28.4.06

"Saudação" (Ezra Pound)

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em pequeniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.

*tradução Mário Faustino

“metamorfina”

agora que invento teus olhos
agora que sei que és de outro
penso: sendo assim és minha
porque eu sou outro em mim.

agora sou não doente de sim
escorado em planos secretos
concretizados na perspectiva
da tua foto sobre a cabeceira.

agora a hora agoura a agonia
outro em mim tão eu sozinho
acomodou tua falta no escuro.

sinto que perdi meu rastro em ti
indo levaste o outro que em mim
sendo teu não, conhecia meu sim.

27.4.06

“jogo duro até o fim”

pelo amor estive
disposto
o amor me jogou
no chão
e lá estava eu de
novo
preso nas idéias
de areia
à procura de novas
teias
pessoas dispostas
a mim
atrás da loucura em
becos
mas teias escondem
aranhas
e quem apanha duas
vezes
na terceira já não
reclama.

consegui juntar meus
restos
levantei do meu porão
sem ajuda
sonhos escoriados sem
mesuras
estropiado o peito feito
bolor
coração de aleijão segui
mudo
pelo mundo de papelão
rotundo
sem jamais ser perdoado
por não ser.

não precisava de nenhum
perdão
um punhado de lealdade
se fosse
sem posse seria o amor
verdadeiro.

precisava esquecer-me
sozinho
para estar dentro de mim
comigo.

queria que isso fosse
mentira
assim poderia ser um
poeta.

hoje sou esquecido do
amor
mas como esquecer as
palavras?

"Confusion" (Kenneth Rexroth)

I pass your home in a slow vermilion dawn,
The blinds are drawn, and the windows are open.
The soft breeze from the lake
Is like your breath upon my cheek.
All day long I walk in the intermittent rainfall.
I pick a vermilion tulip in the deserted park,
Bright raindrops cling to its petals.
At five o'clock it is a lonely color in the city.
I pass your home in a rainy evening,
I can see you faintly, moving between lighted walls.
Late at night I sit before a white sheet of paper,
Until a fallen vermilion petal quivers before me.

tradução livre para o português

Passo pela sua casa num lento vermelho amanhecer,
As cortinas estão fechadas, e as janelas estão abertas.
A suave brisa que vem do lago
É como seu hálito na minha bochecha
Por todo dia eu caminho pela chuva intermitente.
Apanho uma tulipa vermelha no parque deserto,
Claras gotas de chuva aderem às suas pétalas.
Às cinco horas há uma cor solitária na cidade.
Passo pela sua casa numa noite chuvosa,
Posso ver você desmaiando, movendo-se entre paredes acesas.
Tarde da noite eu me sento em frente a um pedaço de papel,
Até que uma pétala vermelha arruinada estremece na minha frente

26.4.06

“rápida hesitação filosófica numa noite temática”

poetry
is just the evidence
of life.
if your life
is burning well,
poetry
is just the ash.
(Leonard Cohen)

idéias entupidas de cacos de vidro
in vitro arranham o meu cérebro
com ecos de movimentos vulgares
ares de lua ludibriam minha fuga
pulga de um canto escuro ao poço
outro sem saber que está confinado
alado num espaço de dois por dois
depois sem saber por onde começar
azar não ser Bandeira para ver o beco
me perco em olhos sem brilho na rua
nua para mim porque sou bom cliente
ciente de que no fim não haverá retorno
entorno moedas dentro de gargalos sujos
minutos não vão revelar por que estou vivo
insisto que prefiro esclarecer a questão COMO?

"Romance" (Mário Faustino)

Para as festas da agonia
vi-te chegar, como havia
sonhando já que chegasses:
vinha teu vulto tão belo
em teu cavalo amarelo,
anjo meu, que, se me amasses,
em teu cavalo eu partira
sem saudade, pena, ou ira;
teu cavalo, que amarraras
ao tronco de minha glória
e pastava-me a memória
feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
angélico, onde meu leito
me deixaste então fazer,
que pude esquecer a cor
dos olhos da vida e a dor
que o sono vinha trazer.
Tão celeste foi a festa,
tão fino o anjo, e a besta
onde montei tão serena,
que posso, damas, dizer-vos
e a vós, senhores, tão servos
de outra festa mais terrena
não morri de mala sorte,
morri de amor pela morte.

25.4.06

“possível teorema da solidão”

o impossível de ter me fascina de longe
faz desejar com desesperança
o sentimento enterrado nas lembranças
trespassadas de mágoas incompreendidas
e libido constipada.

faz querer nascer outra vez
para tentar morrer melhor
de forma mais digna do que vendendo livros
esburacados de traça com antigas dedicatórias
de alunos sem graça para suas professorinhas
histéricas mas contidas numa calçada fria.

o incesto passivo se esconde
no suicídio de um senhor que cai
sobre a xícara de chá numa varanda
de azulejos brancos de frente
para o Mar Adriático ao som
de Pepino de Capri cantando
Saint Tropez Twist.

ainda bem menino, meu coração voou pela janela
mandei que apanhasse a correspondência da paixão
eu até posso entender que a paixão jamais espera
mas o que fizeram com o meu amor?
o coração tinha levado para dar sorte.

passei anos da minha vida olhando pela janela
não havia nenhum motivo especial para isso
sem coração, amor ou paixão, fiquei confuso
– eu não sabia pelo que estava esperando –
mas a sensação era de algo avassalador
que me varreria do planeta para sempre
ou me iluminaria de otimismo e esperança.

nada me veio
que valesse espera tão aflita
por sabe-se lá.

alguns pombos que tentei matar
porque não gosto deles
porque não gosto dos seus olhos
pálidos
indiferentes
estúpidos
que lembram tanto os meus olhos.

alguns casais trajados com meia de escritório
fazendo sexo rápido aos olhos da televisão
para voltarem às suas revistas de moda
que é tudo aquilo que todos querem
mas ninguém precisa a não ser a televisão.

persianas
fechadas
rachadas
desbotadas
empenadas
mais solitárias
do que eu.

alguns belos pares de seios cansados mas dignos
belas bundas lavando vidros que são celas de pó
homens tão ou mais esperançosos do que nós
outros como estou agora que sentir não basta.

cabelos começaram a cair nos projetos
a chuva secou nos sonhos de cachoeira
a estrada é esburacada e sempre cheia
de amistosos intervalos da cor da neve.

neles você pára e pensa que algum dia
compreenderá a relação entre as coisas
entre as frutas frescas e os fetos no lixo
entre o diamante polido e o faminto tratante
entre o crime forjado e a gravata borboleta

entre mim e você
quem nunca vi
senão com ciscos
quem nunca amei
senão com medo
da solidão de mim
quem nunca senti
porque para sentir
teria que ser.

nos amistosos intervalos
vou pensar que um dia
conseguirei ver sentido
em homens trocando medalhas
em espetos nas costas de touros
em pessoas dançando num salão
nos sorrisos de educação desconfiada
e todas essas bobagens que fazemos
quando nos empilham idéias na cabeça.

o desespero pelo esquecimento da minha pessoa
quando dela eu me despedir
será menor ou maior
que o desespero do esquecimento da pessoa
de Fernando Pessoa
quando dela ele se despediu?

digo a vocês, cânones da arte idolatrada pela teoria confortável:
nenhum desespero é tão grande quanto o desespero que se sente.

meu peito não é costurado
fora um remendo no centro
talvez meu coração tenha escapado
por ali quando foi atrás da minha paixão
que agora está a quilômetros de distância
mas ainda pensa em mim nos dias nublados
espero que consiga pensar com tolerância.

meu carinho é todo distribuído
entre matagais e desconhecidos
de modo que não me sobra nada
então que isso me desagrada
vira mágoa o que antes acarinhava.

na qualidade do carinho dado
este é um possível teorema para a solidão
mais do que isso só se, na janela: coração
e muito bem acompanhado.

23.4.06

“escrever”

como montar
uma história
sobre um caso
que não existe
mas precisamos
procurar porque
já vimos antes?

22.4.06

“dorme a perna”


um tiro na boca
resolveria tudo.

é verdade que
tu me traíste?

a resposta é sim.

tal qual a meia verdade
dessa perna lisa prateada
minha mãe indescritível
horrível sombra sonora
que na realidade sem hora
deixaria no ópio do beijo
decote salgado de chumbo.

olhos tatuados em
bocas novamente.

pela vida escolhida
se acabaria velha
dentro da margem
passagem de espera.

se pensar sobre a vida
plena garganta morta
barganha de ilusões
morrerei pela música
não por falta de sorte.

acontece com muita gente
eu sou apenas um a mais.

mudo sem braços
fraudador de olhos.

21.4.06

“punheta no chuveiro da solidão”

não queria pensar em mim
mas agora que estou sozinho
e as paredes parecem famintas
sinto o fio gelado de uma faca
tudo balela! pura mentira!
não quero fazer poesia
preciso dizer a verdade
esse trapo sujo de sonhos
que espreita cada engano
alguns chamam de tristeza
ou talento para enxaqueca
esse frio que vem da espinha
ou que vem debaixo da mesa
essa vontade de se pulverizar
não abrir nunca mais os olhos
essa necessidade cega de luz
de desconfiar que existe a luz
às custas da água que pinga
eu mesmo sozinho como vim
não queria pensar em mim
mas deu que perto do fim
só me resta a mim mesmo
porque o resto é um confuso pesadelo
boca aberta do caos na minha têmpora
dentro desse lugar fantasmagórico beco
onde os escombros dos barcos guiam dedos
que escrevem sobre náufragos acorrentados
e vejo que eles vão ficando acinzentados
desejo reumático em corpos imaginários
porque agora já consumi minha visão
sou som cego sem ser só afeto perdido
substância cinza medula espinhal inflamada
sou a bula do fim agora que tudo mais é frio
estou sozinho envergonhado da minha pele
os ossos socados em sacos de culpa e noite
agora que estou sozinho sentado esperando
aquele futuro que corroeu minha esperança
esquenta os ladrilhos do banheiro com pena
janelas gargalham como velhas tias de vidro
pés cravados num alçapão de sentido nervoso
você não está aqui porque nós nunca existimos.

sentindo a solidão do esperma viciado
procuro sombras nas paredes do amor
o vento só deve desculpas ao silêncio

água limpa pinga morta nas minhas mãos
enquanto outro natimorto desiste de mim.

20.4.06

“beware: pickpockets & loose women”

não sabia nada sobre a moça na mesa
o cartaz me incentivava noutra língua
ela dançava parada na minha cabeça
era uma fumaça perfumada e ambígua.

(com licença, moça, quer dançar?)
tédio imposto pela cruz da beleza
(desculpe, amigo, mas sou casada)
através da tinta pesada sob os olhos.

seu rosto era um estacionamento vazio
eu trazia o sorriso de um idiota educado
seus olhos como um pano de prato molhado
explodiam no meu pigarro de letras gagas.

ela era tão pesada quanto seus olhos
exceto pelo rosto, parecia muito bem
presa à máscara de um cigarro aceso
mãos firmes como um píer de rochas
planetas mortos feitos para necrofilia.

ainda me engano em samba de branco
aqueles vagos olhos sem nenhuma cor
argumentos de guimbas para filme francês.

a moça tinha a unha do mindinho descascada
desejos ocultos que vão sem você entender
e quando voltam trazem você pela metade
e vão outra vez para levar os cacos da noite
que se arrastam na tua pele para te lembrar
da criança tetraplégica que descobriu o amor.

mas se você, além de criança, for um homem capaz
de reconhecer uma mulher pela unha do mindinho
flor cujo caule se mantém em perigo
a nuca exposta à beira do abismo
você merece uma segunda chance.

assim como a cobra
não se arrastaria
se tivesse asas,
a profundidade
está nas águas
mais paradas.

“a um amigo que me enviou um poema e outro que me enviou uma prosa”

os homens não sabem mais
que os outros animais;
sabem menos.
eles sabem o que precisam saber.
nós não.
(Fernando Pessoa)

inventamos os dragões para nos acender o sono
procuramos palavras que nos caibam nas botas
perdemos o sentido quando começamos a falar
deixamos de amar quando começamos a sentir
que o fogo febril do dragão nos queimou as asas.

existe tanto para se falar quanto pouco a se dizer
estamos sozinhos e talvez para mim seja importante
dizer que se quero falar e não sei é porque preciso
da tua porta que bate no meu riso de olhos fechados
espero que minha mentira se acomode no teu colo.

entre as árvores da nossa infância inventamos espaços
nos espaços entre as árvores existem as folhas mortas
elas amarelam e encolhem e apodrecem como a infância
perdida à deriva à procura das árvores que a faziam viva
e se tornaram invisíveis como você e eu no fim de nós dois.

o tempo a cada manhã cinza me pergunta através da janela:
você, pobre criatura desapegada, o que tem para fazer aqui?

esperando lágrimas que não se formam, respondo trêmulo:
nada tenho de importante a fazer neste lugar que você criou
mas já sei de algumas coisas pelas quais eu não vim para cá.

não vim para enganar inocentes com sussurros de esperança
para isso identifico logo os tipos escorregadios e tacanhos
o que me impede de apreciar a minha própria companhia.

não vim para me tornar um líder ou propor novos desafios
cada um que teça sua bandeira e seja Dom Quixote sozinho.

não vim também para me tornar um senhor careca e barrigudo
que desliza sobre o espelho gorduroso da noite no asfalto sujo
e foge da chuva como da morte com um saco de pão nas mãos.

tampouco vim para agarrar bundas pelas pontas dos desejos
ao contrário, vim para observar atentamente seu movimento
para garantir sua posseira na minha mente
porque as bundas carregam a liberdade
é um crime aprisioná-las em quartos acarpetados.

não vim até aqui cumprir promessas
com as quais não se faz uma vida
mas migalhas de pão na mesa
lágrimas escondidas nas mãos.

nem vim para ser são
só porque um rapaz
de dentes muito brancos
sorri na tv e diz boa noite
antes de todos morrerem
sem nenhuma esperança
de mais um milagre
sob a forma de dia.

não vim para dar muita atenção
aos meus iguais seres humanos
prefiro cães que pedem com olhos.

meu amor é um suicida que pulou
por uma janela de vidro fechada
e se tornou meu mal necessário
pois não há nada tão quieto quanto
um coração que parou de bater.

19.4.06

“na lapa”

ontem,
por uma fresta de janela,
no pé direito alto do bar do juca,
vi nelson pereira dos santos numa mesa
com mais uma porção de gente
que falava através de cotovelos.
do outro lado da mesa
estava o eduardo coutinho.
olhei por alguns segundos,
do mesmo ângulo,
o quanto pude.
nelson pereira dos santos
parecia uma criança feliz.
coutinho parecia um chato
com uma peruca lilás.

17.4.06

quando você pensa em algo e logo depois lê o algo...

EPIGRAMA 22

Estou com fome de espírito,
e numa sofreguidão intensa
propenso a fazer algo maravilhoso
porém não sei o que é
Sou burro, muito burro, muito burro
Outro final de semana virá
e me parecerá estranho, enorme
medonho, assustador
Mas sou perfeitamente
capaz de sobreviver
sem você.

(Torquato Neto)

16.4.06

“o erro somos nós”

o significado
de uma palavra
dura o tempo
que você souber
persistir no erro.

o significado
de um amor
dura o tempo
de uma dúvida
bem concebida.

o significado
de uma amizade
dura o tempo
que dois puderem
dizer não juntos.

o significado
de um deus
dura o tempo
que um homem
precisar de outro.

o significado
de um poeta
está na palavra
que não existe
dentro do seu peito.

o significado
de um poema
está na falta
do que não existe
dentro das palavras.

o significado
de um erro
dura o tempo
da palavra certa.
o erro somos nós.

15.4.06

“recado de um psicopata romântico a uma mulher atraente no bar”

escrito em guardanapo de papel manteiga, não entregue pelo garçom

agora
estou bêbado
e você está linda.

amanhã
será a ressaca
e você ainda linda.

depois
estarei sóbrio
e você terá morrido.

"Poema em linha reta" (Fernando Pessoa)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

*enviado por Tommy Lee Jones

"a vida"

a vida é feita
para a gente
desaprender
até nascer
de novo
na chance
ou morrer
para sempre
diante
do espelho.

14.4.06

"Ganha um coelhinho da páscoa de chocolate quem desvendar o enigma"

Ir preso por molestar o passado mas já não estava preso...

13.4.06

The Poet with the Birds, (Chagall, 1911)


algumas coisas pelas quais ainda vale a pena viver
– ou –
ponderando

depois de muito tempo
uma manhã de sol no parque
em meio às cadelinhas de madame
que fogem das próprias sombras
cães de rua, pombos e gatos vadios
que permanecem de barriga para cima.

os olhos translúcidos dos cães
a indiferença charmosa dos gatos.

um menino numa bicicleta de rodinhas
acenando ao gari que sorri sem dentes.

um sujeito velho e cansado
com um passado de perdas e erros
molha a cabeça amassada de sono
na fonte de bica enquanto se ouve
a dança alemã de Mozart e o velho
dignifica sua miséria quixotesca.

um outro homem empurra uma carroça de cachorro-quente
o sol em coma acima dos escalpos doentes
então um cão perneta que o vinha acompanhando
pára e pula de boca no lenço azul celeste de uma vovó de cabelo lilás.
ela apenas tomba para trás na grama e ri frouxamente.
então o cão perneta dá a volta e se aproxima
lambe as bochechas cor-de-rosa da velha
dá a volta outra vez, agora por trás
e ameaça mijar na botina polida de um milico
que passa em linha sincrônica com mais dois.

como se vagasse sobre o mar acinzentado
o velho vendedor de biscoitos de polvilho se confunde
em forma de mancha com a linha do horizonte.
e através da própria dor ele carrega sua mágica.

para o lado da mata
um quadro de Chagall
no emaranhado das árvores
sob a timidez do sol.

um casal de velhos:

ela
cabelo ruivo
tão ruivo quanto os cinco anos que ela diz ter a menos.

ele
bigode branco
tão bem raspado quanto suas cordas vocais depois do câncer.

os dois sentados juntos no meio-fio
sem se olhar
há muito tempo
sorrindo com leveza
depois de uma caminhada em paz
sem falar nada
cada um com sua lata de refrigerante dietético na mão.

um homem com a camisa laranja da prefeitura
em cima de uma bicicleta laranja da prefeitura
entre o céu cinza da cidade e as cinzas do homem.
um sanduíche de laranja num pão de concreto.

outro casal já não muito mais atlético
(apesar do figurino que a certa distância o faz parecer)
discute por um sorvete que caiu no chão.
na frente deles um casal de namorados que parecem irmã e irmão.

esperar por alguém que não sei quem é
mesmo estando com esse alguém há anos
todos os dias sem saber e por isso querendo.

pelos grunhidos de Keith Jarrett
quando ele criar meu último lamento
abraçado ao seu sorriso cariado.

pelo sorriso sincero
de um estranho entre tantos
bonecos que andam pela rua
atrás de algum sinal.

pelas gavetas esculhambadas de pequenos momentos
pelas janelas que servem tanto para a morte como para o sol.

pelos dois passarinhos que
madrugada passada insone
fizeram seu tipo de amor
sob o meu parapeito.

por todos os olhos
cheios de água e luz
mais eficazes que palavras.

pelo bom-dia
de um mendigo simpático
que me ofereceu um café
e me falou da sua formação
em direito penal.

por aquela menina
muito estranha e espontânea
que se aproximou de mim no metrô
para dizer que tinha um relógio igual ao meu.

pela bailarina
que saiu do sonho
e foi dançar na rua
enquanto eu voltava
do inferno para casa.

pelo homem grisalho
mas feliz numa cadeira de rodas
de quem eu comprei um pacote de balas de frutas falsas
em frente a uma pastelaria onde chineses se escondem
mas também são felizes ao seu modo como vejo
nos olhos miúdos de dois bebezinhos chineses
no colo das irmãs magras.

por alguns minutos na frente do mar
antes que alguém passasse
e estragasse o tempo
ao me pedir as horas.

por cartas sem data
com fotos e lágrimas
dragões amarelos de origami
que alguém que mora longe
ou na esquina do meu peito
postou para mim no correio.

escutar o caos sem dizer absolutamente nada
e que isso não seja estranho ou fatalista.

pelas trovoadas de Sibelius
pelas cavalarias de Borodin
pelo mantra pagão de Coltrane
pela melancólica lava de Chopin
que uma vez ouvi uma viúva que tinha exagerado no batom tocar

por todos os helicópteros de Blakey
(ou Blake)
pelo pranto tresloucado de desamor daquele filósofo dinamarquês
com o queixo pontudo pela contradição de sombras indistintas
por damas histéricas, indóceis e baratas de Raymond Chandler
por Rita Hayworth de maiô cantando para Orson Welles
em “A Dama de Xangai”.

pelas loucas histórias de amor:
entre Van Gogh e Gauguin
entre Cocteau e Radiguet
entre Fante e Joyce
entre Nin e Miller
em nome de Burroughs e Joan
de Jack e de Bob e de Baden e do Capitão do Mato.

pelo ex-lutador de boxe falido, que tinha batido Dempsey,
com quem Hemingway se encontrou à noite numa floresta.

pelas vezes em que uma pessoa
por mais que não se saiba de fato
da fatalidade do fato que se passa
esbarrou acidentalmente no meu desejo.

pela silenciosa respiração de um quarto escuro
pela dor que existe embutida num baixo acústico
ou por um quarto escuro cheio de notas musicais.

por todos os vestígios de solidão
que se escondem dentro das pastas
de belas mulheres com cabelo solto
cheirando como uma manhã úmida
apressadas executivas de coração
confessando seu vazio a telefones
por trás de grandes óculos escuros
no centro da cidade das formigas.

pelas vezes em que perdi o fio da meada
da história errada no momento certo
que eu pensei ser o errado
porque não podia acertar.

por sovacos femininos recém raspados à luz de velas
por vitrines de confeitarias
pelos segundos de pretensa sabedoria
quando eu não me ouço direito mas alguém me ouve.

e
acima de tudo
pela fidelidade de uma página branca submissa e arreganhada
pronta para ser fundida em sangue com meus pedaços amputados.

12.4.06

“sob a pele permaneço aceso”

estamos todos costurados
nesse mundo feito
estilhaços de bomba
que explodem para dentro,
sob a pele

cujo cúmplice é o meio-fio.
neurônios suplicam:
poupe-nos, por favor.
um ônibus passa por cima,
permaneço.

depois que a bomba explode,
cabem a nós os cacos
daquilo que se partiu.
cabe a nós o custo do pavio
aceso.

11.4.06

"O poeta propõe seu epitáfio" (Julio Cortázar)

Por haver mentido muito ganhou um céu
mesquinho, a ser refeito todos os dias.
Por ser traidor até à traição, o amavam
as pessoas honradas.
Exigia virtudes que não dava
e sorria para que esquecessem.
Não viveu. Viviam-no um corpo desapiedado
e uma cadela sedenta, Inteligência.
Por não acreditar senão no belo, foi
um lixo na lixeira,
mas ainda assim fitava o céu.
Está morto, por sorte. Logo surgirá
algum outro como ele.

Tradução de Tonico Mercador.

"dois de Robert Creeley" (trad. Virna Teixeira)


Love

There are words voluptuous
as the flesh in its moisture,
its warmth.

Tangible, they tell
the reassurances,
the comforts,
of being human

Not to speak them
makes abstract
all desire
and its death at last.


Amor

Há palavras voluptuosas
como a carne
na sua umidade,
seu calor.

Tangíveis, elas falam
das confirmações,
dos confortos,
de ser humano.

Não dizê-las
torna abstrato
todo desejo
e por fim sua morte.

***

Song

I wouldn't
embarrass you
ever.

If there were
not place
or time for it,

I would go,
go elsewhere,
remembering.

I would
sit in a
flower, a face, not

to embarrass
you, would
be unhappy

quietly, would
never
make a noise.

Simpler,
simpler you
deal with me.


Canção

Eu não
envergonharia você
nunca.

Se não houvesse
espaço
ou tempo para isto,

Eu iria,
iria para outro lugar,
lembrando.

Eu sentaria
em uma
flor, uma face, para

não envergonhar
você, seria
infeliz

quieto, não faria
nunca
um barulho.

Mais simples,
mais simples você
lida comigo.

9.4.06

“estuprador do tempo”

começa na infância:
amigos magros ensebados e feios.
outros gordos malqueridos e pálidos.
ele mesmo uma mistura e mais ainda.
ri-se de tudo porque é a única saída.

segue então pela adolescência:
chuva de hormônio, telhado de tristeza.
confidência a ninguém ao pé da loucura.
estranhos compassos em forma de pele.
chora-se por tudo porque rir já não serve.

eis que vem, voando, a juventude!
bolso cheio de alternativas estabelecidas.
vozes de dentro de um buraco medonho.
cobranças por um tempo que não existiu.
passos sem ritmo de uma dança perigosa.
ecos ocultos, vultos que encerram o peito.
matar ou morrer sem saber por mais quanto.
cogita-se mais nada pois as lágrimas secaram.

procurando uma lágrima, ou ponte alta,
pensa: Camus não fez a menor diferença.
olha para dentro, onde vê uma menina:
despe a menina e a possui com violência.

um pouco depois, durante o cigarro:
pergunta o nome da criança
(prazer, me chamo infância)
e vai preso por molestar o passado.

8.4.06

"Style" (Charles Bukowski)


Style is the answer to everything.
Fresh way to approach a dull or dangerous day.
To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without style.
To do a dangerous thing with style, is what I call art.
Bullfighting can be an art.
Boxing can be an art.
Loving can be an art.
Opening a can of sardines can be an art.
Not many have style.
Not many can keep style.
I have seen dogs with more style than men.
Although not many dogs have style.
Cats have it with abundance.

When Hemingway put his brains to the wall with a shotgun, that was style.
For sometimes people give you style.
Joan of Arc had style.
John the Baptist.
Jesus.
Socrates.
Caesar.
Garcia Lorca.
I have met men in jail with style.
I have met more men in jail with style than men out of jail.
Style is a difference, a way of doing, a way of being done.
Six herons standing quietly in a pool of water, or you, walking out
of the bathroom naked without seeing me.

tradução leo marona

Estilo é a resposta para tudo.
Novo jeito de encarar um dia estúpido ou perigoso.
Fazer algo estúpido com estilo é preferível a fazer algo perigoso sem estilo.
Fazer algo perigoso com estilo, é o que chamo de arte.
Touradas podem ser uma arte.
Boxe pode ser uma arte.
Amar pode ser uma arte.
Abrir uma lata de sardinha pode ser uma arte.
Não muitos têm estilo.
Não muitos podem manter o estilo.
Eu vi cachorros com estilo mais do que homens.
Apesar de não muitos cachorros terem estilo.
Gatos têm em abundância.

Quando Hemingway estourou seus miolos na parede com uma espingarda, isso era estilo.
Por um tempo pessoas te dão estilo.
Joana D’Arc tinha estilo.
João Batista tinha estilo.
Jesus.
Sócrates.
César.
Garcia Lorca.
Eu conheci homens na cadeia com estilo.
Eu conheci mais homens na cadeia com estilo do que fora da cadeia.
Estilo é a diferença, um jeito de se fazer, um jeito de ser feito.
Seis pássaros em silêncio numa poça d’água, ou você, saindo
do banheiro nua sem me ver.

ouça o poema na voz do autor

"bêbado romântico olhando a parede no fim da festa"

Este texto escrito em papel sujo não diz respeito a ninguém, a não ser a mim e a um cavalo branco.

Morremos juntos, um ao lado do outro, estávamos num abismo, eu pensava em pular para ver o verde como Monet, ele relinchava em protesto.

De uma vez só fiquei tonto, vi uma nuvem no formato do espirro, boca cheia de dentes que cospe pequenos azuis cristalizados, as gramas com fome de narinas se entendiam com meus pêlos, e as formigas são suas escravas vermelhas, escanhoavam minha pele por dentro.

Cavalo que vi uma vez cruzando no pasto, quando era muito pequeno, e percebi que eu jamais poderia fazer com aquela égua como ele faria a uma mulher, o que me entristeceu para sempre, por trás de sorrisos cordiais e porres amarelos.

Cavalo, a culpa é minha, você era meu cavalo, eu lhe devia cuidados, responsabilidade, fui eu quem não te avisei. Tenho pedido conselhos a Mozart e a Piazzolla, mas os dois parecem bêbados. Ficam fazendo caretas. Estou sóbrio faz uma semana, esperando um telefonema, que não posso atender, mas fico ao lado da cômoda mesmo assim. Desenvolvi mamas.

Não foi um homem que arrancava som do vácuo que uma vez disse que poesia é quando você percebe que não possui nada? Pois então. Virei poeta. Eu sei que é um fim triste, meu nobre amigo, meu elo de cascos com o caos, mas eu sei muito bem o que sinto agora, enquanto imagino esse lugar, que não é nenhum lugar, perto de lugar nenhum, mas onde posso falar contigo e comigo mesmo, com toda vontade gritar livremente e desarmado, o que me abre o universo, nesse lugar onde não existe cor porque tudo é de todas as cores, meu templo líquido que termina em ouro nas minhas tripas. Ao mesmo tempo, ainda posso ver tuas tripas azuladas enroscadas no teu ventre, posso ver a montanha pedregosa gargalhando nos meus calcanhares, tuas costas vazias tremidas de crinas, o relincho da tua bondade, seguido do relincho do teu último desespero. Vi bem teus olhos, como os vejo também agora.

Só não entendo o que este senhor quer sobre teu lombo despedaçado. Muito distinto senhor, não nego, armadura, capacete, mas, na mesma medida, muito petulante por lhe montar o dorso desta forma tão autoritária. Ficam aqui as reclamações do gramado, que certamente me defende.
(...)
Obrigado, senhora... Café excelente. A senhora sabe onde passa um ônibus? Passar bem senhora. Bela casa.

7.4.06

"vida em surdina"

uma vez um menino pálido
(síndrome de vidro)
desapareceu por trás de um espelho.

nos dias que se passaram – dias cálidos
(festa das ventoinhas)
adormeceu vendo o mundo por trás de si.

hoje se esconde atrás de um abecedário
(antigos retratos na cama)
para contentar a teimosia do tempo.

Quando forem pedir aumento, peçam como Mozart



O trecho abaixo, como outros aqui reunidos, foi recortado do livro A Vida de Mozart (Ed. Revan, 95 págs. R$ 12), biografia do compositor austríaco, escrita por Stendhal. Da leitura fica, portanto, o sumo do néctar da rosa, ou melhor, do cravo. Tudo que estiver em negrito foi destacado do livro de Stendhal.

Após o texto, aos possíveis interessados, uma canja da criança que chorava a quem lhe negasse amor. Agora, cornetas por favor, Stendhal:

Jamais Mozart tivera um salário tão considerável. Cabia-lhe o cargo de compositor do palácio, que nunca exerceu. Foi-lhe pedida certa vez, devido a uma das ordens gerais do governo, frequentes em Viena, uma opinião sobre o salário que recebia da corte (800 florins).

Escreveu num bilhete lacrado:

“Muito para o que faço, muito pouco para o que poderia fazer”.

Além de chorar e ter convulsões só de ouvir o sopro de um trompete, que o pai, também músico, tentava sem sucesso lhe apresentar, Mozart não sabia cortar a própria comida, era ultra-sensível, a ponto de, quando criança, perguntar às pessoas na rua se elas o amavam, e se algum gaiato dissesse que não, mesmo de piada, chorava copiosamente sem disfarçar a dor da rejeição. Mozart era mesmo um exagerado. Isso fica claro na sua música. Não falta nada nela, ao contrário, mesmo quem não gosta dela se irrita, justamente porque não falta nada. Não há muito que dizer. Mesmo no seu Réquiem é possível ouvir o grito de uma criança engaiolada, uma vontade mórbida de viver num mundo cada vez mais incompreensível para uma alma desgarrada. Mas, segundo Stendhal, Mozart era muito modesto, e mais autocrítico do que se possa imaginar. Colocava Haendel acima de todos:

“De todos nós – dizia – Haendel é o que conhece melhor o que produz um grande efeito. Quando quer, vai e corta como um raio”.

(...)

Em 1785, o célebre Joseph Haydn disse ao pai de Mozart, que estava então em Viena:

“Declaro, diante de Deus e com honestidade, que considero seu filho o maior compositor sobre o qual jamais ouvi falar”.

E em defesa de Haydn, certa vez Mozart disse, num tom um pouco brusco, a um compositor de certo talento, mas invejoso, que tinha o prazer de procurar defeitos, os quais chamava de “falhas de estilo”, nas suas composições, e de vir insistentemente mostrá-los a Mozart, com alegria nos olhos:

“Senhor, se nós dois fôssemos fundidos, ainda assim não se encontraria com o que fazer um Haydn”.

Apesar de gênio, como muitos gênios, era meio feioso e pálido – mesmo que os pais tivessem sido duas figuras atraentes –, bastante desorganizado e tinha um desenvolvimento físico anormal. Mas sua característica gritante era a mobilidade quase espasmódica de seus movimentos, que transpareciam as sensações de dor ou prazer. Uma pessoa desatenta poderia facilmente confundi-lo com um completo idiota. Mexia sem parar as mãos, fazia careta, batia o pé no chão. Fora isso, amava o bilhar, que jogava sozinho em casa, quando não havia outra companhia. O que prova que a Mozart agradava a própria companhia. Não pensava jamais no que nós chamamos de “coisas sérias”, porque sua cabeça estava constantemente tomada por uma série de idéias em cascata. O prazer do momento era o que lhe importava. Só tocava por diversão, jamais por outro motivo.

Tinha ataques de faniquito também, como na vez em que, de passagem por Berlim, perguntou ao porteiro do hotel se havia alguma ópera na cidade. “Sim, O Rapto das Sabinas” – disse o homem. “É encantadora”. Mozart largou suas malas e foi correndo para o teatro. Queria saber como sua obra estava sendo tratada. Para não ser reconhecido, sentou bem no fundo da platéia, enfiado num casacão. Mas quanto mais irritado ficava com a execução desleixada da orquestra, mais se aproximava do palco. Até que, num deslize do fagote, interrompeu o maestro. Gritou bem alto e de pé, para que toda a orquestra o pudesse enxergar e entendesse o modo como a música deveria ser tocada. Alguns cantores, com o ego machucado, se negaram a continuar a apresentação, e só voltaram ao palco depois que o próprio Mozart foi ao camarim lhes rasgar elogios.

O Imperador José (da Áustria), que bisbilhotava tudo, pondo os olhos no papel de música que Mozart parecia seguir (numa apresentação oficial para a corte), surpreendeu-se ao não ver senão linhas sem notas, e disse:

“Onde está sua parte?”.
“Aqui – respondeu Mozart, colocando a mão na sua fronte”.

6.4.06

"obrigado, João e Solange, pelo dia que tomei de vocês"

era uma daquelas tendas de rua que, debaixo do sol, ficam ainda mais na rua, ou talvez fosse impressão minha, influenciada pelo sol, mas era uma daquelas tendas onde são vendidas revistas masculinas antigas, da época em que mulheres ainda usavam polainas, e o dono da tenda era um rapaz não muito mais velho que o meu pai que comia macarrão instantâneo num copo de papel e não tinha a unha do dedão do pé, que mantinha escorado numa cadeira de ferro dessas de bar, dentro da tenda e na tenda foi que o sol me lembrou de enxugar a testa e respirar, olhar para os lados antes de entrar na frente do primeiro carro, mas o que importa é que, entre os milhares de exemplares de Danielle Steel e outra montanha de livros sobre resgates ecumênicos, me encontrei trocando cotovelos com uma senhora que cheirava a mijo velho e tinha nas mãos uma cruzadinha que tinha na capa o rosto da sua santidade, o papa, então, como não sou nenhum anti-cristo, pedi desculpas à velhinha pela cotovelada e perguntei se ela gostava das cruzadinhas, disse meio sem querer, porque quando penso digo coisas sem querer, que as cruzadinhas eram boas para evitar a esclerose, no que a velha pareceu que ia me beijar na boca, segurou meus dois braços e começou a escorregar pelo meu corpo de olhos fechados, no que talvez tenha sido um aviso dos céus, pois eu estava ali para ela e ela ali para mim e de repente o cheiro de mijo se tornou jasmim e vi nos olhos da velha, por fim, nas suas bochechas tremelicantes, que estava tendo um derrame, e nisso abri os olhos e me vi sentado no meio-fio, ainda debaixo da tenda, debaixo do sol, e a velha estava ali também, com suas lentes de bolso anotando os preços das cruzadinhas, separando uma pilha e me olhando de lado, perguntou se estava tudo bem sem esperar qualquer resposta e meu suor começava a evaporar do corpo quando vi que sobre uma das muitas pilhas de lixo de papel estava escrito: "qualquer um por R$ 1,00", então cocei meus bolsos, achei uma nota de um onde a estátua grega da nossa moeda usava um bigode esferográfico e suiças, mas serivia por ora, e eu precisava ir embora, nada de muito interessante na pilha a não ser lá embaixo, bem escondido, uma tradução feita pelo Monteiro Lobato da "Filha da Neve", Jack London, que apanhei sem pensar, por isso fiz certo, a capa era brega, muito brega e carcomida por traças que, mesmo elas, pareciam entediadas, como tudo mais, o rapaz que parecia meu pai sem sonhos, o sol emburrado que empurrava pedaços de carne e gordura para dentro dos escritórios, o homem que vendia churros e anunciava seu produto como um vira-lata uiva, a velha que, sorridente apesar de distante, fazia um sinal da cruz a cada salmo que lia alto antes de começar uma nova cruzadinha, e eu precisava desesperadamente de qualquer coisa que não estava ali, então paguei meu preço, que vale uma prata, e como um pato sem asas também fui empurrado pelo sol rua afora, em cima da hora de sentar numa poltrona e torcer para o tempo parar de passar dessa forma, só que no caminho aconteceu uma coisa estranha: resolvi abrir o livro enquanto andava na direção do fim da rua sobre cujo asfalto o piche bailava em ilusão de ótica, e na primeira página do livro havia uma dedicatória: "parabéns pelo seu dia! de João Frederico para a professora Solange", e o que aconteceu no fim das contas é que eu roubei o dia de Solange para mim e agradeci a João Frederico pelo presente, antes de o chão se abrir.

5.4.06

"A Carlos Drummond de Andrade"

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

João Cabral de Melo Neto

“coisa pós críptica ou a caminho do trabalho”


















de Jaan Elken
Post Scriptum / Papaver Somnifer
oil, acrylic, ready-made on canvas
2001/0597 x 130 cm
quando encontramos alguma coisa, um gesto singelo que seja, uma atitude despretensiosa, qualquer coisa em suma, na qual se possa enxergar claramente sinceridade e paixão sem esforço, por mais que queiramos imediatamente passar a ter aquilo ou a ser como aquilo, é inútil no entanto tentarmos absorver imediatamente a sensação nova da coisa ou a própria coisa concreta recém descoberta. precisamos primeiro entender de onde veio a coisa descoberta. depois precisamos compreender ou dar um significado a ela. depois precisamos taxá-la, equipará-la com outras coisas descobertas que descobrimos antes, e por que elas, apesar de seu interesse particular, diferentemente desta, não mudaram nossas vidas. então, como agora, descobrimos que nossa função aqui é tentar descobrir aquilo que não está em nenhum lugar além dos nossos trilhões de cabeças solitárias.
ps: queria na verdade dizer que em vez de tentar entender é necessário deixar o corpo absorver eventuais novas sensações sobre uma coisa concreta ou sentimento forte, apenas para a cabeça não te tapear como seguidamente ela faz comigo, como agora por exemplo, quando fui obrigado a usar um post scriptum em itálico para terminar isso daqui.

4.4.06

"sol que arde feito peito com medo da carne"

agora é manhã
tarde e sempre
que se amanhã
a noite se atrasa
se amanhã o mar
se amansa é que
enquanto há manhã
que se saiba manhã
há mar.

será o fim da velha fornalha
que me entorna de vésperas
na hora magra do perímetro
da paz tardia do dia da minha
derrota final para o rol do sol
que castiga feito papilas de sal
a despeito do que sinto dentro
do fosso oculto do teu centro:
pretensos braços rarefeitos
feitos de formol.

teu silêncio amarelo
meu elo
deflora meu cerne
teu gelo
abre passagem
e entra.

forja meus gritos com tua fibrose
tímida poeira em olhos de vidro
dívida de tripas com tua mentira
mágica celofane inútil que mata
depravada língua de fogo na pele
porque me aceita sem margem
pela janela.

mas meu peito tem um defeito:
é feito de carne e não de idéias.

a carne consome o tempo refeito
que passa em alarde e quem sabe
as idéias não ganham meu corpo
com gosto se gosto de ti do jeito
que és luz sol sem foco nem feixe
simples final vermelho que tendo
a cor da minha carne rançosa
sem demora tem também
seu fim.

mas meu peito tem um defeito:
é feito de carne e não de idéias.

assim como o sol que a manhã
anuncia meu cedo demais para
culpa sepulcral de fogo no olho
que aponta para a terra inculta
que agora me tarda a manhã
que arde como a carne que
(como a carne do meu peito)
nem sempre que se queima
é uma questão de escolha:
às vezes queima
de medo.

2.4.06

"véspera de um encontro"

eu empato comigo mesmo quando quero vencer a marcha simples do afeto e minha raiva, por mais que sim, não, não cabe, não sou grande o suficiente para morder lábios que não sejam imaginário sangue, e para encarar a própria faringe minha carcaça se apega fácil demais e odeia rádio que se ouve só, e, como Mozart, queria sair por aí pergunando: “você gosta de mim?”, e poder chorar por uma réplica negativa, ou ter uma crise convulsiva se alguém tocasse a nota de um trompete, mas tudo supera a delicadeza e por isso só malucas se aproximam de mim do mim que não é meu, infelizmente, mas gostaria de dizer, ainda assim, para impressionar minha própria fragilidade: “dos trinta filmes que fiz...”, “de fato, dos 15 contos de minha última antologia...”, ou bocas em dúvida por causa de avenidas mudas, tortas, ou espertas demais, ou bichas sérias, o que não me ajuda muito na relação entre o que eu quero e aquilo que eu tenho na minha frente, sem saber no fundo do fato, de fato, que se passa na minha cabeça – isso é apenas uma cabeça? – quanto mais daquela menina com uma rosa falsa presa na orelha, que sorri ainda menos que eu, e eu a amo, mais porque gosto da palavra que do significado que, burramente, ninguém soube definir assim como se define uma parede branca, sem saber que talvez o amor que já soa ridículo assim quando eu escrevo seja apenas uma parede branca e a mosca morta petrificada na parede branca que eu posso chamar de amor seja eu sem saber que você também tem sua parede, mais falta de amor do que amor em si, já que é tão fácil falar de amor, como se vê aqui.

não que eu goste. mas não também que eu use roupa preta e cabelo com goma, ou camisa de botão aberta florida com cinto de couro, ou um espeto cromado fincado no queixo, ou que dance e abrace todo mundo como se fosse um pretexto para morrer. não consigo extremar sentimentos, respeito seu ritmo ausente de mim. A menos que caia na grama para ser carregado por um senhor barrigudo que pareça com o pai que inventei agora e já me tapeou com um sorrisinho sórdido: o que nunca aconteceu e seria meu sonho.

fora o sonho, minha vontade sempre foi beijar uma mulher mais pesada do que eu. ninguém entende isso por isso eu não explico isso, mas é um tipo diferente de enigma sensual. somos iguais no que me diz respeito e difere: no caso a dor de ser um gordinho. minha cabeça é gorda como um toucinho. pego nas banhas como se sonhasse com meu próprio desfecho sorridente.

será se sou infeliz? palavras.

se todos bocejam, não me venham falar de chatice. falemos então sobre vaidade.

eu diria: a vaidade é apenas aquilo que se desprende de ti quando você está pensando em outra coisa que você pensa que é a maneira como as pessoas te vêem mas de fato é apenas você mesmo, mas prefiro dizer: fique aqui. você diria: nem pensar. eu diria então: você tem uma bela irmã mais nova, e como você vai? você me estapearia. Drummond dirira: mal, obrigado, minha irmã é careca. e diríamos todos te odeio. como é estranho e rápido conhecer uma pessoa quando você já inventou ela errado do começo.

eu minto
que não consigo
dizer o que sinto
mas sinto
que não consigo
dizer o que minto.

não sei terminar essa daqui e
para dizer a verdade
estou nervoso como o diabo
porque ela me espera
debaixo da marquise
e eu não sei onde estou.