era uma daquelas tendas de rua que, debaixo do sol, ficam ainda mais na rua, ou talvez fosse impressão minha, influenciada pelo sol, mas era uma daquelas tendas onde são vendidas revistas masculinas antigas, da época em que mulheres ainda usavam polainas, e o dono da tenda era um rapaz não muito mais velho que o meu pai que comia macarrão instantâneo num copo de papel e não tinha a unha do dedão do pé, que mantinha escorado numa cadeira de ferro dessas de bar, dentro da tenda e na tenda foi que o sol me lembrou de enxugar a testa e respirar, olhar para os lados antes de entrar na frente do primeiro carro, mas o que importa é que, entre os milhares de exemplares de Danielle Steel e outra montanha de livros sobre resgates ecumênicos, me encontrei trocando cotovelos com uma senhora que cheirava a mijo velho e tinha nas mãos uma cruzadinha que tinha na capa o rosto da sua santidade, o papa, então, como não sou nenhum anti-cristo, pedi desculpas à velhinha pela cotovelada e perguntei se ela gostava das cruzadinhas, disse meio sem querer, porque quando penso digo coisas sem querer, que as cruzadinhas eram boas para evitar a esclerose, no que a velha pareceu que ia me beijar na boca, segurou meus dois braços e começou a escorregar pelo meu corpo de olhos fechados, no que talvez tenha sido um aviso dos céus, pois eu estava ali para ela e ela ali para mim e de repente o cheiro de mijo se tornou jasmim e vi nos olhos da velha, por fim, nas suas bochechas tremelicantes, que estava tendo um derrame, e nisso abri os olhos e me vi sentado no meio-fio, ainda debaixo da tenda, debaixo do sol, e a velha estava ali também, com suas lentes de bolso anotando os preços das cruzadinhas, separando uma pilha e me olhando de lado, perguntou se estava tudo bem sem esperar qualquer resposta e meu suor começava a evaporar do corpo quando vi que sobre uma das muitas pilhas de lixo de papel estava escrito: "qualquer um por R$ 1,00", então cocei meus bolsos, achei uma nota de um onde a estátua grega da nossa moeda usava um bigode esferográfico e suiças, mas serivia por ora, e eu precisava ir embora, nada de muito interessante na pilha a não ser lá embaixo, bem escondido, uma tradução feita pelo Monteiro Lobato da "Filha da Neve", Jack London, que apanhei sem pensar, por isso fiz certo, a capa era brega, muito brega e carcomida por traças que, mesmo elas, pareciam entediadas, como tudo mais, o rapaz que parecia meu pai sem sonhos, o sol emburrado que empurrava pedaços de carne e gordura para dentro dos escritórios, o homem que vendia churros e anunciava seu produto como um vira-lata uiva, a velha que, sorridente apesar de distante, fazia um sinal da cruz a cada salmo que lia alto antes de começar uma nova cruzadinha, e eu precisava desesperadamente de qualquer coisa que não estava ali, então paguei meu preço, que vale uma prata, e como um pato sem asas também fui empurrado pelo sol rua afora, em cima da hora de sentar numa poltrona e torcer para o tempo parar de passar dessa forma, só que no caminho aconteceu uma coisa estranha: resolvi abrir o livro enquanto andava na direção do fim da rua sobre cujo asfalto o piche bailava em ilusão de ótica, e na primeira página do livro havia uma dedicatória: "parabéns pelo seu dia! de João Frederico para a professora Solange", e o que aconteceu no fim das contas é que eu roubei o dia de Solange para mim e agradeci a João Frederico pelo presente, antes de o chão se abrir.
6.4.06
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