesmo tempo, impede que eu me suicide. Suando demais... Um papel, preciso imediatamente de um papel! Dê-me aqui um guardanapo!


Oh pure worm of us, do not delight
With the fear of our souls, please don’t fight.
Give us back, in fragments, the gold
That once has been the ground for us to hoe...

“Senhor Thomas, Senhor Thomas, o senhor está bem, Senhor Thomas?” Gritos. Telefonemas. Jornais. Ambulâncias. Autópsia. Hemorragia alcoólica. Eternidade, enfim.

14.12.09

"walter franco"


foi com muita relutância que cheguei até aqui,

porque gosto de ti, então resolvi me decidir

a deixar coisas de lado em favor de outras,

porque li uma carta em que Paulo Leminski,

o grande Paulo Leminski, judoca e ilusionista,

vociferava, na carta ele falava muito mal de ti,

mas via-se que algo nele havia sido destruído,

e via-se também que isso tinha a ver com amor,

o amor que ele tinha por você e o amor morto,

porque ele falava que você era isso e aquilo,

eu nem decorei as palavras, mas eram de morte,

e eu pensei, meu deus, agora eu preciso escolher,

e eu escolhi você, meu caro, o que é alienado

e fala sobre a doçura dos elefantes e o lindo blue.

eu escolhi você a Paulo Leminski e isso doeu,

foi como se estivesse abandonando um braço

pela janela do trem, mas adeus Paulo Leminski,

eu disse a mim mesmo, pois de que vale a poesia,

se vivemos fora dela e, fora dela, nos matamos?

"canção para Roberto Piva"

parece que recolheram, a pau e pedra, os amigos pederastas,

os barbudos que povoam os mictórios atômicos, estilhaçados

ficaram os versos, continuam encostados na parede, a solidão

permanece nua, amarrada ao poste, e Piero della Francesca

não pode mais dar o abraço plurissexual, o apito disentérico

das fábricas se tornou aquário desordenado da imaginação.


te vejo tão sério na página do jornal marrom, entre as grades

de bambu, dizendo: NÃO SUPORTO SÃO PAULO, e rumo

à extinção da luz mesclamos vozes barbitúricas, e os bolsos

escancarados da mente provocam os anjos de enxofre, e das

janelas do crânio observamos o corpo suicida de Modigliani,

já Garcia Lorca penteia pela última vez o crânio martirizado

enquanto a noite varia, as estátuas doentes, com conjuntivite

borram a nesga preciosa por onde escaparemos feridos, nunca

mortos, e nos arrastaremos satisfeitos na paisagem de morfina.

13.12.09

"2009"

não quero mais saber de ti 2009.

já te dei o que podia, não o bastante
pra você lembrar de mim, fora o livro
que perdeu pra Colasanti, mas eu juro
que aqui não farei mais nenhuma métrica,
porque, 2009, foi cansativo desde o começo,
com tuas palavras românticas em bolhas,
com tua edição de livro, tua calma fajuta,
para antecipar objeções tardias dependentes
da válvula que começa a apresentar as falhas
de uma sigla preciosa, um instinto submerso,
que me faz dizer “EU TE NOMEIO, 2009”
como o ano em que os poemas não sairão
mais retos e secos contra a página vadia.

será a coisa mais vaga, não charmosa,
que subirá pelas paredes, verde musgo,
e estaremos em Baden, São Petersburgo,
jogando dados contra nossas mulheres.

te verei arder pelo beco insólito da pele,
te darei de mamar, talvez, farei um muro,
e te levantarei como um bebê natimorto.

as mulheres terão mais o que fazer
e seremos nós a boca do precipício.

estarei atento desta vez, quase brega,
não tamparei os ouvidos à boca maior.

mas nunca mais estarei contigo, 2009,
já que teus fogos só reafirmam aspas,
e a solidão hoje é nossa, e de mais ninguém

10.12.09

"elegia ao capote de gogol"




existe, é claro, aquela cor cinza,
o frio inigualável de Petersburgo.
funcionários reles, paredes de musgo
somatizam o fedor dos dentes podres.
o salário pequeno, os feitos seguros,
aos quais nos dedicamos sem comer.
nós todos viemos de ti, e roubados
somos diariamente e nem sabemos
quanto temos da nossa própria loucura,
se o inverno será frio dento de casa,
se os ladrões tomarão a cama doentia.
os espelhos serão ventosas coniventes,
estaremos no fim doutra noite de vodca
e assobiaremos canções folclóricas, rindo,
porque, felizes, não sabemos que hienas
rondam e falam e dizem elogios básicos,
para depois nos arrancarem a imagem
do que nem sabemos que somos e nem
quereríamos saber, não fosse este frio
que faz por dentro da casa às escuras
quando gritamos vossa excelência! –
perdoe-nos por sermos nossa história.

9.12.09

"the fool on the hill"

de repente tudo pára e me pergunto:

“o que eu deveria me perguntar?”

as coisas passam rápido para o corpo

mas a cabeça pesa no arraste lento

da hora que passa rápido pela pele,

e é estar sentado diante da chuva

para se pegar perguntando o que

afinal se deve perguntar quando há

essa contradição violenta, tão leve,

do corpo que supera o cérebro e se

desmancha leve dentro de um fundo

comum a ambos e eu, nem cérebro

nem corpo, espero a chuva passar

como se aquilo fosse uma grande

revelação quando é apenas tédio,

essa rica, antiga mania de separação.

"chuva"

a felicidade tem

esse lado ruim:

quando acaba

a gente fica

triste.

7.12.09

"taís"




com a barba vermelha banhada em sangue,

dirijo-me à gruta da tua vontade liquefeita.

os olhos já não esperam a carne do vacilo,

o corpo treme, mas as mãos, enfim, unidas

massacram com delicadeza tua pele úmida.

tento falar das coisas do amor, mas tu fechas

com tua mão minha boca e exiges um pouco

do veneno cotidiano que nos salva e arrasa

as paredes do tédio diário, e nós estamos ali,

nos banheiros apertados, agarrados à volúpia

que não exige palavra, mas sim o desperdício

com o qual faremos a comunhão das espécies

e pularemos etapas, nos graduaremos ciganos,

não precisaremos talvez mais ter que começar

os poemas com as barbas banhadas em sangue.

estaremos tortos enfim, para sempre esgotados,

e nosso sorriso satisfeito calará todos os poetas.

28.11.09

"Ferreira Gullar vai ao shopping"

vejam bem: consta que o poeta Ferreira Gullar foi visto

saindo da livraria nobre, que fica dentro das entranhas

do shopping classe média alta, carcomido, disseram,

às vésperas dos 80 anos, mas ainda elegante, a postura

típica dos guerreiros homéricos, mas só o que importa

é que ele saiu da livraria, desceu pelas escadas rolantes,

repetitivas, tentou talvez observar de soslaio a calcinha

de alguma bela moça desavisada de que havia um poeta

no recinto, um dos grandes, segundo consta, e no andar

de baixo ele, o que escreveu o famosíssimo poema sujo,

deu uma volta inteira, provavelmente pensando no filho

internado no manicômio (estaria ele bem?) e nas dívidas

a serem pagas com prêmios literários frios e aguardados

e, talvez transtornado, sabe-se apenas que o poeta entrou

um tanto confuso, no salão Oficina do Cabelo, e parece

que uma daquelas senhoras muito ricas, mas instruídas,

falou baixinho na orelha da amiga: “aquele não é o poeta

Carlos Drummond de Andrade?”. mas estas são apenas

informações supérfluas, importa mesmo é que ele entrou

no salão Oficina do Cabelo, pediu licença como autêntico

maranhense, então disse, sob a vasta e ainda bela cabeleira:

“por obséquio, senhoritas, queria saber onde fica a livraria”.

19.11.09

"piva"

"A morte é um refrão no crânio sem janelas"
(Roberto Piva)





existem os ovos, Piva, sim,
existem os ovos, como não?
não se preocupe, nós viremos
para buscá-los, faremos festa,
água pura cairá de pedras feias
e estaremos juntos, enfim, nós,
por entre os bambuzais do caos.

também amputaram-me as flores
do crânio com urgência criminosa.
também me queimaram os serafins,
mas a canção sem vírgula permanece
como o grito que salta da gaiola surdo
a cada pássaro que perdemos na rede,
na difícil rede de nossas vagas matrizes.

nós estaremos juntos, tão sós, que não
desgrudaremos mais as mãos, jamais,
e, tenho certeza, nós permaneceremos
de orelhas em riste, secos e sedentos
por uma catástrofe que limpe todo
o tédio que articula as artérias lilases
dos jovens bailarinos desconjuntados.

14.11.09

"bromélia"



agora será bem curto, há pouco
papel, disposição de bancário,
mas a letra ao mudar de cor dá
ao sabor a real temperatura
de uma bromélia, seca na sala,
mas o espaço, de fato, diminui
à galope como o ritmo inconstante
da flor que sabe que, mais cedo
ou mais tarde cairá pela janela
e trará o som surdo de algo gritado
do que não sabemos a verdadeira
tinta rubra nas bochechas saciadas.

12.11.09

"luana"

existem narizes que codificam a existência.
e não são só narizes, são olhares ávidos
em direções opostas, e além do nariz,
há também o cabelo, que não é um cabelo,
mas a Mata Atlântica, e aqui está a vontade
reprimida de se lhe fazer num grande coque,
olhar a nuca que anuncia graves presságios
e tombar na cama, como se fosse apenas
mais um nariz, e a pérola por dentro da boca
explicaria a poeira cósmica que justificaria
toda flor entre dentes, qualquer ato de amor.

"rúbia"

você me
olha sem
querer
nos olhos
e já não sei
se tenho
olhos para
ver nos olhos
o que não
vejo mais.

"feito máquina"

para Olivetti

então escrever sobre uma máquina de escrever,
uma que seja ao mesmo tempo ágil e calma,
que fira ou seja ao menos capaz de ferir mortalmente
e, de repente, desmanche em equívocos sutis
um pouco do resquício do que sobrou da fantasia.
mas agora não é tempo de pedir desculpas.
isso aqui, afinal, é uma máquina cruel e limpa,
talvez pare de repente, não sei, talvez a tinta
falte antes de se dar por sepultada a inocência.

ah como perdemos, como perdemos todos os dias!
mas não devemos admitir, admitir, isso jamais,
porque somos máquinas de escrever e escrevemos
apenas sobre uma máquina de escrever, uma velha
que nos trará do longo suicídio diário de volta
para onde criamos uma vez a falha toda nossa
pela qual ainda corríamos, loucos, pelas ruas,
incríveis ruas que um dia nos deram o longo aviso
enquanto caíamos de quatro diante de possibilidades
remotas e conclusivas sobre o que, enfim, ficaria
melhor assim, sob aviso, perene, feito máquina.

8.11.09

"essa fera chama-se Julia, e escreveu o poema abaixo"

Jornal

Não te vejo mais,
nas salas, nas ruas, no metrô
na esquina onde eu te deixava e te buscava todo o dia
e na padaria onde a gente costumava tomar café
e você com ar severo no olhar me fazia
prometer que eu nunca tomaria adoçante.
prometi.
depois prometi outras coisas.
que até hoje ficaram intactas dentro de mim,
algumas nem tanto.
talvez você não saiba e andou me
chamando de puta por aí.
te vejo sim é nas revistas e nas notícias de jornal,
não gosto, acho que você se envenenou,
murchou, esmiuçou-se pela dor a fora e me esqueceu.
mas talvez não tenha esquecido que me esqueceu
e isso te fira e te lembre todos os dias
quando te vais dormir à cama.
sei que nas ruas procuras por mim,
como eu que de vez em quando te olho
em muitos rostos.
mas com a tua textura àspera que tomou
nos novos dias vou me esquecendo até de
te esquecer,
até o dia que eu te reencontre,
você me beije,
e eu não te reconheça mais.

2.11.09

"filho"

o primeiro amor morreu.
por enquanto não temos
nenhum outro disponível,
mas, veja por este lado,
temos um campo submerso
de possibilidades débeis,
até mesmo os raríssimos
segundo, terceiro amor.
amor agonizante é pecado.
dar-lhe, portanto, um tiro
na cabeça – e só a morte
da carne entorpecida trará
de volta à pele os poros,
por onde suar novas regras.
e o que chamam paixão nua
pode ser você e eu, avante,
de novo dois desconhecidos,
dando a mão para atravessar
a grande rua difícil, sem ver
que o mais por debaixo fica,
leite para os sedentos lábios
da primeira morte madalena.

1.11.09

"gastrite"

repare no que você come
e
pense no que você pensa.

31.10.09

"casa na colina"

acho que não devo dizer que as mãos me cansam.
chega dessa conversa rancorosa, desse cânone
que em nós dissolve imensas paredes, escombros.
hoje direi apenas: cansei dos homens, sou mais um
que vai para o alto da colina, onde ocorrem mortes
forçadas por um tiro equivocado e um pouco de pó
que se uso visto os chinelos e desço para a margem
e colho flores de segunda categoria na saída da nova
morada onde estão estrangeiros, famintos e loucos,
e sou um pouco dos três, mas ainda me sinto pálido,
com vontade de sair e conversar com os bombeiros
e saber da mulher que mora à porta ao lado e traz
um bebê no colo e outro no ventre e é linda e tem
um filho de olhos azuis e uma origem que me diz dor
e carrega com vontade um galão de gasolina até ali
e penso “ela poderia muito bem incendiar tudo e eu...”
e eu não sei dar fim à frase quando vejo que de fato
abandonei as coisas retas, com pólos reconhecíveis,
e estou aqui, cá com meus trejeitos de cem frases,
e uma frase arrebatadora poderia dizer muito, Elias,
mas “não são os pensamentos mais profundos aqueles
que por mais tempo influenciam o nosso mundo”.

agora os amigos, espero, surgirão das mangueiras,
e teremos falta de comida, falta de água, melancolia
suficiente para cantarmos sozinhos durante o banho
músicas que não gostamos, e que lembram nossos pais.

27.10.09

“os viciados”

eles já não precisam mais de nós
nem mesmo no Harlem americano.
sedentos e pálidos caminhamos,
cheirando a caramelo, nós os que
se atiram cegos na primeira chance,
e se arriscam por trás de pilastras.
peço a gentileza de atravessarem
em silêncio, em reverência retirem
todos os seus chapéus e escarrem
no chão pela passagem meteórica
dos que suportam a terra nas costas.
não pensem que vieram de longe,
estão nos quartos, cheirando a mofo,
atraídos ainda pela prima vertigem.

"elegia do recife"

faça-me escrever em lágrimas,
recife, e limpe toda a incompreensão
da saudade forçada nas virilhas.

serei agora forte, como tuas ruas
semi-asfaltadas, os paralelepípedos
da tua dor, onde enfiei em sangue
a âncora do meu tesão, nos corais.

"maracaípe"

tem coisas que os olhos vêem,
o coração não pode mais sentir.

que tristeza é ter
a felicidade nos braços
e a síndrome de tempo algum.

existem momentos
em que não existimos,
somos o parado da existência.

e o tempo é só um sem ruído
que regurgita nas entranhas
do esquecimento.

"recife antigo"

sou marinheiro encalhado,
cheguei aqui aos pés da besta.

há anos querendo
voltar para Santos.

sigla comum é L.P.P.:
loira do pentelho preto.

aqui me transformei
num autêntico boquinha de cais.

aqui, enfim, reparei
que só se pode amar
o que for passível de
ser destruído em pó.

7.10.09

"kafka"

Kafka realmente carece de qualquer vaidade de poeta, jamais se gaba, não sabe se gabar. Enxerga-se como sendo pequeno e anda com passos pequenos. Onde quer que pise, sente a insegurança do chão. Ele não nos leva; enquanto estamos com ele, nada nos leva. Assim, ele abre mão da farsa e do ofuscamento dos poetas. Suas próprias palavras perderam seu brilho que ele percebia muito bem. É preciso acompanhá-lo andando a pequenos passos e se tornar modesto. Não existe nada na literatura mais recente que nos torne tão modestos. Ele reduz a presunção de qualquer vida. Tornamo-nos bons quando o lemos, mas sem ter orgulho disso. As prédicas orgulham aquele que se deixa arrebatar; Kafka abre mão das prédicas. Não transmite os mandamentos de seu pai; um estranho bloqueio, seu maior dom, permite que ele interrompa a cadeia de engrenagem dos mandamentos que vão sendo passados de pais para filhos. Ele se priva de sua violência; aquela energia exterior, animal, evapora nele. Em compensação, o seu conteúdo o ocupa tanto mais. Para ele, os mandamentos se tornam dúvidas. Entre todos os poetas, é o único que o poder não contaminou de alguma forma; não existe nenhum poder, não importa a forma, que seja exercido por ele. Kafka despiu Deus dos últimos vestígios de paternidade. O que resta é uma teia densa e indestrutível de dúvidas acerca da própria vida e não acerca das pretensões do criador. Os outros poetas imitam Deus e se comportam como criadores. Kafka, que nunca quer ser um Deus, tampouco é uma criança. O que muitos acham assustador nele e o que também me deixa intranquilo é o seu estado adulto constante. Ele pensa sem mandar, mas também sem brincar.

Diante de algumas figuras do espírito, e são muito poucas, o meu Eu para completamente. Nem são aqueles que mais realizaram; estes, ao contrário, apenas nos estimulam. São antes aqueles que enxergaram por trás de sua realização coisas mais importantes e inalcançáveis, precisando encolher até ela desaparecer.

Entre essas figuras está Kafka, e assim ele tem uma influência mais profunda sobre mim do que Proust, que realizou incomparavelmente mais.

De que te envergonhas tanto ao ler Kafka? - Envergonhas-te de tua força.

Essa interminável autodegradação diante de Kafka:
por estar comendo sem escolher? (nunca me preocupei em saber o que estou comendo)
por me esforçar por uma exatidão da qual sou incapaz? (só conheço a exatidão dos meus exageros)
porque ficou comprovado que posso ser feliz e não me privo disso?
porque sei me comunicar de forma leve e sem reservas, e sinto que isso lhe teria repugnado?
porque não lhe foi permitido dizer de si cobras e lagartos?
porque me deixei contagiar por ele e troquei o meu próprio modo de me odiar pelo seu?

O som que passa em Kafka: como fraqueza sonora. Mas não é fraqueza, é a renúncia ao Além, e o que sobrou foi a sonoridade da renúncia.

das anotações de Elias Canetti.

24.9.09

"ironia"

eu não preciso
me preocupar
porque eu tenho
que me preocupar.

6.9.09

"a caça ou domingo de chuva"

viver é perder mais do que se sabe
e ganhar menos do que se inventa.
difícil guardar a sensação do vôo
rasante e ser ao mesmo tempo presa
fácil – e eu confesso que tenho
em mim a inclinação monstruosa
de colocar lugares em toda coisa,
amputar as asas e pular em branco
sobre as nuvens de uma consciência
provisória de chuva domingo à tarde.
depenar as palavras que dissolvem
antigas ruínas, fundamental gaiola
que, ao contrário, é fuga, idéia rala,
sensação do tempo em que as asas
batiam com violência, pele no ritmo
do susto que antecipa o real abate.
mas as presas então estavam vivas
e a caça não era uma prática ilegal.

“maradona”

mais uma nota no tango trágico de Maradona.
esta noite me sinto um pouco argentino demais,
as conversas se mancham com sorrisos sociais,
em toda curva vejo um senhor de sobretudo,
uma rua imunda e, basicamente, este senhor,
e além dele, um rapaz de óculos que oferece
drogas às crianças e aos adultos uns pequenos
panfletos com belíssimas prostitutas rubias,
morochas, universitarias
, mas não é só por isso
que me sinto argentino esta noite, é também
porque são apenas curvas e sentidos provisórios,
e disso, se você não for Maradona, com tangos
e tragédias, restam apenas os mesmos sorrisos
sociais com que abrimos o armário do banheiro
e escolhemos a melhor posição para morrer.
vá, portanto, Maradona, pelas ruas de Rosário,
vá atrás do sol fácil da tua vertente de Ícaro.
estarei contigo, aqui, de alguma forma, enquanto
sem gosto algum no céu da boca, comemoro
com meus compatriotas o reino óbvio do teu pó.

2.9.09

“segundo poema todo teu”

entra na casa, esta casa onde, por tantas
vezes, entraste sem perceber e, cada vez
mais dentro, saías de vez, mas agora não
sabes mais como sair – olha bem os móveis,
sente o peso das horas que, pela primeira vez
se apresentam arreganhadas, feitas de tecido
sem graça, soma de farrapos – mas olha bem.
não serão mais tuas estas horas, as paredes
te dão as costas, as portas de correr emperram,
estás sozinho onde tantas vezes disseste
a ti mesmo: “estou completamente sozinho”.
mas agora que estás, então não dizes nada.
percebes o ridículo: falas na segunda pessoa.
espera um pouco à porta, não olhes para dentro
do quarto pequeno, onde te espera à toa o corpo.
o ventilador roda noutra direção, e ali está ela,
que espantava as hienas e falava com mil sóis.
não te diz respeito o lugar para onde tantas vezes
fugiste sem pés de uma realidade seca, infame.
adeus ao quadro de Chagall, ao homem flutuante
em frente à Torre de Paris, adeus, Neal Cassady,
Kerouac, que primeiro te ensinou o abraço e,
acima de tudo, adeus aos braços, que se abrem
murchos para uma nova vertigem seca, sem pulo.
de costas para o muro ficas parado, voltas à porta:
não há mais porta, os caminhos se afunilaram
em gargantas abertas por navalhas de ferrugem.
não serão mais tuas estas horas e, em breve,
não serão mais tuas estas lembranças, nem tu
serás mais de ti mesmo, pobre órfão fugitivo.
ficaram algumas marcas de amor pelo chão,
agora ficam aqui lágrimas irreconhecíveis,
sabe-se lá de que são feitas, mas escorrem
como tudo o mais escorre para fora, adiante.
adeus incensos baratos à meia-noite pálida,
adeus às cortinas prateadas que escondiam
um segredo só nosso, e nem mesmo nosso.
adeus cigana de tantos dentes – diga adeus.
adeus Elis Regina, pintada por Andy Warhol.
adeus mesa feita de um antigo baú, adeus,
bares de esquina, cartas invisíveis de amor,
viagens não realizadas, concretizadas na cama,
até um dia bairro de Laranjeiras, vinho chileno,
adeus à toda intensidade da carne crua cansada.
“o mais profundo é a pele”, você dizia imitando
Paul Valery, mas agora adeus Paul, adeus pele.
ela que se encolhe agora na cama, sonhando
com tempos talvez mais leves, mas, meu amor,
se a vida não foi leve para nós, foi por dádiva,
porque somos os que podemos agüentar o peso,
somos os beneficiados com o espanto e a cura.
principalmente, agora, adeus manta africana,
com que ela te recebeu pela primeira vez,
jogando em seguida a chave pela janela.
aqui está a chave sobre a mesa, e dos dois
restou um livro de poemas, um livro médio,
um poema só dela, dos que fazem chorar,
e a chave do peito, essa que não devolverás,
essa que de tanto abrir e fechar fez carne viva
do que antes chamavas miséria, mas agora
chamas primeiro grito, susto que não se diz,
e não falarás mais nada, apenas amarás a ela
em preto e branco, como nos filmes antigos.

31.8.09

"metáfora"

somos eu, a arena, o touro.
arena mínima, touro enorme.
eu danço na frente do touro,
tento apaixoná-lo por mim.
há doçura no olhar do touro,
doçura, loucura, catástrofe.
somos parecidos de certa forma.
mas eu sei disso, ele não sabe.
meu bailado parece irritá-lo,
faz o touro andar em círculos.
paro na frente dele, mas não
há como rezar, não há tempo
para se fechar os olhos, sou
levado a correr em círculos.
fora da arena os olhares frios,
sei que deixam o touro tenso
tanto quanto a mim, que tenho
menos pernas e a pouca sorte
de saber que, com frieza, eles
riem por dentro, se divertem.
além disso, o touro não sabe
como estou sozinho, na arena
que, maior que a arena, tem
o tamanho do mundo inteiro.
o touro não sabe o tamanho
do mundo inteiro, eu também
não sei, mas, por azar, posso
imaginar: vantagem do touro.
o touro não sabe da solidão,
mas, melhor que eu, ele sente
a brasa na pele todos os dias.
compreende melhor a saliva
que lhe escorre pelo focinho.
começa a corrida, somos dois
desesperados, atrás da trégua
que nos trará água, um cafuné.
não há água, cafuné: há palmas.
nem o touro nem eu entendemos
as palmas, o que nos aproxima.
sabemos apenas que as palmas
significam “nos tirem do tédio”.
estamos juntos, de certa forma,
e tenho vontade de abraçá-lo,
passar de leve a mão na cabeça
do touro, mas ele não tem mãos
para passar na minha, só sabe
que deve me espetar seu chifre,
só conhece o vermelho depois
do espanto, enquanto eu canso,
despisto o touro como posso,
peço calma, mas ele não fala
a minha língua e os olhares
frios indicam que nem mesmo
eu falo minha língua, e corro,
dou voltas, me desequilibro,
caio, levanto, corro ainda mais.
fugimos um do outro, o touro
e eu, mas as palmas, a frieza
são grandes inimigas, nos levam
a fazer o círculo tantas vezes,
o mesmo círculo, sem motivo.
em tempo, as palmas no fim
deixam-nos, a mim a ao touro,
como mestres com suas cartolas
e delas tiramos a paz evitada
já que nosso couro é a bússola
que justifica o tédio público
e nos faz seguir em círculos,
agora uma vez mais extasiados.
enquanto abandonam a arena,
somos dois corpos exaustos,
repletos de morte e passagem.
as cercas já não nos convidam
à fuga silenciosa dos presos
perigosos, somos apenas dois
iguais, com sede de aplauso,
e estamos os dois, no mundo,
entediados de nos sabermos
fortes, fora dos planos, enfim.

30.8.09

"Os últimos instantes de Tim Bucley"


É com extrema dificuldade que acendo o cigarro. Não sei ainda o que está me matando. Penso nos cabelos loiros de meu filho, sei que também ele não escapará, terminará com as calças encharcadas e o estômago inchado de peixes. Minha mulher, ela nunca me entendeu, e apenas isso facilitou o nosso amor. De outra forma não haveria amor, esse élan, não haveria afinal este cigarro na boca. Só os imbecis fumam sem motivo. Adoraria ser um imbecil. Palavras tão gastas quanto a lâmina que decepou Garcia Lorca. Imagino as mortes sempre a facadas.

O frio que faz, sei que não vem de fora. Apenas sei que chove, foram muitas gotas, sinto as gotas escorrerem pelos meus cabelos. Tão bonitos eram os meus cabelos. Fartos e volumosos. “Você parece o Tim Buckley”, ela dizia. Onde estará ela? Tanto tempo não nos vemos. Ou será que foi ontem? Repentinamente me vem a imagem de Dostoievski se agachando para apanhar a pena, rumo à última hemorragia. Dostoievski tinha as pernas curtas e a testa larga e andava sem mexer os braços ou dobrar os joelhos, como se ainda estivesse com as correntes em volta do tornozelo na Sibéria. Imagino como seria Dostoievski sem camisa, os ossos do tórax protuberantes, as costas curvadas em eterno suplício epilético.

Tento com toda a força – que de todo modo míngua – lembrar a besteira que fiz, a música que não completei, estrofe mal lavada. Não queria cantar mais, talvez seja isso. Morre-se quando se deixa de cantar, e eu não queria cantar mais.

Mas não estou morrendo, não é possível. Apesar da respiração dificultosa. No mais, sinto-me tão bem. Tento alcançar a infância, milenar tradição dos moribundos. Lembro da época em que brigávamos demais. Os motivos se despedaçaram, o cancro permanece. Ficava tão deprimido que lia continuamente Carta ao Pai, do Kafka, e dizia que ela era o motivo de toda desavença. Precisamos todos de um motivo, uma carta que seja, que nos cuspa à face. Acredito que as pessoas enlouqueçam por terem muitas opções, inclusive a Carta ao Pai, do Kafka, como concreto para a desavença.

Engraçado ter alcançado o papel. Parece algo pressuposto, que se tem que fazer. A embriaguez me impede de pensar direito, e nem bem tenho muito o que dizer, mas sinto-me levado a dizer qualquer coisa – talvez que a embriaguez seja apenas um assumir sem ironia.

Se o cérebro funciona à toda, o corpo hesita. Veste a roupa, meu amigo, veste a roupa e sai. As pernas usam patins e não escolhem a direção. Palavras nunca foram o suficiente e aqui estou, sem palavras, explicando coisas que se contradizem.

Há dias em que o sol está tão forte e a luz é tão bonita, que não resta mais nada para nós. É horrível, ele revela sem rodeios a desgraça da contradição humana, o mito de Ícaro talvez. Queremos a luz, queremos ser luz, ou ao menos olhar para ela, mas quanto mais perto dela estamos, mas inadequados nos sentimos. Como alguém que, mesmo não sendo muito feio, perto de alguém lindo, torna-se horrível.

Talvez eu seja mesmo Tim Buckley, já que tenho marcas azuladas nos meus braços e pernas. De fato, sou Tim Buckley diante das pedras que se dissolvem em mágoas e blues com gemidos falhos. Há um homem na minha frente. Parece conhecido, parece miragem. Ele se afasta de repente, se afasta e esconde alguma coisa. Talvez o vício nos transforme em alguém que se parece com alguém que vagamente conhecemos, e somos nós. Talvez a morte, essa coisa doce.

Sinto vontade de ir atrás do homem que há pouco estava na minha frente, dizer a ele que não terá tudo sozinho, que preciso de mais, um pouco mais para ser menos vagamente o que já não reconheço. Mas ainda está nítido na memória: “Você se parece tanto com Tim Buckley”, me disse ela, uma vez. A memória de repente é isso. Lembrar de quando éramos parecidos com o que já não somos.

Maldito sol, melodia que estoura os tímpanos, que nos arrasta na direção do tempo. Uma queda no tapete e é tudo. A última visão da cópula entre pássaros. Coçar a cabeça, lembrar o antigo gesto, sonho de mulheres e homens duvidosos. Somos as cinzas de uma nova era. Coçar a cabeça e, de repente, cair. Cair irremediavelmente, atingir por fim o método. Beijar o sol com escorbuto. Dizer te amo, deixar. Rimbaud.

28.8.09

"minuto de sabedoria"

"A frase que se segue é falsa. A que a precede é verdadeira." (Epimênides)

"Amor é dar a alguém que não quer aquilo que não se tem." (Lacan)

27.8.09

"sumiu belchior"

sabe-se apenas que belchior
quebrou o punho há dez anos.
não sabem dele família, mpb,
parece que há dívidas: 18 mil,
em carros abandonados, ócio.

outros dizem: tirou o bigode,
viu gauguin, pintou-se demais,
sem bigode frente ao espelho.
letras de fé total, de inaptidão,
as fizeram-se concretas, enfim.

dizem más línguas que lê mão.
chegou ontem a vaga notícia
de que sua obra fica sem fim.
esperei horas, belchior, dias,
pensando no paradeiro de mim.

23.8.09

"poema feliz"


estar aqui é recolher as lágrimas
de um drama transposto em muitas cores.
passa um pouco da meia-noite
e é como se fosse a primeira vez.
sinto vontade de escrever algo bonito,
que não seja grandioso, mas faça alguém feliz,
que traga talvez algum primeiro sorriso.
um quadro de Chagall, com minha mãe no centro.
ela tinha um rosto bonito, que justificava a guerra,
um rosto contraditório, presságio de papoulas.
a sensação atual é de patinação no gelo.
penso nos meus amigos, acredito que todos,
de alguma forma, seguem bem seus caminhos
e isso, no frio atípico de uma cidade silenciosa,
me traz um conforto mágico.
onde estarão? será que ainda pensam em mim?
penso neles todos os dias, mesmo com dores no estômago,
e a eles dou de presente uma esperançosa distância.
a proximidade destrói, estou cada vez mais certo disso.
os carros passam velozes e imagino para onde
estarão levando cada tristeza.
ah, meu pai, faça um novo filho, seja feliz,
ande de bicicleta, tome seus iogurtes.
penso em ti enquanto, no cômodo contíguo,
minha mulher dorme um sono fundo, sonoro,
embalado de cansaço e luz silenciosa.
há um mistério que preciso assumir.
meu nome é um anagrama da palavra namoro,
me dei conta disso muito tarde, será tarde demais?
tenho saúde, um belo pescoço, meus olhos dizem
coisas sutis que sempre contradizem
as expectativas frágeis da noite.
queria cessar a idéia da guerra e que pudéssemos,
enfim, dar as mãos, não mais colher flores mortas.
rapidamente acumulo frases.
queria poder esvaziá-las de sentido e que apenas
trouxessem o bem, tirassem meus cotovelos da janela.
receber no corpo a concepção do amor conjunto
traz malogros, o corpo suporta melhor as cicatrizes.
fecho os olhos, o ponto da brasa anuncia a solidão,
leve solidão de um tempo em que pensar
o carinho já não significa mais cartas longas,
passagens para o Caribe, um sol azul.
ainda posso sorrir, tudo que tenho
darei a vocês, desconhecidos, a quem amo
porque sem saber me levam
com rapidez pela passagem de gelo.

21.8.09

"retrato n. 2"

minhas raízes são remotas,
desvanecidas, elas remontam
assassinatos diários entre famílias
que se comunicavam aos gritos
em dialetos mortos, sob lava,
com machadinhas sem fio,
que faziam sua modesta lei
partindo ossos sem valor.

talvez daí venha a atração
por ruelas com mal cheiro
onde a qualquer momento
há possibilidade de morte.

daí talvez as letras firmes,
sem forma muito definida,
que denotam transtornos
psicológicos preliminares.

ademais, a testa proeminente,
ossos que, restantes, estalam
encaixotados em carne dura

e dizem qualquer coisa do sangue
volátil, que sobe rápido às idéias,
passos curtos na direção duvidosa,
passos curtos, de pernas amarradas
que apenas apontam trilhas, pedras,
que fundam feridas abstratas, leis.

a saúde dos olhos indica apenas
lascas de tempo sobre chão frio.
da incomunicabilidade selvagem
arregalada em suores trêmulos,
fiz a sala onde vivo dos restos.

as uvas do prazer, invariavelmente
elas terminam em restos gástricos.

fui revelado no atropelamento
de anotações absurdas, pautadas
livremente pelo ritmo das ruas.

há que se endurecer ainda mais
após a revolução sem ternura,
ser o balaio mediterrâneo feito
do calor córsego, que escorre
pela incompreensão enojada

do mistério que avança frente à face
e enche os livros de tédio e filosofia
enquanto, em quartos acarpetados de
paredes lisas, cadeiras de assento duro
premeditam a ambivalência teimosa.

os pés já não tocam mais o chão.
de partir, não suportam mais dançar
um sapateado divertido em brasa,
do agrado dos calvos de braguilhas
abertas, dos senhores recomendados,
enfileirados nas prateleiras públicas.

uma vez o Fred Astaire, hoje a ponte
desfeita a cada passo diante do nada.
como nos filmes ruins de aventura,
sem ter permissão para olhar atrás,
enquanto moedas brotam dos esgotos
da moral cívica – uma vez o maníaco
agarrado em alto-mar a gelados remos.

vejo que perdi coisas, isso é notável.
mas faltam-me as marcas da escolha
conflitante – ainda acredito em deus.

não alimento escrúpulos,
sou um homem correto.
não exatamente um dândi,
operário com unhas limpas.

muito difícil é prever a amputação,
falar sem voz pela geração festiva
quando os pés se agitam em doença.

uma vez a superfície da lua, hoje a porta
escancarada – nenhum pedido de retorno.

o fracasso é o hábito,
disse aquele homem
que morreu de amor.

13.8.09

"Retrato n. 1"


Sou este senhor, fumando cachimbo, de terno e gravata, vestido de verde, que acaba de chegar em Paris, em 1886, um pouco convencional, posando diante de um fundo escuro. Convencional? Vocês não olharam bem: vejam como no marrom das sombras escorregam, em volta de meu rosto, na minha orelha, pinceladas vermelhas cor de brasa, cor da pequena brasa, do meu bigode, que os tons sombrios não conseguem conter. Vejam como o lado esquerdo do meu rosto é banhado por uma luz amarela que o pincel um pouco frenético fez subir pelo nariz, sobrancelhas, testa; como são chamas meus cabelos; como pareço estar recebendo os reflexos de um incêndio. E como, neste retrato feito de escuro e de fogo, meus olhos, dois carvões extintos, olham inquisidores para você.
do livro "Vincent Van Gogh - A Noite Estrelada" (Ed. Perspectiva, 2006), de Jorge Coli.

"a coisa séria"

gostaria de dizer uma coisa séria.
um segredo irrefutável, que seria
a válvula de amor que deglutisse
e passasse para o outro lado a foice
e por todo outro lado estaria tudo
que um dia foi dito e agora pende
como as carnes de um frigorífico.
o que gostaria de dizer está longe
do tal impulso criativo embasado.

o que gostaria de dizer é sério demais,
impossível dar risada, é deixar a boca reta.
ouvir seria difícil, melhor os encontros lotados,
dançar a noite inteira, beber, vestir o sobretudo.
na noite vazia, aos hipócritas, óculos escuros.
mas não há métodos para se fazer parar de rir,
a coisa séria não terá vez, talvez jamais.

8.8.09

"sarney"

o mundo está perto
de acabar então posso
falar livremente.
são todos homens
de poder fechando
seu ternos de cortes
sangrentos, ilustres.
os rostos vermelhos,
ilustres, se fecharam
para a raça do amor.
mas nós, os homens
ditos sem importância,
sangramos palavras
pela garganta infinita
diante de espelhos
ensebados a óleo.
e amamos demais.

7.8.09

"cotovelos"

não mais escrever com os cotovelos.
não que seja exatamente uma falha,
é um querer estar longe dos braços,
que tramam corrupções metafísicas.

nessa manhã fria de julho, o vento
faz uma torcida ansiosa por sangue.
acendo um cigarro por indiferença,
rasgado do corpo, longe dos sentidos.

sigo em voltas infinitas e, sem porto,
trago fundo o que jamais realizarei.

serei aquele que pede com os olhos,
que sente passando a oportunidade?

sinto ganas de dizer “então vamos”,
mas sei que ficarei parado, ao lado,
uma mulher a quem prometi coisas
liga a televisão, fecha porta: fuma.

não suportamos o cigarro e fumamos.
resta dizer “em frente”, ir para o lado,
engolir à seco a centopéia já sem vida.
ganas de dizer qualquer coisa do azul.

versos tristes e sem ritmo não falam
da dor do que separa, permanecendo
fora da cama, com olhos arregalados,
colhendo os cacos da nova pobreza.

massageio os cotovelos, que faltam
nas frases que um dia foram de luta.
agora inauguram a fase antecedente
de uma morte por dia, sem emoção.

vontade de engolir, de beijar, de ir.
para onde foram sem me dar aviso?
livros cansam as prateleiras, caixas
entopem as veias um dia pulsantes.

restaria alguma coisa talvez na frase
desavisada da qual a grande surpresa
seria a boca ressequida, saliva lateral,
que faz do futuro um risco desbotado.

é puxar o trago dessa respiração difícil,
inclinar o rosto, à espera do improvável,
para dizer justo o que não deve ser dito:
raspar a panela do peito, sem os braços.

2.8.09

"agosto"

agosto chega se arrastando
com seus dentes curtos,
ensebados, de cadáver recente,
assassinado por vingança.
agosto preferiu calar-se
a cometer os mesmos equívocos.
agosto, coitado, não sabe
que sem os equívocos nos resta
muito pouco.
agosto não deveria se chamar agosto.
não tem gosto de quase nada,
passa em meio às catástrofes epidêmicas,
à sede irreconhecível do povo sem traços.
agosto poderia facilmente
se chamar Agripino, Nazareno, Vigário.
não existem limites
para os buracos que agosto
abre nos peitos desacostumados
a estarem no meio de algo caótico,
no meio de um ano, no meio da rua,
no meio entre as gentes sem olhos,
Tirésias pós-mitológicos entre números,
no meio do antigo estupro, inapelável,
no meio de um sorriso que se quebra.
agosto está muito velho para voltar atrás
e muito novo para seguir até o fim.
agosto sofre de circulação dificultosa,
amputaram – sorrindo – as pernas de agosto.
agosto não vai nem vem,
está de muletas na prancha do pirata.
às vezes agosto é o ano todo.
quantas vezes, vivendo outros nomes
na estranheza de uma nova anormalidade,
fora dos eixos, incompreensível,
não pensamos, simplesmente: “agosto”.
ah, gosto que nos tiraste da boca...
ah, vento no cabelo do significado...
revela de uma vez tua maldita face,
terror que está por vir, ou nos deixe
voltar ao túmulo da primeira margem,
porque agosto nem bem começou,
e já não tenho forças, não posso mais.

24.7.09

Um estudo sobre "pequenas biografias não-autorizadas", por Flávio Corrêa de Mello


A poesia e os poetas sempre nos reservam grandes momentos. Desfrutar, apreciar e saber ler um poema assegura uma grande viagem para aqueles que participam deste universo. Não tenho dúvidas disso. Entendo que Leonardo Marona também compreende o que estou escrevendo. Não só ele, pois este ano tem sido promissor na poesia. Vi e li alguns poemas de autores que me fazem mergulhar no mesmo rio. Além de Marona, Gregório Duvivier e Diego Grando nos brindaram com excelentes livros de estréia. Livros cujos poemas possuem uma riqueza melódica e um trato mais intimista com a palavra e com a continuidade do verso. Livros que reatam a poesia com a espontaneidade ─ favor não confundir com ingenuidade ou versos de má qualidade ─ e com o toque íntimo: “o escrevo para você e contigo”.

Duas palavras escritas por Abujamra na orelha do livro Pequenas biografias não-autorizadas (7Letras, 2009) me chamaram a atenção: avalanche e fecundidade. Há outras que podem se conectar no mesmo campo semântico: confissão e jorro. E na poética do autor estas palavras adquirem valor de combustão, são pistões propulsores que ditam o andamento do livro. A divisão do sumário em duas partes elide a uma referência cronológica. Correspondem também a um tempo poético de descoberta de afetos e de gostos. Assim, as avalanches fecundam versos sobre o que o poeta sorve no seu cotidiano e que constituem suas biografias não autorizadas (Rilke, Cortázar, Antonioni, Descartes, entre outros...).

Na poesia de Marona o ritmo é emblema motriz, vitalidade. Sobrepõe paradoxalmente a escolha de uma estética morfossintática. A frase melódica implícita nos versos não se apresenta isolada, mas sim constituindo um Todo em cada poema, dividindo-se em núcleos distintos, em blocos de sentidos que complementam o valor de unidade dos poemas e por conseqüência da obra, como no poema Roçam-se os pés, no qual há um enlaçamento do ritmo do poema e a imagem de um cadenciamento dos pés através de rimas continuadas:

“acho que todo mundo / um pouco no fundo / sem saber como / quer o amor / como o fruto / de outro sigilo / secreto defunto / (...) agora é tarde e frio / os cílios se dobram / e existe um certo vazio / que só preenchemos / com calor hesitante / e os pés enlaçados / carregam o instante (...)”

De certo modo, a construção das imagens obedece a alguns critérios: o lirismo pessoalizado, reflexo do momento, é construído em uma sucessão rítmica de imagens. Se o ritmo dita a cadência fluídica, muitas vezes acelerada, o fluxo de imagens alardeia o caráter expansivo do autor, caráter voraz, juvenil, tentando ourivezar seus ímpetos, contidos pela inexorável ação do tempo, como no poema “vinte e seis”, que debuta a segunda parte do livro:

“um dia, inevitavelmente, aconteceria. / o antigo poeta das linhas apócrifas / sobre fantasmas internos e naufrágios, / o infante terrível, o descabelado, o vil / sem regras daria lugar ao homem grave, / à besta milenar – homem sem pernas, / meio doce meio amargo meio homem, / a boca sem fim inclinada para baixo, / as leituras eslavas, a sutura do ódio / que prolifera para dentro em pústulas / e adquire a petulância de um mar parado.”

Poema rico em imagens e alusões. Há acima um rebuliço de nuances tanto de referências poéticas (Pessoa, Homero, Rimbaud), quanto de metáforas da rebeldia que se atenuam em morbidez romântica (... à besta milenar – homem sem pernas, / meio doce meio amargo meio homem, / a boca sem fim inclinada para baixo, / as leituras eslavas, / a sutura do ódio...). E a idéia do mar regurgitando aceso e que por ordem do tempo (Um dia, inevitavelmente, aconteceria.) se condensa em algo flácido, sem músculos, um mar grave, parado. Ainda assim, há o desejo, a voragem de deglutir o Todo, mesmo consciencioso das etapas do processo do navegar pelos mares da poesia. Esta consciência é dolorida, é creditada aos embates entre o conter, o discernir e o expandir o verbo e o verso. No poema carta a um estudante de belas-artes, por exemplo, Marona realça o tom prosódico com descrições de recomendações poundianas:

Ezra Pound dizia / nos seus ensaios sobre poesia / que a poesia era uma ciência / assim como química, medicina. / ele acreditava piamente / no ritmo absoluto / de cada ser humano. // nas formas sólidas e fluidas do poema / - como árvore ou água despejada - / concebia a poesia como arte exata / e cada homem como seu próprio poeta em si, / sem diferença entre amadores e profissionais (...).

A dicção professoral acompanha o poema:

dizia que não devíamos esperar demais / por ter nosso valor artístico reconhecido / antes de havermos descoberto algo novo. // dizia que devíamos ler os franceses, / sobretudo os gregos, os florentinos, / que devíamos ler Confúcio inteiro, / Homero inteiro, as versões latinas, / Ovídio e os poetas latinos “pessoais” / Catulo e Propércio. // ele veio do alto e nos disse, pousando: / não percam tempo com o que não presta, / vão direto ao talo do osso primordial!

Súbito, depois de decantar o receituário, o poema caminha para o corte final: a supressão da direção professoral em prol de uma autonomia rebelde (quero que você, Pound, se foda. / Quero escrever tua poesia austera.), independente e um desejo autofágico de incorporar a poética poundiana em sua essência e não no seu modus operandi. Aí, de certo modo, o poema se apossa de sua liberdade total de criação. Me remeteu muito ao poema Estou com 25, de Gregory Corso, poeta beat, que escreveu os seguintes versos:

Com o amor minha loucura por Shelley / Chatterton Rimbaud / e a tagalerice-carente dos primeiros anos / já fez correr de um ouvido a outro / EU DETESTO OS VELHOS POETAS ! / Especialmente os velhos poetas que recuam / que consultam outros poetas velhos / que falam de sua juventude em suspiros, / dizendo: ─ eu fiz estes naquela época / mas foi naquela época / foi naquela época ─ / Ah eu faria calar os homens velhos / diria a eles: sou amigo de vocês / o que vocês já foram um dia, através de mim / serão novamente ─ / E depois à noite na intimidade de suas casas / rasgaria suas línguas que só sabem se desculpar / roubando-lhes os poemas.

Esta semelhança de se apossar das outras vozes permeia quase todos as pequenas biografias não-autorizadas. Vemo-las em orangotangos (herdeiros da poesia enlatada e da urina impura, / colheremos o excremento de mentes inseguras.), em Whitman (você tocou o primeiro clarinete de fogo. / deixe-nos sair do fogo, recuperar a casa.), em Kerouac (teu erro foi me fazer pular etapas / para chegar mais cedo à tua velhice...). Assim, a proposta poética advém da necessidade de reescrever cada influência, cada leitura pertinente, caracterizando-as tanto na sua origem ─ a forma e o conteúdo dos artistas biografados ─ quanto na fusão resultante do encontro entre as biografias e o autor, o Leo Marona.

Talvez o que sintetiza e o que “não” autoriza Marona a tematizar outros artistas seja justamente o seu momento poético de sorver o máximo possível do universo e apresentar-nos esta recolha de poemas. Talvez, seja do seu espírito jovem e índole ter uma voz tão plural, tão rica de nuances e, não se engane, claro leitor, como disse no início do texto, não há ingenuidade, pois os ajustes dos versos demonstram domínio de técnica, mas a que isso serve, se o que importa mesmo é o escrever consigo, para ti, para mim, para Antonioni, Chet Baker, Maiakovski e tantos outros, autorizados ou não.