27.12.05

"O dia em que matei a lua"

Num dia cinza, fim de tarde, vi uma mulher na rua: pele de cabra empalhada, juba arrasada de medusa, quanto às vestes, semi-nua, olhos de mil coelhos sentados na face obscura da lua. Marcas vermelhas na pele marcada por ausências inoportunas, triste esquecido presente passado, futuro perdido na falta de tato para uma entrega compreensiva, porque a compreensão exige sangue, exige vida, exige mortes pequenas mal-vividas. Mas o vento do tempo desdentou o que um dia foi chance.

Com quanta mágoa se compõe um trago? Mais duas cachaças pernambucanas, ela pede, Engenho do Meio, vômito branco, glândulas na base do pescoço, hipertireoidismo latente, as costas ardem, feridas no céu da boca. Me pega pelo braço, piscando assopra: “sou viciada, preciso de uns tranqüilizantes, você me arruma o dinheiro?”. Dou a ela um real, tudo que tenho para loucura alheia, porque minha vergonha custa caro demais para um mendigo mais gordo do que eu. Ela aceita e me fala do mar da praia do diabo e de quanto andar sem rastro se lhe significa quando ela sempre teve a chance de fazer aquilo que pouco podia transmitir sem virar os olhos por causa da abstinência daquilo que moleques pálidos da minha idade são incapazes de compreender sem um sorriso abobalhado cheio de bico num novo e velho úmido enterrado trago de qualquer coisa que seja aquilo que não é o que você, rapaz razoavelmente educado, é capaz de pensar sem levar a mão à boca numa atitude exageradamente sincera, porque mentirosa, já que toda sinceridade inquestionável esconde uma velha dúvida eterna em meio a pedras e girassóis fosforescentes.

Sei que era gorda e feia, como eu sempre imaginei a mim mesmo, e no fim acabava imaginando os mais bonitos da mesma forma, porque meu mundo era cinza, bonito como as cinzas de uma civilização passageira ao sabor da corrosão da história – meu pai cinza, grisalha figura feita de areia rala e branca, coisa que mais gosto porque gruda na pele –, a areia muda sempre para melhor, em vários formatos de redemoinhos e dunas alexandrinas, com buracos feitos de maré, erosão das trevas, meu pai, sempre ele, minha única incompreensão de mim mesmo. E queria tanto poder orgulhá-lo (só por causa do hífen) que acabei sendo motivo raro de orgulho e escárnio para o diabo, aquele velho vagabundo que sem querer fez carreira no meio da religião católica de olhos fechados para possibilidades caóticas, e não pensem vocês que essas palavras vêm de mim agora, quem fala é a tal gorda da pele de cabra, focinho de mula manca, pedindo perdão antes de errar pela última vez, pelo que eu jamais conseguirei enxergar o tanto do pouco que existe naquilo que não se arranja em dignidade suficientemente para mentir sobre a própria vida que não se tem mais por causa da...

”Barbitúricos, meu bem, sabe o que são barbitúricos?”. Queria dizer que sim, que sei, que sou, que sempre fui, que viajei para Tânger, que chamei de preguiçosos os pobres argelinos do Casbah, só porque carregavam seus cordeiros imaginários, como Burroughs, como Clash. Além disso sou apenas um agente secreto de outro planeta, e o problema é que não sei porque me enviaram, me esqueci da maldita mensagem, disse Old Bull Lee para Sal Paradise, tudo na pele flácida da gorda de gânglios lunáticos, todos aqueles olhos obtusos, uns quantos cinco, girando na forma de uma chance morta num cargueiro onde conheci um velho polonês chamado Gniezno Kossubudzki, açougueiro e mercenário capataz, capaz de ficar completamente bêbado antes de molhar os lábios, só porque nasceu sem ter morrido primeiro, o que é raro e claro que eu já tinha tomado umas, assim como se faz logo antes de se pensar.

Disse à gorda que era contra barbitúricos, mas pagaria a ela um sanduíche de pão com provolone, se fosse longe a fome do nome chamado homem. Ela riu. Uma gorda viciada rindo... Lembrei da minha mãe e chorei sem conseguir rir junto com ela.

Foi tudo muito raro, a começar por mim mesmo, ao escrever essa história, nem tão rica nem tão pobre, nem tão triste nem tão viva, por que afinal negociei um sanduíche de queijo com a morte, e isso não é todo dia.

Fui para casa dormir. Chorei de novo num novo sonho. Jogava damas com minha avó materna, com quem nunca troquei nenhuma idéia. Ela vestia camisola florida e as peças do tabuleiro eram todas de madrepérola. Sangrava velha como uma úlcera. Pus a culpa nos suecos, porque nunca pude compreendê-los, e assim era mais fácil e menos triste, aparentemente. Dois dias de cama. Balanço: semana estranha. Acordei seco e calmo no dia em que tudo deu certo, porque resolvi me errar.

Mês depois, a mesma gorda, dessa vez com trança, camisa de botão fechada no pescoço, saco plástico onde se lia “salve-se que deus te espera do outro lado do fosso”.

Eu estava sóbrio, péssima opção. Ela chegou até mim, eu que tinha acabado de ver um filme sobre a vida e a morte de Vinicius de Moraes, pelo qual quis nascer de novo dentro de uma concha na praia de Itapuã, devasso pela primeira vez. Estava para poucos amigos, quando a gorda chegou outra vez – dada a situação – valendo por três:

- Que deus te abençoe (sinal da cruz, amém)! Vendo umas medalhas da Nossa Senhora da Conceição... Quer colaborar com uma?

- Não sou católico.

- Mas as medalhas são de ouro.

- Sim, mas não sou católico.

- Posso te mostrar as medalhas? Tenho também Santa Rita, Santa Filomena, Santa Francisca Cabrini...

- Dependendo da medalha, eu compro.

Mostrou a medalha. “Tem essa e essa e essa”, disse. Tirou outra do bolso. Todas iguais. Caíram umas tantas no chão. A mulher tremia, prestes a ter uma convulsão.

- Perdão... Mas não me interessam.

- Natal... Compra pra sua mãe.

- Minha mãe morreu.

Me senti mal imediatamente. Não pela mãe morta, pela frase. A gorda perdeu a lua dos olhos do primeiro dia e sem luz eu passei a enxergar enviesado. Me amou sem paixão, pobre gorda viciada em perdão, há muito ninguém lhe olhava nos olhos, talvez porque não os tivesse mais, agora que a lua se apagou com tiro, meu tiro, as medalhas escorrendo pelas mãos, aquele ódio muito bem criado.

Matei a lua porque ela se apaixonou por mim e, como eu, nunca mais ela voltou a nascer. Pelo que me culpo mesmo quando finjo que ponho o ponto final aqui.

21.12.05

"A felicidade anda bêbada de ônibus"

Entrei no ônibus sorrindo e cambaleando, como qualquer sujeito do lado de quem se pode dormir, e fui para o fundo, chacoalhando com os buracos do asfalto. Havia algumas caras mortas e três meninas no fundo.

Assim que sentei me virei para trás: vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela do ônibus. Um reflexo cansado, ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava do lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, então pensei: “que diabos!”, porque afinal sou um sujeitinho distraidamente colonizado que gosta de pensar nos diabos, faltando para mim apenas o chapéu de feltro cor de oliva, um cigarro enrolado manualmente na ponta do bico e uma garrafa de xerez desarrolhada pela metade.

Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, franja cai nos olhos e me pega de jeito, corpo duro, vida dura, muito mimo, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela chamava mais a minha atenção do que as outras duas juntas, a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes do seu sorriso falso. Olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para...

Ria de mim. Começou a me apontar. E eu pensei: “Quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais singelo e desapercebido. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo. Com ela levou minha ilusão. Eu ri eu ri eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar pra ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafa e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo. Era um riso com tantos pequenos detalhes imensos, que me senti na obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo na beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, tudo passa, eu passo.

Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que grita tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de mesa e chá. Mas eu rir de volta para ela era inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".

As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo me convencer de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça suas amigas... Sou apenas um bêbado".

Me levantei, porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da noite molhada. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Era melhor ver do que pensar nela. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, me chamo Leonardo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que ela ainda seja engraçada. A felicidade abriu a boca e ficou assim, sem me engolir. Disse por fim: "Muito prazer, Leonardo, me chamo Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.
Olhei pela janela. Ela estava ali, com a cabeça de fora. Tudo rápido demais porque mágico. O mundo ainda tinha vida na sua melhor metade. "Fique com deus", li nos lábios da Graça, da Felicidade. "Você...", eu disse de volta, meu rosto era só uma parte que sumia na escuridão das vontades. Até mais ver, Felicidade.

18.12.05

"Homens e Mulheres"


o homem sabe o que quer
a mulher sabe o que o homem quer
o homem não sabe que ela sabe disso
a mulher se comporta como se não soubesse
o homem quer ter a mulher
a mulher quer ter o poder das marés
e o primeiro engano resulta em compromisso

ela sobe as escadas pé ante pé
o destino na pantufa dos sonhos postiços
ele finge que não sabe o que quer
desespero em dominar o imprevisto

a mulher pára e olha, analisa a um quilômetro
julga friamente em prol de um calor real e seguro
o homem concorda com um sorriso: erro crônico
e não consegue mais pensar quando tudo fica escuro

homens não sabem o que fazer com relação às mulheres
exatamente por isso demonstram muita segurança:
marcam passos
engolem a seco
acenam dos andaimes
assobiam dos carros
acordam bêbados em becos
em suma, dão vexame

porque um homem ainda não sabe o que ao certo dizer a uma mulher
e enquanto ele não souber
a matemática reinará inevitável
os eixos dos nervos continuarão eletro-petrificados
pela mesma febre de passos
que arrasa com os sonhos
que constrói pseudônimos
erro de cálculo = início da equação
vida patife, de altos e baixos, tanta frase e tão pouca compreensão
manter a paz é tão cativante quando ter a beleza sentada no colo
homens continuarão sem entender como andar e amar ao mesmo tempo
mulheres continuarão sabendo disso e não darão mais a você do que os olhos
e a flâmula do amor outra vez vai cuspir teu rosto com seus desejos ao vento

homens continuarão agindo como se elas não soubessem
tateando no vazio das paredes noturnas com flores, álcool, preces
prestes
a cair outra vez no mesmo erro matemático que inicia a equação

uma mulher vai se aproximar de você e vai dizer:
“Tchecov de marido, Maiakovski de amante, Nabokov de cafetão”
e isso você também não vai entender – e por isso vai rir
e ela vai te olhar e não ver nada e vai seguir em diante na busca do eterno perdão:
soberba, malvada, baronesa, lacaia, princesa, ordinária
todas juntas um dia vão tomar tua beleza
você que nunca achou muita
e vão deixar tua cabeça:
uma cabeça num corpo de múmia

e você não vai fazer nada a não ser rir rir rir
depois vai dar chave de casa, as costas, chorar de raiva, dizer te amo
suas costas vão estar de novo congeladas, sua nuca exposta em riste
suas pernas gangrenadas, seu copo vazio, seu nariz que cheira alpiste
ela ajeitando os cabelos de costas: silhueta-artífice do engano
deixando a calça no cabide
perna dobrada sobre a cama
calça meia-calça calcinha - um brinde!
coleção de posteridades a cada bafo com travesseiro, a cada voz sem som que ama
e, na maioria das vezes
apenas uma felicidade triste que
um pobre diabo não sabe se chama queimadura ou chama

15.12.05

"da impossibilidade de escrever sobre a lágrima"

se para mim fosse possível escrever sobre a lágrima
teria que falar de lembranças perdidas na confusão de passos tortos
lembranças pelas quais choro sem molhar o lenço da minha culpa
por aquilo que deveria ter deixado de lado em benefício de novas alturas
pelos charcos de delicadeza enterrados em tumbas lapidadas de esquecimento
pelo sofrimento de cruzar caminhos invisíveis sem entender a razão das coisas
pelo sol por detrás das árvores, quando as folhas balançam, se soltam e caem
e pelas folhas secas verde-amareladas que só choram quando a gente chora
seres tão cúmplices quanto imaginários, tão passionais mas...
...quando morrem e caem sobre o orvalho
deus absurdo, nada tão cruel quanto sacrificar a natureza pelo tempo escoado.

mas a lágrima continua ali, intacta, dentro de uma pequena taça
lágrima a quem digo bom-dia, boa-sorte, durma-bem, mas não passa
lágrima que não sei do que é feita, para onde vai, de onde vem ou como
queria falar sobre ela, escrever uma elegia com sua tinta transparente
mas para isso seria preciso métrica, e quando mede uma lágrima?

na impossibilidade de escrever sobre a lágrima, me inclino à pausa reflexiva:
quanto vale o choro dos desvalidos?
quanto vale o choro dos decapitados?
quanto vale a dor de um coração aflito?
quanto vale a busca pelo indeterminado?

minha lágrima tímida, lona de balão em chamas
custa desaguar por quem sem ti é raso e coxo
quero de volta tua foz, quero propor as pazes
preciso de ti como as flores amarelas do vento

hoje acordei e fui te visitar dentro da taça
porque era oco o peito, seca a garganta
e a última coisa de que tenho lembrança
é o vazio mórbido da tua ausência em mim.

13.12.05

"Por dentro das penas no chão molhado do mundo"

Trabalhe duro e reze, que você conseguirá uma corcunda.
(velho ditado polonês, não tão popular)

Isso não é perigoso?

Viver é. Além disso, não há mais nada que possamos fazer.

Mas precisamos saber como chegar... Ou precisamos pelo menos saber onde... Que tal ficarmos com como? O que te parece? Como talvez seja melhor que onde, você não acha?

Você bebeu?

Muito. Você?

Quase.

Desce devagar que o mundo está molhado.

Assim a gente pelo menos chega mais rápido.

Com cuidado! Não se esqueça de que nos esperam sentados com croquetes de carne e cerveja escura e lombinhos com queijo e tortas de maçã e mil folhas com creme, pão preto.

Aqueles do gueto alemão?

Esses. Parece que morreram e nos esperam lá para que possamos fazer a gentileza de...

Parece que é o trânsito...

O que você bebe?

Vinho tokay, e você?

Cerveja de raiz de vidoeiro.

Você é um grandíssimo sanguessuga de uma figa. Proponho um brinde a isso!

Os dois brindam, se abraçam e começam a cantar:
“no país do não-me-lembro / dou três passos e me perco”.
Algum tempo passa em absoluto silêncio.
Então uma forte batida: buzinas, vozes, sombras, sangue, água corrente, medo, delírio, esperança. Será mais fácil morrer pela causa do que viver por ela? Os insetos se calam.

O que estamos fazendo aqui?

Você não se lembra?

Não. O que estamos fazendo aqui?

Esperando... O trânsito... Mas por que quer saber? Temos tempo.

Você ainda tem as pinturas do Modesto Mussorgsky?

Toca-fita ligado: Quadros de uma Exposição.

Parece que agora o mundo escorrega mais rápido ainda.

O que afinal você quer de mim?

Eu mesmo.

Você mesmo, de mim... Podemos negociar. Além disso, não há mais nada que possamos fazer.

Muita neblina. Acho melhor pararmos... Uma placa! Perigo! São eles ali?

Aqueles sentados juntos numa mesa sob a neblina?

Sim, aqueles congelados... Está vendo, ali, naquelas teias de aranha... São eles ali?

Não. Aqueles somos nós. Outra vez, temos bons corações.

Acabou seu vinho tokay?

Sim, mas ainda temos vodca. E sua cerveja de raiz de vidoeiro, acabou?

Sim, me passa a vodca.

Não há necessidade. Abre a janela. Está vendo, vindo do céu?

Espera um pouco: esse aqui sou ou é você?

Nenhum dos dois, eu sinto.

Você vende penas?

Sim, eu vendo penas.

Logo depois o carro some na névoa. E ninguém até agora sabe quem morreu e quem sobreviveu por dentro das penas no chão molhado do mundo.

12.12.05

"Estátua Portenha"

o amor não tem substância


As mulheres ali pelas bandas da Avenida de los italianos, a qual eu percorria por uma razão sentimental, andavam de mãos dadas e eu me sentia tão bem, tão sortudo por poder ver tamanha demonstração de carinho e delicadeza em público, algo que nenhum homem é capaz de fazer, porque as mulheres de Buenos Aires simplesmente se dão as mãos ou os braços e seguem em frente olhando para o chão, como se houvesse algo de irremediável em viver sobre o chão da Terra que as impedisse de sorrir.

Então cortei pela Córdoba, quebrei na San Martin, parei para tomar um trago e um ar na praça onde o general libertador aponta para onde meu desejo nunca pôde alcançar, então percebi que tinha bolhas nos pés por ter pensado demais debaixo do sol quente, porque o diabo de Buenos Aires é que o céu é tão azul quanto o azul da bandeira Argentina, mas o sol não é tão bonito quando racha o pixe debaixo da sola furada do teu tênis velho.

Ou talvez fosse apenas o malbec tinto vagabundo de dois pesos e meio mais uma menina muito alta, não muito bonita, mas muito compenetrada no seu bloco de desenho – o que para mim é muito bonito numa mulher – sentada por ironia no Parque Mujeres Argentinas, muito concentrada nos traços de um dique que rabiscava alternadamente com os dedos finos enlaçados nos cabelos de cachos claros na ponta da orelha e a língua marcada de vinho para fora, metade mordida, saliva na ponta do dedo, pontas dos dedos esfumaçando os traços num comportamento artístico, sério e desleixado, estilo em suma, uma garrafa pela metade de um syrah tão vagabundo quanto o meu malbec ao seu lado no chão, o que nos tornava automaticamente cúmplices dentro do que tinha imaginado para mim mesmo como uma viagem agradável, imaginativa e adimensional, sem necessariamente ser todo tempo real. E quando ela franze a testa e usa a borracha, eu penso que isso significa que por mais que você queira, jamais vai conhecê-la além do que ela quiser te apresentar.
Seu lápis caiu quando ela se agachou para repousar a garrafa do seu quarto de vinho no chão. Não sei porque ela olhou para mim e não sei porque eu não pude olhar para ela, já que queria tanto ser um traço do seu rabisco, mas mesmo assim apontei para o lápis, embalado pelo vento atrás do banco, quando vi que a moça era uma estátua de mármore, o lápis era meu próprio lápis e eu estava apaixonado por uma estátua, tão quieta e pálida quanto uma portenha.

6.12.05

"In the footsteps of the walking air (Kenneth Patchen)"


In the footsteps of the walking air
Sky's prophetic chickens weave their cloth of awe
And hillsides lift green wings in somber journeying.

Night in his soft haste bumps on the shoulders of the abyss
And a single drop of dark blood covers the earth.

Now is the China of the spirit at walking
In my reaches.
A sable organ sounds in my gathered will
And love's inscrutable skeleton sings.

My seeing moves under a vegetable shroud
And dead forests stand where once Mary stood.

Sullen stone dogs wait in the groves of water ...
Though the wanderer drown, his welfare is as a fire
That burns at the bottom of the sea, warmin
gUnknown roads for sleep to walk upon.

********** tradução **********

"Nos passos do vento andante (tradução de Leonardo Marona)"

Nos passos do vento andante
Proféticas galinhas celestiais tecem panos de puro desejo
E encostas suspendem asas verdes em macabra viagem.

Noite na sua haste macia se choca com os ombros do abismo
E um único pingo de sangue escuro cobre a Terra.

Agora é a China do espírito andante
Ao meu alcance.
Um órgão de madeira escura ressoa na minha vontade acumulada
E o inescrutável esqueleto do amor canta.

Minha visão se move por baixo de um túmulo coberto de plantas
E florestas mortas padecem onde um dia Maria padeceu.

Cães ariscos de pedra esperam no pomar das águas...
Ainda que o andarilho se afogue, sua saúde é como um fogo
Que queima no fundo do mar, desgelando
Estradas desconhecidas para o sono sobre andar.

4.12.05

"Balada do Mangue" (Vinicius de Moraes)


Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas cafetinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de cafetinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

1.12.05

"Analista"

hoje, saindo do analista,
cometi o que a cruzadinha,
no glossário de palavras difíceis,
denomina devorismo:
"uma despesa injustificada e excessiva".

ao ter a surpresa de que economizaria
25 reais no analista
e ainda conseguiria
um texto do Freud chamado "Sobre a Transitoriedade",
resultado de uma conversa do velho charuto
com um jovem e melancólico Rainer Maria,
fiquei feliz repentinamente, como uma tia,
ali eu sabia a verdade,
ali eu me enganavae ainda ria.

então entrei numa livraria moderna de muita vitrine
- doeu ver livros expostos como aparelhos de ar condicionado -
deslizei por dentro das gôndolas de um Burroughs todo cagado
com as mãos ensangüentadas e as ampolas vazias
presas nos seus anjos decaídos sem veias ou pupilas.

passei por Iessiênin estendido num divã do Hotel Inglaterra,
Leningrado,
sem bebida,
pagando o pato,
o rosto desfigurado,
a roupa em farrapos,
suspensórios frouxos, calças puídas,
uma das mãos para baixo e outra cobrindo as feridas,
nos olhos mais nada, isso em 1925,
com a carta do seu corpo sagrado ao lado como justificativa
e toda a dor de um sonho sobre suas sobrancelhas retorcidas.

passei no meio por entre a Bleecker e a Terceira,
onde vi Simon e Dylan,
sentindo o frio do mundo na barriga e olhando para as estrelas,
onde se podia ouvir ronronar os estômagos vazios na luz do dia,
as moedas dos vagabundos nas suas canecas,
algumas pequenas mas afiadas surpresas,
quem sabe Dave Von Ronk dedilhando valsa com jazz numa Gibson,
numa época em que ou você caçava ou você era a presa.

economizei 25, gastei 70
em apenas duas pistas,
melhor, gastei 69 e 90.

talvez tenha sido isca,
talvez a recompensa.

próximos assuntos para o analista:
o devorismo suprime as pistas?
o mundo ainda faz diferença?
o passeio justifica a isca?
se não, que doença?

27.11.05

"O Anti-Profeta do Caos"


Impressões e fragmentos de impressões depois de ver “No Direction Home”, documentário de Martin Scorsese sobre a vida de Bob Dylan:

“Louvado seja o homem. Ele existe no leite e vive nos lírios. E ouve-se música do seu violino no leite e no vazio arenoso. Louvado seja a pétala interna da carne não exposta, do pensamento suave. Louvada seja a desilusão, o ondular. Louvado seja o sagrado oceano da eternidade. Louvado seja eu, escrevendo, já morto, e morto outra vez”. (Jack Kerouac)

Dylan respira melhor do que a maioria do resto dos homens. Woody Guthrie atado a uma cadeira de rodas num manicômio de Morristown esperando pela sopa rala de coentro agitado demais para ser aceito num mundo sem vírgulas. Johnny Cash oferece a própria guitarra ao jovem Zimmerman em troca de três acordes. Tocar viola para uma multidão logo após o discurso de Luther King na Marcha para Washington. Eis os momentos inesquecíveis do garoto com voz gralhada de Duluth, Minessota, que tocou seus primeiros acordes por acaso, porque achou um violão velho no porão da sua casa e uma vitrola de 78 rotações. O resto é passagem, caminho sem procedência, lembranças esquecidas na chance das possibilidades de erro e acerto, como em tudo o que se move por paixão...

Como em dezembro desembarcar do subterrâneo direto para a neve grossa na McDougal Street, onde garotinhos bem-nascidos vindos do interior das bochechas gorduchas e rosadas chegam para conferir a cena estranha de formigas humanas apinhadas nas calçadas das aparências profanas em constante mutação. Ou bichas discretas procuram cachecóis cheirosos para poderem chorar pela dor do mundo que está tão longe do seu armário quanto da fé cristã no genocídio. Bem ali no Café Wha? ou no Gaslight, onde você podia ver Ferlinguetti em cuecas recitando com os dedos ou com uma máscara veneziana batendo à maquina um poema sobre um rapaz que pensa ser Tom Sawyer e caça caranguejos no Rio do Bronx, imaginando o Mississipi. E no San Reno – enquanto stalinistas e trotskistas brigam para saber qual o regime que planeja matar menos por trás de uma bandeira de sangue – o escritor James Baldwin flutua como um espectro sonolento do Bronx baforando a fumaça do resto do que sobrou do plano para a humanidade, na vitrola roda o som de uma velha cantiga tradicional irlandesa, pelo que Baldwin escarnece com o punho: “malditos irlandeses!”, e banjos e cítaras e rabecas e homens mascarados pendurados nos lustres e homens praticamente nus recitando poemas em pequenos palanques rangentes e mulheres de tranças cheias de benzedrina e moscatel esperando pelo próximo Arthur Rimbaud.

Dylan, com 20 anos, rouba 400 vinis raros de folk, muito Guthrie e Seeger e Williams e Cisco Houston e Leadbelly e Sonny Terry, de um amigo e depois vem a descobrir que John Wayne era o dono de muitos dos discos. John Wayne, 1 metro e 93 de altura, na frente de Dylan, um fedelho bochechudo, dizendo que vai fazê-lo do avesso se não devolver os discos. Dylan empalidece, não sabe o que fazer, mas não perde a calma, são as regras do velho oeste, então os dois começam a falar sobre Woody Guthrie (sempre a salvação do amor comum), até que Wayne se lembra porque estava ali e todo o drama começa outra vez.

Dêem um jeito de ouvir a letra de “When the ship comes in”, composta por Dylan enquanto ele andava traçando a Joan Baez e ambos eram impedidos de se hospedarem nos hotéis de beira de estrada porque, afinal, ela já era um estouro nacional, seria muito bem-vinda, mas não aquele moleque descabelado com idéias esquisitas.

“Ele era Charlie Chaplin. Era Dylan Thomas. Falava como Woody Guthrie. Estava em constante movimento (...) Não era necessário para ele ser uma pessoa definida. Ele era um receptor. Estava possuído. Articulava o que o resto de nós queria dizer, mas não conseguia”, empolga-se Liam Clancy, um dos Clancy Brothers, quarteto meio-acapela-meio-comuna, com os olhos perdidos cheios d’água, muito vermelho depois de uns 30 pints de cerveja ale no balcão de mogno do bar onde Dylan Thomas tomou sua última dose e onde sobrevive a marca da sua inquietude, de sua notável presença em fuligem, logo após Liam ter recitado em transe o desfecho do Lamento no relho do carneiro de Thomas.

“Aprender todos os elementos já conhecidos expressando abrangentemente e conduzindo um sentimento, era a essência universal do espírito de uma época. Acho que consegui fazer isso”. (Bod Dylan)

Dylan cantava como se estivesse preso, querendo escapar. O que torna suas músicas andantes, verdadeiras epopéias, se você for fundo na sua raiz e esquecer os rótulos musicais. Ele cantava de uma forma muito arcaica temas que jamais tinham sido escutados até então. Tinha a linha do tempo na ponta das idéias.

O trecho abaixo corresponde ao discurso de Bob Dylan na entrega do Freedom Award, um prêmio que recebeu em 1963, aos 21 anos, da União de Emergência Pelas Liberdades Civis, logo após o assassinato de Kennedy, pouco depois da crise dos mísseis em Cuba:

“Não tenho uma guitarra. Mas posso falar. Quero agradecer vocês pelo Tom Paine Award em nome de todos os que foram para Cuba. Primeiro, porque são todos jovens e levei tempo para me tornar jovem e agora me considero jovem, e estou orgulhoso disso. Estou orgulhoso de ser jovem. E gostaria que todos vocês que estão sentados aí esta noite não estivessem aqui, e eu visse todo mundo com cabelos na cabeça e coisas assim, que levassem à juventude. Pessoas velhas, quando perdem os cabelos, devem sair. Olho e vejo as pessoas que estão me governando e fazendo as minhas regras, e não têm cabelos nas cabeças. Fico nervoso com isso. Para mim não há mais preto e branco, direita e esquerda. Há só para baixo e para cima, e para baixo é muito perto do chão. Estou tentando ir pra cima sem pensar sobre coisas triviais, como política”.

Ouçam “Chimes of Freedom”, na versão original de Dylan.

Algumas boas letras de Dylan sobrepõem a melodia, como em “It’s alright, ma (i’m only bleeding)”, por isso acabam se tornando uma espécie de mantra, de ciclo frenético de pensamentos por sobre uma essência poética clássica, o que por conseqüência transforma Dylan numa espécie de Xamã, segundo Allen Ginsberg, o profeta beat, ao analisar a letra de “A hard rain's a-gonna fall”, na verdade os seguintes versos: “And reflect it from the mountain so all souls can see it” (e reflito da montanha para que todas as almas possam ver) e “I'll know my song well before I start singin'” (eu saberei minha canção bem antes de começar a cantar), relacionando-os com a essência zen-budista.

Allen Ginsberg volta para a América depois de incrível jornada: deportado de Cuba, porque uma conversa reservada na qual ele criticava a perseguição castrista dos gays vazou até chegar nas orelhas da ditadura. De Cuba parte para a República Tcheca, onde é condecorado com uma coroa de papel e nomeado Rei de Maio durante a Primavera de Praga, para depois também ser expulso do país porque gostava de garotinhos sem barba. Chegando de volta à América, para quem deu tudo e agora ele era nada, recebe ligação de Dylan, que o convida para acompanhá-lo em turnê. Viajam juntos para Chicago, onde Dylan recebe os Beatles no hotel. Ginsberg fica um pouco deslocado, até se embebedar sentado no braço da poltrona de Dylan, depois do que ele levanta e começa a dançar, então John Lennon olha para ele de esguelha e diz: “Por que não chega mais perto?”, e Ginsberg se dá conta de como, apesar de estarem carregando nas costas todo o fardo de uma cultura em mutação, eles eram ingênuos e novos. Então, no meio de uma pirueta, Ginsberg cai no colo de John e pergunta a ele: “Garoto, você já leu William Blake?”, para o que Lennon replica: “Nunca ouvi falar nele”, com uma voz rabugenta, e sua primeira esposa o desmente em seguida e todos riem e quebram o gelo de uma vez.

“Você não pode amar e ser esperto ao mesmo tempo”. Bob Dylan sobre seu caso com Joan Baez e a mágoa de Joan por Dylan não tê-la chamado ao palco enquanto ele fazia uma turnê pela América e ela se sentia como uma groupie entre alucinados que trepavam nas paredes, quebravam o quarto do hotel e viviam sem parar, enquanto ela mesmo se dizia uma careta, que achava que sexo era errado e drogas era errado e álcool era errado e rock n’ roll era errado, porque afinal ela era famosa e tinha convidado Dylan ao seu palco no festival de Newport pouco tempo antes, e Dylan nem mesmo tinha ainda reinventado o rock n’ roll.

Uma boa para ouvir agora: “Love is just a four-letter word”, que Baez pegou de Dylan sem ele saber.

Bob Dylan, sobre as vaias: “Eu tenho uma opinião sobre as vaias... Porque você tem que entender que pode matar alguém com gentileza também”.

“The house of the risisng sun” – a história é a seguinte: Dylan consegue finalmente uma gravação livre na Columbia Records, principal gravadora de NY, e uma das músicas que ele grava é essa canção com raízes no folk melódico britânico do século XVII, muito tocada por Dave Van Honk nos cafés do Village. Depois de gravada a sessão e prensado o disco, Dylan encontra com Van Honk na rua e pergunta se poderia gravar a música num disco. Van Ronk diz que preferia que não, pois pretendia gravar a música também. Dylan diz “oh-oh...”, e a partir daí Van Ronk é obrigado a parar de tocar a música nas suas apresentações, porque todos o acusam de a ter roubado de Dylan que, mais tarde, para delírio de Van Ronk, também é acusado de ter roubado a música dos Animals, quando Eric Burdon decidiu eternizá-la numa balada gótica.

Nas gravações de “Bringing it all back home”, nas quais os músicos simplesmente tocavam livremente o quanto pudessem – e como Dylan planejava montar uma banda que soubesse tocar o blues, chamou Mike Bloomfield para tocar com ele, porque, afinal, o fenomenal guitarrista havia se apresentado a Dylan dizendo que tinha escutado seus primeiros discos e queria mostrar a ele como se tocava o verdadeiro blues, e de fato, disponível na cena, segundo Dylan, não havia ninguém melhor do que ele –, o engenheiro de som, que era fanático por Dylan, pensou durante a sessão: “Deus em vez de pousar a mão no ombro desse cara, deu um chute no seu rabo. Por isso ele não consegue parar”.

Ouçam, quando quiserem ouvir um folk: “Yes, I see you’ve got your brand-new leopard-skin pill-box hat”.

Dylan nunca foi um cantor temático, ou “de protesto”. Aliás, isso é o mínimo que se espera de um cantor: um tema e um protesto. Do contrário é melhor ele fazer outra coisa, tentar uma carreira na assembléia constituinte por exemplo. Bob Dylan segue por um túnel próprio, nem sempre iluminado, muitas vezes confuso por entre bifucarções suspensas, mas sempre absorve quase osmoticamente o que existe no caminho dentro da sua máquina de processar associações frescas e idéias inusitadas. Toda sua força é marcada pela sua respiração, um sopro sem porto nem paradeiro.

“Um artista precisa se cuidar para nunca chegar a um ponto em que ele acha que já viu tudo. Tem sempre que entender que deve ficar constantemente em transformação, sabe? E enquanto você puder permanecer nesse estado, as coisas vão funcionar”.
(Bob Dylan)

Fica a dica para os interessados em nunca encontrar.

24.11.05

"Lamento" (Dylan Thomas)

Quando eu era um rapaz presunçoso, um fedelho,
Semelhante à cusparada dos paroquianos
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de mulheres),
Andava tímido na ponta dos pés pelo bosque de groselhas,
Onde a áspera coruja gritava qual lendária teta,
Saltava em meu rubor, enquanto as meninas mais velhas
Jogavam boliche nos terrenos baldios dos asnos
E na gangorra das noites dominicais, cortejava
Quem quer que fosse com meus olhos maliciosos,
Tanto quanto toda a lua, podia eu amar e abandonar,
Junto ao arbusto negro como carvão, todas as esposas
Das pequenas núpcias de folhas verdes e deixá-las a sofrer.

Quando eu era um homem tempestuoso, um homem e meio,
A negra besta da congregação dos escaravelhos
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de putas),
Não um rapaz e um fedelho numa lua maliciosa
Que submergia e bêbedo como um bezerro recém-parido,
Assobiava durante toda a noite entre as tortuosas chaminés,
As comadres brotavam nas valas da meia-noite,
E as crepitantes camas da aldeia gritavam: “Depressa!”
Sempre que eu mergulhava num baixio de seios empinados,
Sempre que me enfurecia na colcha bordada de trevos,
O que quer que fizesse na noite negra como carvão,
Ali deixava as trêmulas marcas de meus pés.

Quando me fiz homem, o que chamam de homem,
E tornei-me a negra cruz da casa abençoada
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante das bem-vindas),
Com aguardente e uvas no esplendor de meus verdes anos,
Não um gato de rabo movediço na rubra aldeia escaldante
E como se cada mulher em ebulição fosse o seu rato,
Mas um touro da colina no calor sufocante do verão,
Que alcançara o seu supremo e deleitoso instante
Para os modorrentos e oferecidos rebanhos, disse eu,
Oh, muito tempo fluirá até que o sangue frio se arraste
E eu me recolha ao leito apenas para dormir,
Graças à minh’alma entediada, negra como carvão!

Quando eu era a metade do homem que fui
E merecia então as reprimendas dos padres
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de ruína),
Não um bezerro açoitado nem um gato entre as chamas
Nem um touro da colina sobre a relva leitosa,
Mas uma ovelha negra com chifres enrugados,
Ao fim a alma expulsa de sua falsa toca de rato
Se escondia rabugenta quando vinha o tempo das muletas;
E dei à minh’alma um olho cego, flagelado,
Casca e cartilagem, e uma vida de rugidos,
E empurrei-a até o céu negro como carvão
Para encontrar uma alma de mulher para esposa.

Agora não sou mais homem, não mais o sou,
Apenas uma negra recompensa por uma vida estrondosa
(Suspirava o velho relho de carneiro, agonizante de estrangeiros),
Asseado e maldito no meu quarto onde arrulham pombas,
Repouso rarefeito e ouço a mandíbula dos bondosos sinos
– Porque, oh, minh’alma encontrou uma esposa dominical
No céu negro como carvão e ela aborrece os anjos!
Rodeiam-me harpias que emergiram de seu ventre!

A castidade reza por mim, a piedade canta,
A inocência adoça o meu negro e derradeiro alento,
A modéstia esconde as minhas coxas em suas asas,
E todas as suas virtudes fatais atormentam a minha morte!

tradução de Ivan Junqueira

23.11.05

"Depois de morto, para Consuelo"

texto de Pedro Henrique Leite

Se há alguma peneira nos teus pensamentos um dos grãos me aturde a alma dos
olhos.
Se há um pouco de licor no assoalho do meu corpo foi a causa-vertigem da minha
fraqueza.
Aos poucos... Se há movimentos de vozes, são falsetes da minha intrínseca
ebriedade.
Cadência de puro peso aos meus joelhos meninos que se escondem entre o meio dos
meus braços.

19.11.05

"Homens Comuns"

Outro dia li em algum lugar
que Eça de Queiroz escrevia de pé.

E Errol Flynn
passava no pau creme de amendoim
antes de trepar.

E Sarah Bernhardt
amputou por conta própria
as duas pernas e disse numa carta
que esse era o dia mais feliz da sua vida.

E Mozart molhava a cabeça com água gelada
antes de começar a compor uma sonata
ou talvez fosse Beethoven.

E Chaplin já velho casou com uma guria de 13
e Poe fez mais ainda: casou com a prima de 13.

Li em algum lugar que Erik Satie
dormia profundamente
com um olho aberto
e um assistente
sempre por perto
media sua temperatura de hora em hora.

E alguém me disse, não me lembro quem nem por que diabo
que nas noites mais frias de inverno
Gertrude Stein passava horas embalando um bebê imaginário.

Soube que Stalin, mesmo depois de anos de ditadura no poder
ainda morava com a mãe numa dacha de quarto e sala no interior
e morreu ali de tanto beber
sem deixar nada
a não ser uma carta de amor
não destinada.

Emily Dickinson tinha mania de conversar com alguém
que as pessoas só conseguiam ouvir na sua imaginação.

Li que o pintor Rafael quase foi nomeado Papa
por conta de suas boas relações com a santíssima trindade
e no seu epitáfio alguém escreveu por bondade:
“Aqui jaz Rafael; enquanto viveu, a Mãe Natureza
temia ser por ele vencida; agora que está morto,
ela receia morrer também”.

Lendo sobre essas pessoas
ou ouvindo suas histórias
chego a conclusão de que
meu tesão por sovacos
não é tão estranho assim.

17.11.05

"A ausente" (Vinicius de Moraes)

para uma que está longe... e tão junto de mim

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...

3.11.05

"Uma certa nostalgia que não é minha"

para meu pai e meu avô

Havia quase 30 anos de diferença entre eles
mas tinham as caras parecidas,
o mais velho, Mario Osório,
costumava levar o mais novo,
Mario Renato, domingo nas corridas,
e às sextas-feiras para jogar botão
no clube Caixeiros Viajantes lá em Viamão.

Mario Osório enchia a cara de cerveja,
apostava as calças e a esposa na biriba,
sempre um pouco antes da última mesa,
dava um jeito de arrumar uma briga.

Mario Renato tinha amiguinhos imaginários,
o jeito de não chorar enquanto o pai apanhava.
depois arrastava o velho até o ponto de ônibus,
apenas uma carcaça cheia de coágulos,
depois que os outros viciados
tinham cansado de lhe chutar a cara.

e Mario Renato jamais esquecia dos conselhos do outro Mario:
“não importa apanhar ou bater, importa é dar o primeiro soco”.
cuspia uma bola de sangue e vez por outra um dente vinha junto.
e Mario Renato prontamente limpava com a manga da sua camisa.

um dia, os dois, nas corridas de cavalo, se perderam
porque Mario Renato ficou vidrado num tordilho
que jogou longe o jóquei ainda na volta de apresentação.
Mario Osório estava num daqueles dias.
mandou às favas o caixa-registrador,
jogou nas raias o radinho de pilha
e foi se embebedar a fiado,
no boteco do Agenor.

chegando em casa, vermelho de cachaça,
Maria Zula, velha companhia, perguntou:
“e quedê o guri, pai?”
Mario Osório gritou, mãos na testa, chute na parede:
“puta merda! esqueci o guri no jóquei!”
quando voltou viu Mario Renato sentado na sala dos achados e perdidos,
entre uma carteira de cigarros de prata e um paletó de linho azul-marinho.
fez o sorriso mais sincero quando viu Mario Osório entrar amuado cuspindo no chão.
gritou com o guri: “e tu, por que foi sumir?”, um tapa na nuca lhe desfez o topete,
voltaram os dois sem dizer palavra no que já era quase de manhã.
tão bonito, no Rio Guaíba, o amanhecer.
e tão feliz estava Mario Renato porque
Mario Osório tinha voltado por sua causa,
que nada mais importava além daquilo.

Havia quase 30 anos de diferença entre eles
e eram tão parecidos que se um comia o outro punha a mesa.
amavam-se cada um do seu jeito.
um não dizia o que o outro sabia.
o outro não sabia se sabia direito.

mas Mario Renato adorava quando,
alta madruga,
Mario Osório deixava um bombom com licor de rum assim que chegava do aeroporto (onde trabalhava no setor de abastecimento enchendo tanques de aviões) ao lado da cabeça do guri em cima do travesseiro.
e ele fingia que estava dormindo,
porque o velho cheirava a puteiro,
sem que nada precisasse ser dito,
nem nada precisasse ser feito.

1.11.05

"Morangos e Vinho"

Foram morangos com vinho, que ela comeu no jantar. Agora no chão na minha frente misturados numa poça de bílis e maresia. Foram morangos com vinho ou era minha alma que ela tinha bebido, agora despedaçada em pequenos coágulos cheirosos pelo chão de tábua corrida. Eu trouxe a vodca, trouxe a vida, mas estou sendo perseguido, não há dúvidas, e quero que ela me ache ali no meio da poça, onde posso ver meu reflexo. Onde posso cobrar a dívida do desejo desperdiçado pelo zelo. O reflexo sorri e eu não. E por quê? Porque foram morangos com vinho. Foi agorinha. Não fiquei surpreso. Abriu a porta, um beijo rápido, sentamos no sofá, pernas sobre pernas, aquele silêncio tão raro, então se virou de lado, de olhos fechados, e tudo ficou bem ali no chão de taco esparramado, meu rosto refletido. Não era como eu, e parecia tão eu mesmo. Agora ela dorme no sofá encardido de filme inglês. Ronca, uma vez baixo, outra vez alto, então se engasga, golfa, engole o ar. Na prateleira “A Convidada”, da Simone Beauvoir e um livro de conversação em francês. Na cozinha sirvo a vodca. Estou aqui, pensando: tantos planos, tantos danos, tantos anos... E foram morangos, tão cheirosos quanto o vômito da vida, de vinho, encarnado, de cor tão viva que só podia estar...

Não, não vou dizer isso ainda. Ou será que não eram morangos? Ou será que não éramos ela e eu e sim mais um começo de mais um adeus. Não. Eram mesmo morangos, mas que importa agora, se antes de começar já perdi a luta, abri a guarda, e nem tenho mais alma, muito menos coração, a não ser por aquela bola de carne gordurosa, que é onde depositamos todas as nossas esperanças e desculpas, porque de fato não existem, ninguém nunca os viu, alma e coração, a não ser em compota. Então dizemos que é ali que está o que não sabemos explicar. O diabo com isso! Estou sozinho escrevendo, não que alguém vá ler um dia, nem me importa. Perguntei a ela assim que ela caiu por detrás da porta, ao me deixar entrar com um sorriso, sobre a poça de bílis: quer que eu vá embora? Não, por favor, fique, disse o mar de Copacabana, durante a noite toda, com suas rajadas de onda. Pois fiquei, indo e vindo da cozinha, atrás da vodca, “termino a garrafa e me jogo pela janela para ficarmos quites”. Mas sentei na janela, sob a luz de uma sobra de vela, e, ah! como quis ficar ali para sempre, ouvindo as vozes do paraíso, observando na marquise o movimento de um pombo sem uma das patas, aqueles olhos alaranjados e indecisos, como os meus que, apesar de não serem laranja, mesmo que ninguém entenda, filtram as coisas em azul-turquesa. E as vozes são do paraíso mesmo, não, agora é Alceu Valença, minto, Elis Regina, que me lembra a mãe que foi embora levando com ela a última esquina.

O pombo sem pata dos olhos laranja na marquise. Um vaso quebrado tombado de flores secas na marquise. O pombo sem pata manca até o vaso de planta. “Pela primeira vez vejo um pombo mancar”, anoto na tarja da garrafa de vinho vazia que ela tomou com morangos no jantar. O pombo manca até o vaso quebrado tombado na marquise. Bica a copa de uma flor seca, na rua barulhenta de Copacabana, que em nada lembra o mar, apesar de ter. Anoto outra vez na mesma tarja da garrafa: “um pombo manco sem pata bicando a copa de uma flor seca num vaso quebrado tombado na marquise de um prédio feito de ladrilhos situado numa rua barulhenta de Copacabana me emociona mais do que 10.000 obras de arte dentro de qualquer museu contemporâneo”.

Largo o caderno. Fadado. Perdido. Sem chances. Os morangos! Com folha de jornal, recolho os morangos do chão, como se fossem as desculpas dos pedaços do meu próprio coração, apesar de ser apenas mais um tiro fatal, dentro de um peito que transborda ressentimento, loucura e paz. Levo o jornal com o que penso serem meus restos mortais, de onde escorre sangue demais, mas eu preciso achar que vinho, que ainda vivo, até a cozinha, onde adivinho a primeira impressão da cadeira de Van Gogh sobre a pia com vazamento e uma voz em holandês – e eu não entendo holandês – me sussurra o quanto pode ser miserável um sorriso por muito tempo, pelo que sorrio, pois, como já disse, não entendo.

Ela dorme e ronca na sala, tão minha de repente que imagino filhos, feridas, facadas. Então troco a rumba por Tchaikovsky, olho a sala no seu redor, vejo a garrafa tombada que me lembra o vaso quebrado tombado de flores secas na marquise, alimento de pombos e da noite dos infelizes, tudo como se morangos tivessem alma e o silêncio cauterizasse as cicatrizes.

Talvez seja sina sabida sozinha cortina cerzida sem sombra de dúvida seria outra vez uma garrafa de Concha y Toro, leio na tarja onde anoto meus sonhos, virada sobre os respingos sobre o telefone analógico azul-senão-seria-cinza. Do outro lado da sala, perto da porta de saída e entrada, entendo por fim a explicação da vela, cuja chama navega em ondas de sombra e luz e dúvidas e mistérios, trazendo em si a distância que separa dois corpos náufragos à deriva, tão juntos, tão suplicantes que, assim como a chama da vela vacila, o que vejo escorre pelos lados do que nem sei se sinto ainda. E acabou a garrafa de vodca. Quando vou dormir.

27.10.05

"Querida Terra por quem costurei meu coração"


Acordei hoje muito cedo, tinha ido dormir muito tarde ontem. Imediatamente me veio à cabeça: nada mais idiota do que um preguiçoso que não dorme. Depois lembrei que era quarta-feira, então eu tinha companhia, fora o sapo de cerâmica e o elfo flautista de cera sem um braço na estante de cabeceira. Uma mulher dormia ao meu lado, profundamente.

Foram na verdade duas imagens que, isoladas, não tinham nada uma com a outra. Mas em seqüência, somadas à ilusão de que eu estava de fato acompanhado, o que era algo perfeitamente discutível, tendo em vista que tenho visto coisas estranhas de repente desaparecidas antes do primeiro sorriso, como sempre foi assim, quando que no sono cada um segue seu próprio caminho, somadas também ao meu espírito senil numa carcaça juvenil, que não suporta uma briga, a menos que precise entrar numa, eram duas imagens que representavam a morte de alguma coisa importante que, quem sabe um dia, quando as coisas ganharem um nome melhor do que coisas, ressuscitaria, provavelmente no meu leito de morte, segundo meu intestino delgado, daqui a duas horas, dentro do sonho, quando acordei e continuei sonhando até o fim deste relato, anotado à mão num papel de receita médica, ou terá sido num papel de pão?

A primeira imagem os pêlos negros internos das narinas de Lizete, ou Lusinete, quando o sol já tapeava as cortinas e ela dormia como um filhote de fim de mundo, virada para mim, encolhida numa cedilha plana.

A segunda imagem um feto de curió – certamente era um pombo, mas prefiro imaginar um curió – aquele do peito marrom e do bico judeu, que no mercado negro vale um carro zero, ainda lambido de sangue, devorado por uma colônia inteira de formigas vermelhas, aquelas que ardem quando você pensa, como a política nacional, na terra batida vermelha que poderia ser Brasília ou o inferno, mas era uma das subidas e descidas do Aterro do Flamengo.

Em comum tinham apenas a mim, o fato de eu nunca ter reparado antes em narinas por dentro ou curiós por debaixo dos peitos, sem a pele, com os olhos azuis esmagados na terra. Terra? Uma carta me veio à cabeça. Uma carta para Terra. “Querida Terra, sinto saudades...”. Em narinas não pensava até então porque me parecia invasivo, como abrir a bolsa de um desconhecido no metrô ou roubar o cigarro de um cego antes que ele o acenda pelo filtro. No curió por causa do cu, palavra que raramente uso desacompanhada de sentido. E o que morreu na seqüência do meu quarto até o chão de terra batida do Aterro do Flamengo? Segui andando pelo meio de pedras pontiagudas, acenando aos pescadores.

No que pisei na areia, silêncio, escuro. Essas nuvens revoltadas que me restam de dúvidas sob um céu nublado sem firmamento. Minha testa estalada, gotas de suor frisadas sobre os cílios, a parte do corpo que prefiro ao lamento. Entre algumas pedras vi algas dançarem ao sabor da maré. Algas pêlos grossos negros. Arrepios. Algas, os pêlos nas narinas de Lizete, ou talvez Lusinete, ou talvez vontade. O feto do curió mantinha a boca aberta. “Queria engolir alguma coisa, devia estar faminto”, pensei quebrando um graveto no meio. Segui andando. Silêncio, escuro. O sol escaldante, a boca banguela raivosa do mar após a ressaca do dia anterior, quando minha alma trovejou pela primeira vez, engolindo meus dedos, minhas pernas, cintura, boca, olhos. Já não sei mais nada. Estou tonto, inundado. Uma gaiola vazia. Vejo um homem passar andando com o uniforme azul da vigilância sanitária e quase caio porque meus olhos deixam de ver por um segundo ou dois e as pernas andam sem ordem. Uma mulher me espera na cama. Não, elas nunca esperam, mesmo que estejam lá ainda. Os pêlos dentro das narinas de Lizete ou Lusinete, o feto do curió, Terra, as algas marinhas dançando no escuro silencioso do sol escaldante que bebe o mar revolto, aquele som infernal, porque eterno, do mar nas minhas canelas. E o que morreu na seqüência do meu quarto até o chão de terra batida do Aterro do Flamengo? Essa pergunta me martelando a cabeça. Fui embora aflito, olhando para os lados como um fugitivo.

Voltando pelo mesmo caminho pelo qual tinha vindo, encontrei no lugar do feto do curió um pequeno coração minguado, mas pulsante. E meu peito costurado. Quando entendi tudo.

Tive um dia um passarinho engaiolado, que era uma forma de olhar para mim mesmo durante as tardes que passava sentado debaixo do basculante da cozinha, em frente à gaiola. Uma fêmea, dormia o dia todo. Chamei de Terra, porque ela era tão triste e a Terra me parecia também tão triste e éramos todos, sem saber. Na verdade, dado o alto preço de um curió, creio hoje que fosse um canário. Mesmo assim gostava de Terra, que não piava nunca e tinha os olhos azuis da cor do mar que, no entanto, era cor de barro. Um dia um homem com uniforme azul veio e me levou Terra, agora me lembro bem, sentado num banquinho do parque. Ele tinha os pêlos muito negros nos braços, o que, lembro agora, à época me chamou muita atenção. No dia seguinte deixei uma carta na gaiola vazia de Terra. “Querida Terra, sinto saudades”. E então costurei meu peito. E hoje achei meu coração.

23.10.05

"NEGÓCIO DA ROÇA" (Rubem Braga)


- Comprei um cavalo por 700 cruzeiros e vendi por 900. Não ganhei nem perdi.

- Mas como? Se você comprou por 700 e vendeu por 900, como é que você não ganhou nem perdeu?

- Não ganhei nem perdi.

- Você não disse que comprou por 700?

- Comprei.

- E não vendeu por 900?

- Vendi.

- Então você ganhou 200.

- Não ganhei nem perdi.

- Mas como?

- Comprei o cavalo por 700 contos e não paguei. Vendi por 900 e não me pagaram. Não ganhei nem perdi.

18.10.05

"pai e filho conversando sobre a morte"

Quando você morrer eu morro.
Não.
Sim, uma parte de mim.
Não, nunca seremos tão íntimos quanto quando isso acontecer.
Íntimos? Você num caixão... Íntimos?
Sim, pense bem: de perto todo mundo é mais ou menos,
de longe todo mundo é legal, morto todo mundo é do cacete.
E de muito perto todo mundo é insuportável.
...
Por que você não lavou a louça?
Porque ainda estou comendo.
Você poderia comer o dia inteiro.
E você morreria por isso?
Um dia, talvez, provavelmente.
...
Você falando, parece que quer que eu morra.
Você não. Mas eu já quis que duas pessoas morressem.
Quem?
Um sujeito que me roubou e outro que era pelego de uma greve que eu fiz.
Mas você queria que eles morressem?
Queria. Mas não podia matar nenhum deles. Então tive que esperar. Outro dia me ligaram:
um de câncer no estômago, outro morto pela empregada doméstica, a facadas.
...
Mais gente de bem mata ou mais gente de mal mata?
Não existe gente assim.
Como não?
Todo mundo é meio mau. Alguns conseguem ser bons, sempre que têm um motivo. São os que chamamos de canalhas. Outros são ativistas, ou seja, malucos que lutam pela humanidade.
Você é a favor das armas, então...
Não exatamente. Tem um motivo pra você ser contra as armas: os crimes babacas. Sem armas, os crimes babacas diminuem. Esse seria um motivo. O único motivo na verdade.
...
Mas você é contra...
Do mesmo jeito que sou contra os babacas. Não acho a morte um absurdo.
Eu acho. Morreria se você morresse.
Mentira. Isso é desculpa pra não ter que viver.
Morreria. Uma parte simbólica pelo menos.
Você ficaria triste durante um tempo, sua vida mudaria, provavelmente pra melhor.
Eu morreria.
Então você morreria. E seríamos mais dois. Eu penso como os índios em relação à morte.
Como eles pensam?
A morte é tão importante quanto a vida. Talvez mais importante, porque é um elo eterno.
Eu também acho isso. Por isso que, se você morresse, eu me mataria.
Porque você acha a morte mais importante do que a vida.
...
Eu te amo. É tudo.
Eu também. E isso não é tudo.

E o guri foi lavar a louça, disfarçando com o mindinho a lágrima da morte, que ria no canto da pia.

16.10.05

"Jura?"

O termo talvez seja recente. Veja uma mulher bonita e descompromissada, a não ser com a própria neurose, e diga a ela, se você achar o suficiente, a julgar pelas medidas, suas linhas, que nessas horas são as medidas do mundo: “você é a coisa mais linda”:

Resposta: “Jura?”

Você pode esperar um tapa, você pode esperar bolivianos voando dos telhados, você pode esperar gordinhos imaginários, cornos resignados, que pensam serem fortes o suficiente para não comerem ninguém, achando que vão comer aquela gordinha, ela que um dia, e ela sabe, já foi gostosa pra valer, sem olhar ninguém senão olho roxo, então se acostumou a olhar ninguém, se acostumou a esquecer, o que é o próprio gordinho sem pescoço, um comportamento moderno, modesto, olhar ninguém, nada atrativo, um erro político, uma função prática social, olhar ninguém e ver o mundo, antes fosse articulado, mas não, faz questão de provar sua masculinidade no poder da inação.

Carol, é claro. São duas. Uma eu poderia matar, porque ela gostaria. Outra – que é a mesma, apenas eu não sou mais eu mesmo depois de alisar a mão daquela desconhecida e de ter três dentes marcados na carne do meu dedo indicador – ficaria estatelada num carro antigo, Fiat 147, e o amigo, marido da outra, bandido e gordo, pobre homem que espera que a força lhe explique certas sutilezas, como a morte por exemplo, briga com sua atual mulher porque sua ex-mulher, a qual espancava com cinta, vejam bem!, estava ali também, e isso era certamente um motivo a mais para ser valente, além do quem sabe um pau que funcionasse diariamente, e o gordo caça nos bolsos cheios palavras que dizem “tenho uma mulher que tem uma mulher, deitada com a mão no rosto num Fiat 147, e eu na verdade não tenho mulher, porque se tivesse, como poderia estar brigando com ela por causa da minha ex-mulher – antes fosse dela! – que esteve aqui, ou será que estou brigando só porque minha barriga ficou pequena demais para comportar meu ego, tão enlatado quando salsicha em conserva, esse troço viscoso que sai dos poros nas noites de sábado?”.
E Carol. Fui vê-la cobrir o rosto deitada no carro. Porque queria ver a morte de perto. A morte tem olhos azuis. Batidinhas na janela. Ela apenas abre o olho e eu aceno. O olho dela, só um, porque dois ela sabe que matam mais rápido, são tão grandes que não dizem nada. Por que, vocês podem perguntar, eu aceno para ela? Seria obrigado a responder: porque ela se esconde e acha a vida bela, demais para colocar sua morte prática em questão. Não quer mudar de estratégia, agora que tem os olhos de fogo. E eu também acho a vida bela, do contrário não saía mais nas ruas. Mas me aperta o coração procurar beleza debaixo dos tapetes, ou num Fiat 147, para encontrar poeira ainda quente, ou então Carol tampando o rosto com olhos vivos exemplos da morte, uma canga de ontem na praia de Ipanema, pequenas varizes, como poemas de amor, sobre a cara. E o que poderia me tirar da cabeça a menina “MAIS LINDA”, quando eu disse a ela e ela apenas respondeu, sinceramente amuada, “JURA?”, mas, tudo bem, concordo com o que vocês estão pensando agora, se chegaram até essa linha, que, sim, esse texto não terá fim, já não tinha um propósito antes de começar, agora sai apenas porque assim me sinto mais convicto do que gostaria de dizer sobre Carol, já que dificilmente para Carol, mas quero marcá-la de algum jeito, aquelas marcas de cigarro no pulso direito, quero marcá-la como aquelas marcas de cigarro voluntárias num banheiro com cheiro de desinfetante barato, uma privada entupida fechada, ela em cima da tampa com o cigarro, se fazendo amar pela brasa, o que é a mesma coisa que tudo mundo faz, apenas ela faz porque não sabe. Isso se o gordinho não se tivesse interposto entre mim e ela, dizendo “Algum problema, amigo?”, e eu, “Não, quero ver um pouco mais a Carol, nenhum problema”, e ele, “Ela é maluca, doida das idéias, já matou um homem”, e isso é tão fácil de dizer quanto dizer que a vida é bonita dentro de um quarto com as cortinas fechadas, ou dentro de um livro, ou de um filme, tudo sem falar do que é a vida, grande demais para a beleza, como se a vida inteira não passasse de um quarto fechado, e a morte não passasse de Carol, enlouquecida, amaldiçoada, “jura?”, juro, me empresta um deus que eu te juro, e isso raramente digo. Não que seja grosseiro ou ante-clerical, apenas tenho poucas idéias de conversa na mesma hora em que quero estar com você: em suma, nunca coincidem o que penso e o que faço, o que é perigosíssimo, como o amor, não pela forma, jamais pelas inspirações, algo mais embaixo... É o que é, sem beleza nenhuma, pensem bem: é porque as grandes sacadas são, porque o que é dói sem pedir desculpas, e normalmente não corresponde ao que somos, e pensamos, o erro infinito, que me faz pensar se as “grandes sacadas” não passam de cama quente para a mortalha da humanidade... Não que me orgulhe em dizer isso... Se me orgulhasse deixava quieto... Mas é bem melhor do que todos os franceses que já conheci, com a exceção do francês belga que pagava cachaça sem parar de rir. E até hoje, olhando Carol no carro, espero Andréa, Lina, Claudilene, Fátima. Mas, como prometi, esse hoje não teria fim...

13.10.05

"A menina com transtorno bipolar que lê Hemingway"

Durante um mês inteiro, sempre às quartas-feiras. No que dormia, reparava na solidão escondida numa caixa enrolada em laço de fita numa das mãos do negro sentado no ponto de ônibus. Na outra mão um vaso com apenas uma flor vermelha. Não sabia distinguir que flor. Mas ela estava ali – a solidão, pura e eterna – na canção que assobiava o negro tristemente, sobrancelhas atiçadas, olhos baixos na sua flor vermelha.

Em momentos de grande perturbação ou convicção irredutível, é importante sonhar. A fumaça espessa de um Gold Flake numa varanda sem luz, onde se ouve o rangido de uma rede em movimento. Um homem gordo, olhos sanguinários, ou talvez apenas exaustos, mas bem abertos, na varanda coberta de ladrilhos à beira do Oceano Atlântico, escuta Woody Guthrie muito baixo numa vitrola de madeira: garrafa de Bell’s rola pelo chão com a força da brisa do mar, depois pára e roda para trás. Um colibri se pronuncia de 8 em 8 segundos, três duplos e curtos, um longo e sofrido. Ao longe, coqueiros, dunas, o infinito crepitante, a morte comendo pelas beiradas o que não se sabe sobre a vida, mesmo quando se vive, justo quando se engana. De repente, um fio de saliva desliza pela boca aberta do ronco do mundo: um fino fio infantil esculpi o rosto do gordo sonolento.

O mesmo colibri, agora morto e depenado, esmagado no asfalto. Um ioiô rolando para debaixo da mesa. Uma mão batendo na janela quando neva lá fora e o mundo derrete por dentro, dentro de cada um. Pessoas de preto se aproximam num ritmo de procissão, em círculos apontam dedos, perdem a compostura e se avançam umas nas outras como hienas famintas quando, de repente, um relógio do Batman jogado pela janela da cozinha, uma mão que lhe ensaboa as costas, um chinelo velho de borracha, uma unha comida presa num casaco de brim, uma grande montanha de pedra que ouve os barulhos da Terra e se cala, no formato de uma cobra naja instigada.

Por quilômetros se estende um cafezal. O vento dá suas coordenadas. Passos enganados por sussurros. Uma coxinha de galinha dentro de uma cesta de palha. Lulu Santos, um vestido velho de chita, Lulu Santos?, dois cachorros grudados pelo rabo, Vaguinho, o filho do caseiro... Vaguinho? E então, a proibição. Se vira na cama para tapear o ronco.

Dez minutos em branco.

Um casal dança numa gafieira, noite de meio de semana na Lapa, completamente só, enquanto toca “Formosa” num gramofone infestado de cupins: a mulher que dança é cega, usa óculos escuros, o homem parece feliz, sorri, quando no fundo espera que alguma coisa mude rápido. Mas não existe mais ninguém na rua e a cega chora no seu ombro.

Uma menina de olhos grandes e vidrados, que num belo dia de sol se senta em frente a ele na padaria, ele comendo um pão com média e lendo “Paris é uma festa”, imaginando o quanto nos resta, e ela chega bem perto, boca aberta num sorriso abobado, os olhos decididos dos bem loucos, cara muito pálida, intenções lentas e fulminantes.

- Posso me sentar? – ela diz, logo depois de se sentar.

Arranca o livro das mãos dele.

- Esse daí se matou – ela diz com muita naturalidade, mas tremendo.

- Você gosta? – ele diz.

- Dele ou do suicídio? – ela pergunta respondendo ao mesmo tempo, depois acende o cigarro torto num arco.

- Dele. Hemingway.

- Gosto de você. Mas estou realmente muito atrasada – ela diz e se levanta abruptamente, tira um papel da bolsa, senta outra vez.

Ele vê um pente feito com casco de tartaruga. Pensa: “deve ser bipolar, porque ativista não é”. Ela arranca um canhoto de cheque, tira uma caneta barata da bolsa e começa a escrever usando Hemingway como apoio para o papel.

- Olha – ela diz ao lhe entregar o papel. – Me liga. Agora estou mesmo atrasada. Mas quero te ver outra vez. Daí te falo o que eu acho do Hemingway de verdade. Mas agora não. Liga sim. Se não quisesse não te daria meu número.

Avança sobre a mesa. Um pão com manteiga pisado no chão. Sapeca um beijo na boca dele. Um beijo nu. Vai embora.

Outra vez se vêem na rua. Não se falam. Ela finge bater fotos. Aponta a máquina para cima, mas não se fotografa o canto dos passarinhos. Parece preocupada, certamente mais gorda, quase saudável. Ele ri e pensa: “a menina com transtorno bipolar que lê Hemingway”.

Então acorda completamente suado e de pau duro.

10.10.05

"Amizade"



Sim
Não
E estamos acertados.

8.10.05

"o dilema da paixão"

Vejam o que se passa em determinadas estâncias...

“você é de onde?”
como assim de onde? sou teu.

Sorriso simétrico dos olhos com a primeira ruga que será para sempre

“sinto que te conheço de algum lugar”
eu também.
“você faz o que da vida?”
você quer dizer DA vida ou NA vida, porque é bem diferente, você sabe...

Sorriso feio, o mais sincero, porque calmo, quase um erro justo, quase um acerto

“kuákuákuákuákuá...”
se for DA vida, eu te digo que gostaria de poder conhecer a fundo certos tipos de pessoa
“e NA vida?”
sou assistente de edição de um programa de televisão, e você?
“meu nome é Andréa, e o teu?”
ei! te fiz uma pergunta antes... não sou burro.

Sorriso quase sem sorriso, procurando a amiga, que não existe

“você é muito engraçado”
te fiz uma pergunta antes.
“você mora aonde?”
flamengo, e você?
“ipanema, sou arquiteta”
a cara de ipanema...

Sorriso, onde está minha amiga? quer saber? gosto dele, e daí?

o seguinte: gosto de você.

Sorriso, sem sorriso, uma pinta protuberante no canto esquerdo da boca, negra

“você não me conhece”
por isso mesmo.
“olha, eu sou tímida”
eu sei, eu também.
“não sei fazer”
eu sei.

Sorriso, cara fechada, mão no peito

“você é de onde?”
porto alegre.

Sorriso, cara contente, algodão doce, bolhas de sabão

“veio pra cá quando?”
bem cedo. minha família é de lá.

...

“vou procurar minha amiga”
tudo bem.

Sorriso, vai e volta, pára do lado, cheiro bom e antigo

eu gosto de você.
“que isso?!”
isso mesmo.
“você quer um beijo?”
também, mas...

Beijo de estalo

você é muito caseira.
“que isso?! você é maluco!”
você dá beijo de selinho num desconhecido já depois de velha.
“quantos anos eu tenho?”
eu tenho 23.
“sério?”
sério não, meio torto.

Beijo no pescoço, saliva salgada, a paixão

olha aqui, o teu gosto...

Beijo na boca, de língua

Ela larga o homem – sorriso – e vai procurar sua amiga, que não está em nenhum lugar e, ao mesmo tempo, está em todos. ela volta, mais falante, estranhamente não achou ninguém.

você gosta de mim?

Sorriso, mentira e sonho, as mesmas coisas, misturadas, para enganar melhor

“isso não se pergunta”
tem razão.

...

Chega perto uma menina simpática, olhão verde, outro cinza, poucos agrados.
um cão uiva determinando o fim da festa

“vamos...”
vamos de a pé.

Ele puxa ela pelo braço, não dá certo, ela se vira pra menina, olho no olho verde dela,
nada no cinza, além do que não se explica

“olha, esse cara quer descer a pé”

Aponta para ele

Sorriso, menina de olho verde, outro cinza, quer viver, mas não sabe como ali

eu vou te ver de novo?
“você é um charlatão”
por quê?
“por causa do jeito que fala”
diz isso porque eu sou sincero?
“talvez...”
não sou charlatão. posso ser chato, incompetente, mas não sou charlatão.
“fofo...”
quero te ver outra vez... gosto de você.

Sorriso, minto ou digo a verdade?, talvez um número e pronto, está feito, me livro, me lembro. ela anota o número dele.

estou sem o celular. deixei no carro de quem me trouxe.

...

você vai me ligar?
“vou”

Sorriso, beijo caseiro, e nunca mais se viram outra vez

6.10.05

"um pouco de poe"


“Parece porque é”

***

“Eu não tinha medo de olhar as coisas horríveis,
mas ficava apavorado com a idéia de nada ver”

***


“O que vejo, o que sou e suponho será apenas
um sonho num sonho?”

***

“...E a morte invade
Os meus sentidos, na ilha peregrina,
Tão de leve, que nem sequer pressente
O adormecido que ela está presente.”
(do poema Al Aaraaf)

***

“...E, entrementes, guarda na mete que tudo é vida –
VIDA – Vida dentro da VIDA – o menor dentro
do maior e tudo dentro do ESPÍRITO DIVINO.”

***

“E ali dentro está a vontade, que não morre. Quem conhece o
mistério da vontade, com seu poder? Porque Deus é apenas
uma grande vontade que penetra todas as coisas graças
à força de Sua aplicação. O homem não se submete aos
demônios, nem se rende inteiramente à própria morte,
a não ser pela debilidade de sua fraca vontade.”

***

“Como ponto de partida, considerei simplesmente provado que o começo nada tinha por trás de si, nem diante de si, que era um começo, de fato, que era um começo e nada mais que um começo, em suma que este começo era... aquilo que era.”
(de Eureka: poema em prosa ou ensaio sobre o universo material e espiritual)

3.10.05

algum matemático, por favor, responda:

qual a probabilidade de você estar pensando
numa mulher que nunca conheceu na vida
exatamente quando ela aparece de repente
do teu lado no sinal com roupa de executiva,

soltando os cabelos rindo para os lados,
cantando enquanto você pára de cantar,
reconhecendo você sem você conseguir,
olhar de volta sem rir como um idiota,
dobrando em seguida a última esquina,
da chance que separa dois desconhecidos,

para logo depois você deixar cair a chave de casa
no vão entre o elevador quando abre e a porta,
para sempre perdidos no porão das vaidades:
você – talvez ela – e a chave?

o japonês é quem tinha toda a razão:
se a vida não passa de um sonho,
e estamos todos mortos,
não quero esquecer,
vou lembrar.

1.10.05

"Ressaca"


o gosto que tua boca apresenta
em determinados sábados
sem explicação
ou em domingos de paixão vazada
você atrás da paixão numa garrafa
ou com explicação demais para dar
é o gosto de tudo aquilo
que você nunca pôde suportar
somado àquilo que você
sempre soube que jamais
iria te abandonar.

e se os olhos pelo menos abrissem...
seria mais fácil detectar o erro
ainda em tempo...
mas não.

27.9.05

"Meu amor mora dentro de uma bolsa"

Chuva forte, calça larga, tosse seca, catarro na palma, na alma sem guarda-chuva. É sempre assim quando você está desarranjado. O que fazer? A primeira entrada do metrô fechada com grades sólidas e enferrujadas como o sistema de classes. Uns vagabundos mordem pontas de cigarros e pigarreiam debaixo do toldo furado. Me indicam a porta certa, que calha também de ser a errada: por motivos de reforma. É sempre assim com informações espontâneas. Corro para a terceira entrada – o curativo no meio do peito arde com as pulsações do sangue escoado na vontade, meu coração, onde foi parar? – mas pingos são mais rápidos que pernas.

Já no subterrâneo, levo a mão ao peito, conversamos um pouco, massageio seu ego ferido. Pergunto o que há, ele diz que tum-tum, tum-tum, numa fala descompassada, de modo que não entendo suas necessidades. Desde guri é assim. O que há, velhinho? Não vai fraquejar agora, aqui no metrô... Isso não é um filme francês. Nenhuma mulher de lábios grossos, olhos amendoados, cachecol e pêlos debaixo dos braços está te esperando com vento no rosto e uma lágrima paralisada sob os cílios. Não é sua hora ainda, meu chapa. Você precisa gritar por mais uns anos. Não vá rouquejar logo agora. Mais 70 anos, como a quiromante leu nas linhas da minha mão, a esquerda, que é a mais torta. E um filho único ainda por cima, mais um, o que deixa de ser único. “E você quase morrerá aos 58... uma linha estranha... vejo aqui... quase-quase”, diz a moça careca com argolas prateadas de baiana nas orelhas, acariciando as próprias mãos, “mas ainda não... bem velhinho só, e muito só, cheio de dinheiro... menos o do ordenado, que vai te sair por 70 mangos, como os anos que ainda te faltam”.

Portanto, avanço, sentido Zona Norte, Cinelândia, ver um filme no cinema. O trem chega por trás dos pensamentos como uma boa surpresa. Não é o meu ainda. Um velho sem cabelo e com um dente aparece na minha frente e pergunta para onde vai o trem. Penso na resposta ideal, algo como “ele vai para nunca mais, amém”, mas digo “vai até Copacabana”. “Siqueira?”, ele pergunta. “Siqueira”, eu faço com a cabeça. Mas ele não entra.

De um cinema para outro. Será que então é isso? Ficar ao lado de centenas de pessoas vazias dividindo emoções aboletadas sobre sacos de pipoca, assobiando e aplaudindo na frente de uma tela enorme, pedindo silêncio mais alto do que o próprio incômodo... A quiromante diz que não. Que o filho será bonito e saudável. “Então será uma mulher bonita”, minhas sobrancelhas concluem. “Não sei dizer isso, mas serão três”, ela morde a bochecha. Um filho... Outro desgraçado, mais três mulheres... Que bela piada! A primeira, a grande paixão. O corte fundo na carne fibrosa. Mas, se não há cura, a ferida cicatriza uma hora, com o tumor dentro. A segunda, boa mulher. Verdadeira dama. “Dá pra saber se será loira? Gosto das Loiras” – a quiromante torce a cara, dobras na careca, quando lhe pergunto. A segunda me dará o filho. Casamento cristão, camas separadas, sexo quinzenal, duas tentativas de suicídio frustradas, uma artista sensível, temperamental. Quase morre no parto, como minha mãe, e morrerá antes de mim, como minha mãe. A terceira, pobrezinha, não terá tanta sorte. Vai viver bastante, como eu. Terei casos por fora e ela vai sofrer com os longos fiapos de cabelo presos nas minhas cuecas, cheia de uísque e pílulas à espera no portão. Outra coisa: depois de velho vou usar cuecas, pois quem é rico se protege para morrer feliz, sem saber que aquele que se protege demais consegue apenas uma morte cuidadosa. Desmoralizada nas rodas de chá, pois a essa altura já serei rico para tomar chá em rodas, tentará dar cabo da vida de forma besta, pulando na frente de uma moto. Uma costela lhe perfurará o pulmão e nunca mais vai falar direito. Pagarei a clínica para birutas até o fim dos seus dias, incluídos os meus. Na clínica tentará outra vez, com uma tesoura. “Um carma”, diz a quiromante, “todo mundo tem o seu”. Meu filho, rapaz solícito, tentará por ela uma terceira vez, não podendo ver o pai tão abatido, com veneno de formaldeído. Péssima escolha, deixará a pobre presa a uma cadeira de rodas com metade do rosto paralisado em tubos de sucção.

De fato, ninguém consegue esperar pelo amor. Eu mesmo, aqui no metrô, estação Largo do Machado, vejo o amor deslizar vagão adentro, eu sedento, ele lento, sem esperar por nada, pois é só quando aparece, como as tias velhas. Vagão quase vazio: o velho sem cabelo e com um dente que pegou o trem errado, eu completamente encharcado e uma guria magra, sem cor nem muita frente, cabelos pretos ralos e escorridos, olhos puxados mas ocidentais, digo, acidentais, melhor assim, bunda mirrada, pente na mão. Me apaixono por ela quando, de costas, se senta, pernas cruzadas, descruza as pernas para apanhar o lenço que escapa da bolsa para o chão. Nunca vi um lenço cair tão devagar, dançar o tango, penso ajeitando os cabelos molhados e enxugando o rosto com mangas de camisa.

Silêncio no vagão. Aquele lenço de seda, o amor que contêm as finas linhas trançadas... Vejo os pés da guria, livres de sapatos, unhas vermelhas descascadas, a do mindinho apenas um fiapo de cálcio, seus calcanhares dançam por baixo do assento.

São os calcanhares mais bonitos que já vi, penso. Ou talvez seja a primeira vez que vejo calcanhares. Isso o amor: que se vê pela primeira vez e para sempre.

Subimos as escadas para o inferno. Já ouço o estalido das cotias penteadas. Ironia subir para baixo. Primeiro eu. Ela atrás, cabeça baixa, parece preocupada, muitos cabelos presos no pente na frente dos olhos. Micose, anemia, alterações tireoideanas, menopausa – mas parece tão nova! –, quimioterapia?

Tenho duas opções: a escada rolante e os degraus. Penso assim: vou pelos degraus, se ela me vir e fizer o mesmo, então é ele mesmo, o amor. Do contrário iria pela escada rolante como todo mundo. Mas pelos degraus, me seguiria como quem diz: estou contigo, querido, para sempre e por onde for. Subo os degraus. Paro no meio. Olho para trás por baixo do fundilho das calças, quando finjo dobrar as bainhas por culpa da chuva lá fora. E lá vem ela, vagarosa como o lenço de seda, ainda com os olhos baixos, a certeza do amor sincero. Morde levemente os lábios – uma lágrima? Vasculha a bolsa. Está procurando meu amor lá dentro, só pode. Como é bom. Me sinto dormente. Na saída beijo a chuva e espero minha recompensa. Não há dúvidas. Passo por um sujeito encharcado de cabelo encaracolado que parece assistir à cena, emocionado. Tudo bem, camarada, entendo você, também estou emocionado. Pode aplaudir se quiser, não me incomodo, divido contigo meu triunfo.

Me viro. A guria entre os braços do sujeito, ambos chorando na chuva, como se doesse. De repente se separam. Vejo de longe. Não sei se choro ou se chuva. Discutem. A chuva escorre de mim para todos os esgotos vazantes da Praça Mahatma Gandhi. Plafp! A luz espanta gotículas dos cachos dele. Um tapa lhe estala a fronte. Vergonha, humilhação, blefe. Ele se vira e vai embora, ofendido, confuso, arrependido, tranqüilo. Ela fica na chuva com o pente na mão, olhos emprestados do satã. Rompimento traumático – ou o trauma somos nós? Eu sozinho na chuva. Sinto esgarçar minha cicatriz no peito. Com meu coração não converso mais. Que fuja enquanto é tempo. A chuva me encharca mas não sei de onde ela vem, mesmo olhando para cima, se sou eu ou se quem chora é o mundo. Pobre guria, nem tão feia, nem tão linda, que tem meu amor guardado na bolsa. Agora para sempre, até o próximo trem – sonho? Ela corre de volta para dentro da terra aos tropicões. Olho em torno e percebo pela primeira vez que pombos também voam em noites chuvosas. Acordo molhado e morto. 70 menos 1.

26.9.05

"Good Olb Buk Pills"


fact


careful poetry
and careful
people
last
only long
enough
to
die
safely.

***

a beginning

when women stop carrying
mirrors with them
everyplace they go
maybe then
they can talk to me
about
liberation.

***

dog

a single dog
walking alone on a hot sidewalk of
summer
appears to have the power
of ten thousand gods.
why is this?

***


i met a genius

I met a genius on the train
today
about 6 years old,
he sat beside me
and as the train
ran down along the coast
we came to the ocean
and then he looked at me
and said,
it's not pretty.
it was the first time I'd
realized
that.

***

oh, yes

there are worse things than
being alone
but it often takes decades
to realize this
and most often
when you do
it's too late
and there's nothing worse
than
too late.

24.9.05

"Nada muito romântico"


A melhor coisa de se mudar é acabar com as bebidas da casa, esvaziar as garrafas. Ana fazia isso e limpava a testa – um gole largo e uma mão na testa; gole, testa... As coisas começaram a se amontoar no meio do quarto-sala no Leblon. Era bom ver aquilo feito. Era ótimo deitar sobre o colchão sem cama, direto no chão, com aquelas bolotinhas maravilhosas de massagem japonesa espantando as dores das costas como moscas na carne podre.

Dependendo de como você deixa suas coisas, elas viram um monte de entulho. Daí bate uma certa vontade de se derreter por alguma coisa grande e dura. Ana esperava a vida bater na porta, olhando pela varanda, cuspindo no toldo encardido do vizinho, jogando baganas nos pombos que trepavam em cima do toldo. E eles trepavam com toda a classe, quietinhos, um em cima do outro, como duas pantufas de inverno. A vida não bateu na porta, mas alguma coisa o fez.

“Toc toc”. Toc toc é o caralho, toca a campainha, porra! Um roupão cor-de-vinho semi-aberto só porque era a bicha do andar de cima. Pelo toc toc dava pra saber que tinha saído uma briga com a outra bicha – o homem bicha da relação. A bicha entrou e ligou a tv. Ana queria romantismo, mas ganhou uma bicha olhando pra tv e reclamando de alguma ardência na rodela do cu, “olha aqui, ó...”, e o negócio do romantismo ficaria pra depois, bem depois. Eram três vinhos, dois pela metade e um de um gole só, já meio enferrujado e com uma colherinha no gargalo para sei lá o quê. A bicha era só rodelas de cu assadas e reclamações conjugais... “Ai, o Armando não pára em casa...” E Ana: “Você também não, porra”. E a bicha: “Mas eu só faço isso porque ele faz primeiro”. E Ana: “Se for assim, ninguém come mais ovos no café da manhã”. E a bicha: “?”.

Eram três vinhos, uma Viborowa pré-outubro-de-1917 na ilusão dos corpos e quem sabe algumas latinhas de cerveja. Dava pro gasto. Dava pra fazer o quarto-sala virar de cabeça pra baixo e dava pra dançar de cabeça pra baixo também, ou escorregar no chuveiro e morrer sentado. Mas não era nada muito romântico, uma bicha sentada na tua cama vendo tv, comendo meleca e roendo as unhas do pé. Era uma bicha careta. Nada de mulheres, JAMAIS! Nunca havia cheirado um bacalhau fresco. Nunca havia ficado com badalhoca presa por uma semana entre as unhas. Jamais tinha olhado um cuzinho liso. Poderia confundir uma vagina com um sovaco. Ou poderia confundir uma vagina com um pau encabulado. Esse tipo de bicha é tão perigoso quanto dois poetas recitando Maiakovski trancados contigo num elevador pra quatro pessoas.

Ana procurou se distrair olhando pra frente e não vendo nada além do reflexo dela e da bicha no vidro da janela. Pouco abaixo, a tv rodava e a bicha ia e vinha do banheiro, andando como um caubói em cima do cavalo, mas sem cavalo. A bicha bebia e falava e Ana bebia. Nos canais eram as mesmas porcarias pra ganhar dinheiro rápido. Risadas perecíveis e caras de nojo dão o maior IBOPE. E a maioria das pessoas “pra valer” calcula tudo em números de audiência. 20% no campo afetivo era algo que dava pra se levar adiante numa boa. Abaixo de 15 a corneta começava a apitar. A bicha tava com uns 13 pontos. Ana não conseguia raciocinar assim e continuava trocando os canais. Um pouco de tesão na bicha ela talvez tivesse, mas a humilhação ao pensar neste tesão acabava prevalecendo, e cansava um pouco. Não era nada mau, um cara encorpado, barba grossa, que poderia arranhar tuas costas enquanto te metesse por trás. E o melhor era pensar em tudo isso e poder ficar pelada na frente da bicha e a bicha na frente dela. O Roupão semi-aberto já estava três quartos aberto. Um peito mostrava a sua comissão de frente como algo vermelho-escuro, grosso, de uma polegada e com um furo no meio. Pra bicha era como se fosse o peito de um senhor gordo e safenado. Ana tinha vontade de abrir as pernas e a bicha permitiu que ela fizesse isso com os olhos. A bicha falava tão alto e gostava tanto do pó branco nas idéias que não dava pra se levar muito a sério. Ana só tinha amigos bichas e amigas fanchonas. Vivia do teatro. O meio teatral mexe demais com a libido das pessoas e quem olha de vez em quando em volta acaba enchendo o saco ou sentido um certo nojo ou sensação de queda do cavalo. Sabe, do tipo Paulo Autran num boquete pro assistente de iluminação antes de entrar numa cena de beijo na boca com a Tônia Carrero, numa adaptação de Samuel Beckett. Você tem que ter os colhões do tamanho de uma bergamota pra se manter intacto. Entrar na onda é para sempre.

Ana não conseguia entender como a bicha falava tanto e tão rápido. E adorava falar das mulheres, mulheres isso, mulheres aquilo, só que ela era como aqueles adolescentes de escolas particulares cheias de mato, filhos de pais ex-bichos-grilo que falam do Dostoievski como se fosse o Zé da esquina. Não valia a pena escutar nem muito menos respeitar alguém que gostava de falar de mulheres, mas não tava a fim de se queimar de vez em quando na caldeira delas. Ficar de castigo antes de cometer o crime, sabe esse negócio?

Tinha um canal de sexo 24 horas pay-per-view. Algo como “Jorrada nas estrelas”. A bicha ficou motivada porque quando você assume que não é uma pessoa classificada como uma pessoa dentro das estatísticas, então você pode despirocar de vez sem grandes problemas. Dr. Sporra lambia uma buceta de cabelos crespíssimos e lábios roxos – uma negra de cabelos alisados até a bunda e olhos com lente de contato azul – e enfiava uma garrafa de champanhe lá dentro. O champanhe estava fechado, graças a deus ou a qualquer outro desocupado. Dois rapazes com roupas exóticas e apertadas entraram e apresentaram seus documentos, fazendo a bicha lembrar do seu próprio e Ana olhar pro lado sem saber se gostava daquilo ou não. Assistir a um filme de sacanagem com uma bicha careta que nunca tinha comido uma mulher na vida, mas adorava falar mal delas, é uma cena engraçada de se imaginar. Ser parte da cena é outro negócio. Pau lá dentro, pau lá fora e a bicha ficou realmente animada. “Ai, Ana, você se incomoda se eu me tocar um pouquinho? Não, né? Tô tão carente... E, afinal, somos amigas, não somos?... Hein mulé?!”. E Ana: “...”

Um creme de massagem para os pés fez o trabalho na parte masculina da bicha. “Olha o tamanho daquele troço!”, ela dizia pra tv e continuava se massageando como se aquilo tudo fosse uma sessão de terapia em conjunto para ninfomaníacos não-ortodoxos. Ana bebia e sentia um pouco de cócegas lá embaixo. Se roçou um pouco na cama, depois foi pro banheiro e usou o chuveirinho do bidê durante uns cinco minutos. Nada muito romântico, uma bicha velha com um pau de 16 centímetros se roendo pelo Dr. Sporra na tua cama, do teu lado, vendo “Jorrada nas estrelas”, usando o teu creme de massagem para os pés no pau e falando mal das mulheres. O filme acabou e a bicha também acabou e seu telefone celular tocou enquanto ela ia se limpar. “Armando!? Tá, tô subindo... Olha, Ana, já vou, tá? Obrigado pelo ombro amigo.” E Ana: “Ombro amigo...”

“Tchau.” “Tchau.” “Smack.” “Smack.” Ana abriu, fechou a porta, voltou pra cama, com os dois bicos do peito em chamas e o tédio comendo pelas beiradas, desenlaçou o roupão, trocou o canal de sexo-pay-per-view por um Cary Grant, que arrasava mais uma loirinha deslumbrada com látex até o cérebro, e Ana se masturbou com uma garrafa vazia de vinho, delicadamente, languidamente, sofregamente, pensando em garanhões alados e cus assados. O lado bom de se mudar...

22.9.05

“in a middle of a room” (e.e. cummings)

in a middle of a room
stands a suicide
sniffing a Paper rose
smiling to a self

"somewhere it is Spring and sometimes
people are in real:imagine
somewhere real flowers,but
I can't imagine real flowers for if I

could,they would somehow
not Be real"
(so he smiles
smiling)"but I will not

everywhere be real to
you in a moment"
The is blond
with small hands

"& everything is easier
than I had guessed everything would
be;even remembering the way who
looked at whom first,anyhow dancing"

(a moon swims out of a cloud
a clock strikes midnight
a finger pulls a trigger
a bird flies into a mirror)

### tradução ###

“no meio de um quarto”

no meio de um quarto
está um suicídio
cheirando um Papel rosa
sorrindo para um ego

“em algum lugar é Primavera e às vezes
as pessoas são reais:imagine
em algum lugar flores reais,mas
não posso imaginar flores reais pois se eu

pudesse, elas de algum jeito
não Seriam reais”
(então ele sorri
sorrindo)“mas eu não

serei todo lugar real para
você num instante”
O é loiro
com mãos pequenas

“& tudo é mais fácil
do que eu achava que tudo poderia
ser;até lembrar o jeito que quem
olhou para quem primeiro,de qualquer jeito dançando”

(uma lua nada para fora de uma nuvem
um relógio bate a meia-noite
um dedo puxa um gatilho
um pássaro voa para dentro de um espelho)