7.10.09

"kafka"

Kafka realmente carece de qualquer vaidade de poeta, jamais se gaba, não sabe se gabar. Enxerga-se como sendo pequeno e anda com passos pequenos. Onde quer que pise, sente a insegurança do chão. Ele não nos leva; enquanto estamos com ele, nada nos leva. Assim, ele abre mão da farsa e do ofuscamento dos poetas. Suas próprias palavras perderam seu brilho que ele percebia muito bem. É preciso acompanhá-lo andando a pequenos passos e se tornar modesto. Não existe nada na literatura mais recente que nos torne tão modestos. Ele reduz a presunção de qualquer vida. Tornamo-nos bons quando o lemos, mas sem ter orgulho disso. As prédicas orgulham aquele que se deixa arrebatar; Kafka abre mão das prédicas. Não transmite os mandamentos de seu pai; um estranho bloqueio, seu maior dom, permite que ele interrompa a cadeia de engrenagem dos mandamentos que vão sendo passados de pais para filhos. Ele se priva de sua violência; aquela energia exterior, animal, evapora nele. Em compensação, o seu conteúdo o ocupa tanto mais. Para ele, os mandamentos se tornam dúvidas. Entre todos os poetas, é o único que o poder não contaminou de alguma forma; não existe nenhum poder, não importa a forma, que seja exercido por ele. Kafka despiu Deus dos últimos vestígios de paternidade. O que resta é uma teia densa e indestrutível de dúvidas acerca da própria vida e não acerca das pretensões do criador. Os outros poetas imitam Deus e se comportam como criadores. Kafka, que nunca quer ser um Deus, tampouco é uma criança. O que muitos acham assustador nele e o que também me deixa intranquilo é o seu estado adulto constante. Ele pensa sem mandar, mas também sem brincar.

Diante de algumas figuras do espírito, e são muito poucas, o meu Eu para completamente. Nem são aqueles que mais realizaram; estes, ao contrário, apenas nos estimulam. São antes aqueles que enxergaram por trás de sua realização coisas mais importantes e inalcançáveis, precisando encolher até ela desaparecer.

Entre essas figuras está Kafka, e assim ele tem uma influência mais profunda sobre mim do que Proust, que realizou incomparavelmente mais.

De que te envergonhas tanto ao ler Kafka? - Envergonhas-te de tua força.

Essa interminável autodegradação diante de Kafka:
por estar comendo sem escolher? (nunca me preocupei em saber o que estou comendo)
por me esforçar por uma exatidão da qual sou incapaz? (só conheço a exatidão dos meus exageros)
porque ficou comprovado que posso ser feliz e não me privo disso?
porque sei me comunicar de forma leve e sem reservas, e sinto que isso lhe teria repugnado?
porque não lhe foi permitido dizer de si cobras e lagartos?
porque me deixei contagiar por ele e troquei o meu próprio modo de me odiar pelo seu?

O som que passa em Kafka: como fraqueza sonora. Mas não é fraqueza, é a renúncia ao Além, e o que sobrou foi a sonoridade da renúncia.

das anotações de Elias Canetti.

5 comentários:

Anônimo disse...

E CAI O PEÃO BINGO KKKKKKK

Moniquinha disse...

É por essas e outras, eu quero dizer... kkk!!! Esse tipo de reação apaixonada e absoluta que suas palavras me fazem sentir que eu não canso de lhe dizer: Você é maravilhoso. E certamente agora eu entendo melhor o significado "aquela que sentiu seu rosto pela primeira vez". Você é único Leozinho! M.

Wilson Torres Nanini disse...

Muito bom! Sem ser pedante, com a suavidade de quem maneja o cutelo! Parabéns!!! Kafka sempre será apesar de nós! Abraços!

Guido Cavalcante disse...

Tudo sobre o século XX foi dito por Kafka. E acho "Na Colonia Penal" (In der Strafkolonie) o maior livro do século XX, em 46 excassas páginas. A história simplesmente conta como um torturador demonstra o funcionamento da máquina de tortura no próprio corpo. Só isso.

Guido Cavalcante disse...

Perdão, Léo, pela grafia de escassas, com aquele "x" idiota...